São impressionantes os números da turnê que comemora os 30 anos de carreira do tenor-celebridade italiano Andrea Bocelli, 65 anos, cego desde os 12, nascido em Lajatico, na Toscana. Impressionantes e espetaculares, desde que estreou sob as bênçãos de seu padrinho Luciano Pavarotti. Só na sua primeira década de sucesso, os anos 1990, quando os CDs físicos ainda dominavam, vendeu 70 milhões de cópias. Arrasta multidões a estádios em todos os continentes, do mesmo modo como estrelas do pop e, por aqui, as duplas sertanejas & derivados, incluindo sofrências, tecnobregas, etc.
É um autêntico superstar que mantém vivo o carisma dos grandes tenores que dominam a cena lírica desde o gigantesco sucesso de Enrico Caruso (1873-1921), o primeiro tenor-celebridade da era moderna que apostou nas gravações a partir de 1895, ainda na Itália, e depois, já radicado nos Estados Unidos, a partir de 1903. A reprodução fonográfica engatinhava. Ele quebrou a então inédita barreira de 1 milhão de cópias vendidas, nas primeiras décadas do século 20.
Depois dos dois shows neste sábado, 25, e domingo, 26, deste mês no Allianz Parque, em São Paulo (com alguns ingressos disponíveis a partir de quase R$ 2 mil), Bocelli engata, de 8 de agosto em diante, shows majoritariamente em estádios: em Istambul, Varsóvia, Croácia, Bulgária, Cracóvia, Budapeste, entre outros países. E coroa a turnê com dez apresentações em grandes arenas nos Estados Unidos de costa a costa, com direito a dois shows no Madison Square Garden, em Nova York.
Qual o segredo de tamanha popularidade?
O próprio Bocelli dá pistas em seu livro-tributo a Pavarotti. Conta que percebeu um caminho para tentar uma carreira quando ouviu Mamma, parceria de Pavarotti com Henry Mancini, o notável arranjador e compositor norte-americano autor de Moon River e O Passo do Elefantinho.
“Aquele projeto me impressionou muito, porque propunha uma tipologia de tenor alinhada com os grandes intérpretes do passado, de Caruso a Schipa e a Gigli, artistas que já se haviam arriscado na canção popular. Eu sentia que a opção dele era inteligente, uma opção que sem dúvida não fazia mal ao mundo lírico, repertório que ambos amávamos e privilegiávamos acima de qualquer outro”, escreveu.
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O maior fenômeno lírico-pop da década de 1990 fez o resto – Os Três Tenores José Carreras, Placido Domingo e Luciano Pavarotti. Eles estrearam em 7 de julho de 1990, nas antigas Termas de Caracalla, em Roma, na véspera do jogo final da Copa do Mundo, ao lado da Orquestra do Maggio Musicale Fiorentino, regidos por Zubin Mehta.
Bocelli escutou pela televisão e descobriu ali seu caminho na música. “Me impressionei pela simplicidade de ir ao encontro das pessoas, recuperar a imagem que o tenor vinha perdendo dramaticamente”. A receita: alternar “árias celebérrimas com canções populares, medleys”.
Não dá pra chamar isso de novidade. Desde Caruso, os mais famosos e badalados tenores – e também sopranos - fizeram da música popular uma superlucrativa avenida para a conquista de públicos mais amplos, do tamanho das multidões que sempre curtiram música popular em todos os seus matizes. Engordaram seus cofrinhos e encheram as burras das gravadoras. Nos Estados Unidos, os cantores líricos do momento gravavam discos com músicas natalinas. Mas tudo permanecia no reino do disco.
O fato novo foi o modo como os Três Tenores conseguiram transferir o imenso prestígio dos palcos líricos para as multidões em grandes espaços como os estádios. Foram acusados de mercenários pelos eternos puristas de plantão. Mas a gente, que nem liga para estes rótulos, se encanta naturalmente com Pavarotti cantando com Bono, Brian Eno, Céline Dion, Lionel Richie, Elton John e Eric Clapton, entre tantas outras parcerias. E quem não se encantou com Montserrat Caballé numa parceria rara com Freddie Mercury em 1988, nas Olimpíadas em Barcelona?
Reli partes de dois livros sobre tenores nas últimas semanas. O primeiro, Tenor, do tenor inglês John Potter, conta como, na Idade Média, o tenor era uma voz masculina secundária, mais aguda, que sustentava notas que orientavam as movimentações em contraponto das demais vozes. Os tenores foram decisivos no nascimento da ópera, no século 16, com Monteverdi e Jacopo Peri (este dublê de tenor e compositor); perderam espaço para os castrati nos séculos seguintes, até se firmarem no século 19, numa sequência virtuosa onde cabem iniciada por Donizetti e Rossini, chegando ao apogeu com Verdi e Puccini.
A simplificação é grosseira, só para mostrar que os tenores, segundo Carolyn Abbate e Roger Parker em outro delicioso livro intitulado Uma História da Ópera, assumiram uma identidade própria, passando a fazer sucesso não mais apenas pelo êxito em determinados papéis, mas como seres humanos de carne e osso que subiam ao palco. Igualzinho aos superstars pop.
Neste momento, o público tendeu a fixar-se mais no cantor de carne e osso do que no personagem que ele encarnava. Passou a desejá-lo, amá-lo. Abbate e Parker citam um trecho do romance Madame Bovary (1857), de Flaubert, em que este define esta mudança de empatia do público com o artista. Emma e seu marido assistem a Lucia di Lammermoor, ópera de Donizetti.
Emma fixa-se no tenor herói: “Ele, ela pensou, deve ter um amor inesgotável para esbanjá-lo com tão grande efusão. Todas as suas pequenas críticas se esvaeceram ante a poesia daquele papel, que a absorvia; e, atraída para esse homem pela ilusão do personagem, ela tentou imaginar como sua a vida dele – aquela vida ressonante, extraordinária, esplêndida, e que poderia ter sido sua se o destino assim o quisesse. Eles deveriam ter se conhecido, amado um ao outro”.
Artistas como Andrea Bocelli estabelecem este tipo de relação com o público. Independente da qualidade. Com certeza, boa parte do público feminino presente nos seus dois espetáculos paulistanos no Allianz Parque vai se colocar no lugar de Sandy, que será sua convidada.