Ela diz não conseguir encontrar a palavra para expressar o que sente quando, aos 86 anos, a contracorrente de uma vida toda, por alguma razão, inverte seu fluxo e passa a conduzi-la suavemente a ponto de colocar em suas mãos algo plenamente seu, talvez o mais seu de tudo o que teve até hoje. Mesmo ao lado de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, e mesmo desnorteando João Gilberto e Milton Nascimento, Alaíde Costa sempre esteve só. Só como menina tímida de levar de Elza Soares moleca varadas nas pernas em Água Santa, só como negra nos encontros dos apartamentos brancos da bossa nova, só como ameaça a Elis Regina nos programas de auditório, só como gosto deslocado dos processos industriais das gravadoras a partir dos anos 1980 e só como mulher no Clube da Esquina.
Sua vida então, ela sente, não seria em vão se revelasse um dia que a solidão nunca a derrotou. Há mais do que compaixão no disco O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, produzido por Emicida e Marcus Preto, com direção musical de Pupillo e que será lançado em 19 de maio. Como eles explicam em um texto assinado por Preto, a ideia inicial era “fazer um álbum que sublinhasse a grandeza de Alaíde não apenas como intérprete ligada à bossa nova, movimento que surgiu para o Brasil ao mesmo tempo que a própria artista, no final da década de 1950. Mas, sobretudo, como a voz que transitou, quase sempre à margem do grande público, pelos mais nobres ambientes da música popular.”
As canções foram feitas a pedido especialmente para a voz de Alaíde, com exceção da não menos biográfica Aos Meus Pés, de João Bosco e seu filho, Francisco Bosco. Aliás, curiosamente, é a que Alaíde cita como a sua verdadeira história por um par de versos que faz sua voz falhar enquanto ela os declama ao repórter: “O meu caminho eu mesma fiz / não foi ninguém que me apontou / eu me virei sozinha / comi o pão todinho / que o Diabo amassou.” Os outros colaboradores são Céu e Diogo Poças com Turmalina Negra; Fátima Guedes com Nenhuma Ilusão; Alaíde melodista em parceria com Nando Reis em Tristonho; Guilherme Arantes na belíssima Berceuse; Ivan Lins e Emicida com Pessoa-Ilha; Erasmo e Tim Bernardes com Praga; e Joyce com Emicida em Aurorear. Há mais material enviado por Francis Hime, Marcos Valle, Gilson Peranzzetta, Guinga e outros, que deve ser usado para mais um ou dois álbuns.
Há uma ideia de Alaíde Costa respeitada por quem compõe, pensando em sua interpretação. Ela está nas letras, nos arranjos, nos andamentos. Ouvir tudo em seus detalhes é saber quem é Alaíde para essas pessoas. São canções espaçosas e de caminhar lento, sem os sambas que um dia cantou ou outras sugestões que a tirem do seu tempo interno. “Eu sempre fui assim, sempre gostei da calmaria”, diz. “Acho que é por isso que cheguei aos 86 anos.” Alaíde precisa desses vãos para pronunciar cada palavra com fé no que diz ligando notas lentamente sobre uma mesma palavra, um estilo fortalecido com o passar dos anos. Seu mundo hoje é mais das madeiras, que o arranjador Antonio Neves usa tão bem em Turmalina Negra (e que abertura fascinante), Tristonho e Aurorear, do que dos metais e das cordas de seus primeiros discos. E sua fala, para além do vitimismo da traição, é impositiva e serena. “E eu só estou aprendendo”, diz. “Aprendo com cada canção.”
A leitura de Alaíde Costa feita pelo filtro de gerações que não são suas não comete o pecado de um possível ajustamento político de sua voz. Com sua história e seu simbolismo, seria natural a vermos como a resistência aos tempos sombrios, ao recrudescimento diário do racismo e ao reforço de uma ideia de subcondição do feminino – lugares que Alaíde conheceu bem em seus 86 anos de vida. Colocar em suas mãos um cetro, como o aceito e sustentado por Elza Soares, no entanto, por mais tentador que possa parecer, não seria verdadeiro com a mulher que nunca gostou de briga e esvaziaria seu maior ato contra as tempestades de um mundo em derretimento: a delicadeza.
Emicida, Marcus Preto e Pupillo não jogam para plateia alguma que não seja a própria Alaíde ao dispensarem a ela um tratamento artesanal e respeitoso. As canções que chegaram também trazem uma “Alaíde imaginária” que se amalgama com a real e a transforma ao juntar o sofrer e a solitude indissociáveis à sua persona artística, construída por um repertório gravado desde o final dos anos 50, a sentimentos reavaliados trazidos por outras vozes que se tornam agora a voz de Alaíde: a reação serena e superior ao abandono, a valorização do passado como um ativo inviolável e a afirmação de si mesma com uma certeza pacífica e poderosa.
Turmalina Negra não deve abrir o disco por acaso. Além dos sopros de Antonio Neves, de colocarem a alma em flutuação antes da chegada da voz, a canção escrita por Céu e seu irmão, Diogo Poças, anunciam um revigor da pós queda: “Vejo um planeta bem mais colorido / o céu tem pecado, o inferno é divertido / e eu serei quem sou / pedra tão rara, gema mineral / segura, intacta ao assistir ao vendaval / das movimentações / que virão.” É a força que volta travestida de delicadeza no ajuste de contas de Tristonho e na dura tomada de consciência feminina de Praga. A voz de Alaíde canta Nenhuma Ilusão, de Fátima Guedes, sabendo que o tempo para o beijo de seu amor está no fim, mas o sonho não, e recita “sua alma serena feita de perdão” em Berceuse. Sai de si apenas em Pessoa-Ilha, grande mas talvez a menos Alaíde do álbum, e termina anunciando em Aurorear que “sempre é momento de analisar o tempo, de preparar o chão, de semear”.