Obra de Pelão, o homem que lançou os primeiros LPs de Cartola e Adoniran, é lançada em livro


'Pelão - A Revolução pela Música', de Celso de Campos Jr, mostra o trabalho do produtor que apostou em senhores velhos e pobres desprezados pelas gravadoras

Por Julio Maria

Essa é uma história de obstinação. Uma ideologia que, mesmo na contramão de tudo o que se fazia à época dentro dos estúdios nos primeiros anos da década de 1970, não foi impedida de acontecer graças a apenas um homem. João Carlos Botezelli, o Pelão, peitou a descrença para gravar o primeiro álbum de Cartola, em 1974, quando o compositor de Mangueira já tinha 65 anos. “Cartola não vende discos”, havia dito a direção da Sinter a um grupo que a procurou em 1956 pedindo que olhasse para a joia da Mangueira. “Você está achando que aqui é um asilo?”, respondeu o então diretor Manoel Barenbein, na Philips, diante de Pelão, conforme suas memórias. Mesmo na gravadora que aceitou lançar o homem velho e negro do morro sem nenhuma certeza de algum retorno, o dono da companhia, Marcus Pereira, não gostou do resultado: “Ele achou uma merda. Disse que não lançaria, que tinha latido de cachorro no meio. P... que pariu, era a cuíca do Marçal. O cara confundiu a cuíca de Marçal com latido de cachorro!”

Pelão, em 2013 Foto: LUIZA CONDE

As frases de Pelão e as histórias resultantes de suas obstinações estão em um livro que vem fazer justiça a uma das cabeças mais visionárias por trás dos momentos chave da música brasileira. Pelão – A Revolução Pela Música, do também combatente Celso de Campos Jr, dono da própria editora que criou para fazer projetos nem sempre de interesses financeiros do mercado editorial, a Garoa Livros, traça um perfil biográfico centrado nas realizações do produtor dos morros. Além de Cartola, foi graças a Pelão que gravaram seus primeiros LPs quando pensaram que isso não aconteceria mais Carlos Cachaça, aos 74 anos, em 1976; Adoniran Barbosa, aos 64 anos, em 1974; e Nelson Cavaquinho, em seu primeiro álbum “sendo ele mesmo”, também em 1973, quando já virava a casa dos 63 anos. Todos considerados pelas gravadoras como “coisas de museu” até Pelão mostrar a força que havia por trás daquelas gravações.

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Ao apostar suas fichas em um álbum deixando Adoniran ser ele mesmo para cantar Saudosa Maloca, Trem Das Onze, Iracema e As Mariposas da forma como todas elas entrariam para a história (e só por esse disco, Pelão já justificaria sua passagem pelo planeta), Botezelli rompia uma lógica que se impunha nas gravações de artistas considerados mais “rústicos”. Em vez de embrulhá-los para presente, usando a força das orquestras de cordas e arranjos grandiloquentes feitos por músicos de estúdio como uma forma velada de compensar suas prováveis deficiências, Pelão queria que soassem como soavam no botequim. Se Nelson Cavaquinho tocava seu violão com aqueles dedos duros e cantava sem acabamento, era assim que deveria soar em disco. “A interpretação de Saudosa Maloca com os Demônios da Garoa não faz parecer que a letra trata de uma tragédia. Pelão conseguiu trazer o Adoniran dos anos 50 de volta.”

Ao lado de Cartola Foto: Garoa Livros

O produtor não só queria registrar arranjos com a sonoridade mais próxima da verdade do artista, mas extrair também a gravação mais sincera feita pelo próprio artista que, em geral, era a primeira. Foi assim quando gravou o disco Um Pequeno Concerto, com o violeiro Roberto Correa, em 1988. Depois de um primeiro take de um dos temas, Pelão decidiu: “Não vamos gravar o segundo, já está pronta.” Mas Roberto queria fazer mais. “Mas eu posso tocar melhor!”, disse Correa. E ouviu de volta: “Você pode até tocar melhor, mas é essa que vai ficar.”

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“Eu só não gostei muito de aparecer demais”, diz Pelão ao Estadão, por telefone, de sua casa em Perdizes. Ele comenta que gostou do trabalho de Celso – e quem o conhece sabe que, se não gostasse, falaria sem cerimônias. “Quem fez toda a história foram esses músicos”, diz, minimizando sua presença. Além do foco nas obras, o livro traz bastidores de outros álbuns, como o Tributo à Música de Donga, de 1975; o álbum do então jovem Carlinhos Vergueiro, de 1976; e Coisas que Lua Canta, uma homenagem à obra de Luiz Gonzaga, lançado em 1983, com a gravação de Asa Branca que seria considerada a melhor versão de sua original pelo próprio Gonzagão.

As histórias que chegam nas paralelas, lembradas por Celso, são saborosas. De Cachaça, ele recorda da passagem contada sobre o projeto encampado pelo maestro Leopold Stokowski para gravar, ao lado de Cartola, o samba Quem me vê Sorrindo à bordo do navio Uruguay, em 1942. Uma antiga passagem de um fato épico que ficou para a história e do qual Cachaça não participou. “Eu estava com a ideia de ir, sabe? E até fui. Só que não cheguei até lá”, disse o sambista a Pelão. “Fui parando nos bares. E no último estava tão bom que fiquei ali mesmo com o meu pessoal. No navio ia ser uma coisa meio chata, encontrar o Villa-Lobos, aquela turma dele...” Ao decidir gravar um disco em homenagem a Donga, o visitou quando o sambista já estava doente e teve a confirmação, ao ver seu material de letras guardado organizadamente que, como suspeitava, ele se tratava de muito mais do que o compositor de Pelo Telefone

Capa do livro de Celso de CamposJr Foto: Garoa Livros

Essa é uma história de obstinação. Uma ideologia que, mesmo na contramão de tudo o que se fazia à época dentro dos estúdios nos primeiros anos da década de 1970, não foi impedida de acontecer graças a apenas um homem. João Carlos Botezelli, o Pelão, peitou a descrença para gravar o primeiro álbum de Cartola, em 1974, quando o compositor de Mangueira já tinha 65 anos. “Cartola não vende discos”, havia dito a direção da Sinter a um grupo que a procurou em 1956 pedindo que olhasse para a joia da Mangueira. “Você está achando que aqui é um asilo?”, respondeu o então diretor Manoel Barenbein, na Philips, diante de Pelão, conforme suas memórias. Mesmo na gravadora que aceitou lançar o homem velho e negro do morro sem nenhuma certeza de algum retorno, o dono da companhia, Marcus Pereira, não gostou do resultado: “Ele achou uma merda. Disse que não lançaria, que tinha latido de cachorro no meio. P... que pariu, era a cuíca do Marçal. O cara confundiu a cuíca de Marçal com latido de cachorro!”

Pelão, em 2013 Foto: LUIZA CONDE

As frases de Pelão e as histórias resultantes de suas obstinações estão em um livro que vem fazer justiça a uma das cabeças mais visionárias por trás dos momentos chave da música brasileira. Pelão – A Revolução Pela Música, do também combatente Celso de Campos Jr, dono da própria editora que criou para fazer projetos nem sempre de interesses financeiros do mercado editorial, a Garoa Livros, traça um perfil biográfico centrado nas realizações do produtor dos morros. Além de Cartola, foi graças a Pelão que gravaram seus primeiros LPs quando pensaram que isso não aconteceria mais Carlos Cachaça, aos 74 anos, em 1976; Adoniran Barbosa, aos 64 anos, em 1974; e Nelson Cavaquinho, em seu primeiro álbum “sendo ele mesmo”, também em 1973, quando já virava a casa dos 63 anos. Todos considerados pelas gravadoras como “coisas de museu” até Pelão mostrar a força que havia por trás daquelas gravações.

Ao apostar suas fichas em um álbum deixando Adoniran ser ele mesmo para cantar Saudosa Maloca, Trem Das Onze, Iracema e As Mariposas da forma como todas elas entrariam para a história (e só por esse disco, Pelão já justificaria sua passagem pelo planeta), Botezelli rompia uma lógica que se impunha nas gravações de artistas considerados mais “rústicos”. Em vez de embrulhá-los para presente, usando a força das orquestras de cordas e arranjos grandiloquentes feitos por músicos de estúdio como uma forma velada de compensar suas prováveis deficiências, Pelão queria que soassem como soavam no botequim. Se Nelson Cavaquinho tocava seu violão com aqueles dedos duros e cantava sem acabamento, era assim que deveria soar em disco. “A interpretação de Saudosa Maloca com os Demônios da Garoa não faz parecer que a letra trata de uma tragédia. Pelão conseguiu trazer o Adoniran dos anos 50 de volta.”

Ao lado de Cartola Foto: Garoa Livros

O produtor não só queria registrar arranjos com a sonoridade mais próxima da verdade do artista, mas extrair também a gravação mais sincera feita pelo próprio artista que, em geral, era a primeira. Foi assim quando gravou o disco Um Pequeno Concerto, com o violeiro Roberto Correa, em 1988. Depois de um primeiro take de um dos temas, Pelão decidiu: “Não vamos gravar o segundo, já está pronta.” Mas Roberto queria fazer mais. “Mas eu posso tocar melhor!”, disse Correa. E ouviu de volta: “Você pode até tocar melhor, mas é essa que vai ficar.”

“Eu só não gostei muito de aparecer demais”, diz Pelão ao Estadão, por telefone, de sua casa em Perdizes. Ele comenta que gostou do trabalho de Celso – e quem o conhece sabe que, se não gostasse, falaria sem cerimônias. “Quem fez toda a história foram esses músicos”, diz, minimizando sua presença. Além do foco nas obras, o livro traz bastidores de outros álbuns, como o Tributo à Música de Donga, de 1975; o álbum do então jovem Carlinhos Vergueiro, de 1976; e Coisas que Lua Canta, uma homenagem à obra de Luiz Gonzaga, lançado em 1983, com a gravação de Asa Branca que seria considerada a melhor versão de sua original pelo próprio Gonzagão.

As histórias que chegam nas paralelas, lembradas por Celso, são saborosas. De Cachaça, ele recorda da passagem contada sobre o projeto encampado pelo maestro Leopold Stokowski para gravar, ao lado de Cartola, o samba Quem me vê Sorrindo à bordo do navio Uruguay, em 1942. Uma antiga passagem de um fato épico que ficou para a história e do qual Cachaça não participou. “Eu estava com a ideia de ir, sabe? E até fui. Só que não cheguei até lá”, disse o sambista a Pelão. “Fui parando nos bares. E no último estava tão bom que fiquei ali mesmo com o meu pessoal. No navio ia ser uma coisa meio chata, encontrar o Villa-Lobos, aquela turma dele...” Ao decidir gravar um disco em homenagem a Donga, o visitou quando o sambista já estava doente e teve a confirmação, ao ver seu material de letras guardado organizadamente que, como suspeitava, ele se tratava de muito mais do que o compositor de Pelo Telefone

Capa do livro de Celso de CamposJr Foto: Garoa Livros

Essa é uma história de obstinação. Uma ideologia que, mesmo na contramão de tudo o que se fazia à época dentro dos estúdios nos primeiros anos da década de 1970, não foi impedida de acontecer graças a apenas um homem. João Carlos Botezelli, o Pelão, peitou a descrença para gravar o primeiro álbum de Cartola, em 1974, quando o compositor de Mangueira já tinha 65 anos. “Cartola não vende discos”, havia dito a direção da Sinter a um grupo que a procurou em 1956 pedindo que olhasse para a joia da Mangueira. “Você está achando que aqui é um asilo?”, respondeu o então diretor Manoel Barenbein, na Philips, diante de Pelão, conforme suas memórias. Mesmo na gravadora que aceitou lançar o homem velho e negro do morro sem nenhuma certeza de algum retorno, o dono da companhia, Marcus Pereira, não gostou do resultado: “Ele achou uma merda. Disse que não lançaria, que tinha latido de cachorro no meio. P... que pariu, era a cuíca do Marçal. O cara confundiu a cuíca de Marçal com latido de cachorro!”

Pelão, em 2013 Foto: LUIZA CONDE

As frases de Pelão e as histórias resultantes de suas obstinações estão em um livro que vem fazer justiça a uma das cabeças mais visionárias por trás dos momentos chave da música brasileira. Pelão – A Revolução Pela Música, do também combatente Celso de Campos Jr, dono da própria editora que criou para fazer projetos nem sempre de interesses financeiros do mercado editorial, a Garoa Livros, traça um perfil biográfico centrado nas realizações do produtor dos morros. Além de Cartola, foi graças a Pelão que gravaram seus primeiros LPs quando pensaram que isso não aconteceria mais Carlos Cachaça, aos 74 anos, em 1976; Adoniran Barbosa, aos 64 anos, em 1974; e Nelson Cavaquinho, em seu primeiro álbum “sendo ele mesmo”, também em 1973, quando já virava a casa dos 63 anos. Todos considerados pelas gravadoras como “coisas de museu” até Pelão mostrar a força que havia por trás daquelas gravações.

Ao apostar suas fichas em um álbum deixando Adoniran ser ele mesmo para cantar Saudosa Maloca, Trem Das Onze, Iracema e As Mariposas da forma como todas elas entrariam para a história (e só por esse disco, Pelão já justificaria sua passagem pelo planeta), Botezelli rompia uma lógica que se impunha nas gravações de artistas considerados mais “rústicos”. Em vez de embrulhá-los para presente, usando a força das orquestras de cordas e arranjos grandiloquentes feitos por músicos de estúdio como uma forma velada de compensar suas prováveis deficiências, Pelão queria que soassem como soavam no botequim. Se Nelson Cavaquinho tocava seu violão com aqueles dedos duros e cantava sem acabamento, era assim que deveria soar em disco. “A interpretação de Saudosa Maloca com os Demônios da Garoa não faz parecer que a letra trata de uma tragédia. Pelão conseguiu trazer o Adoniran dos anos 50 de volta.”

Ao lado de Cartola Foto: Garoa Livros

O produtor não só queria registrar arranjos com a sonoridade mais próxima da verdade do artista, mas extrair também a gravação mais sincera feita pelo próprio artista que, em geral, era a primeira. Foi assim quando gravou o disco Um Pequeno Concerto, com o violeiro Roberto Correa, em 1988. Depois de um primeiro take de um dos temas, Pelão decidiu: “Não vamos gravar o segundo, já está pronta.” Mas Roberto queria fazer mais. “Mas eu posso tocar melhor!”, disse Correa. E ouviu de volta: “Você pode até tocar melhor, mas é essa que vai ficar.”

“Eu só não gostei muito de aparecer demais”, diz Pelão ao Estadão, por telefone, de sua casa em Perdizes. Ele comenta que gostou do trabalho de Celso – e quem o conhece sabe que, se não gostasse, falaria sem cerimônias. “Quem fez toda a história foram esses músicos”, diz, minimizando sua presença. Além do foco nas obras, o livro traz bastidores de outros álbuns, como o Tributo à Música de Donga, de 1975; o álbum do então jovem Carlinhos Vergueiro, de 1976; e Coisas que Lua Canta, uma homenagem à obra de Luiz Gonzaga, lançado em 1983, com a gravação de Asa Branca que seria considerada a melhor versão de sua original pelo próprio Gonzagão.

As histórias que chegam nas paralelas, lembradas por Celso, são saborosas. De Cachaça, ele recorda da passagem contada sobre o projeto encampado pelo maestro Leopold Stokowski para gravar, ao lado de Cartola, o samba Quem me vê Sorrindo à bordo do navio Uruguay, em 1942. Uma antiga passagem de um fato épico que ficou para a história e do qual Cachaça não participou. “Eu estava com a ideia de ir, sabe? E até fui. Só que não cheguei até lá”, disse o sambista a Pelão. “Fui parando nos bares. E no último estava tão bom que fiquei ali mesmo com o meu pessoal. No navio ia ser uma coisa meio chata, encontrar o Villa-Lobos, aquela turma dele...” Ao decidir gravar um disco em homenagem a Donga, o visitou quando o sambista já estava doente e teve a confirmação, ao ver seu material de letras guardado organizadamente que, como suspeitava, ele se tratava de muito mais do que o compositor de Pelo Telefone

Capa do livro de Celso de CamposJr Foto: Garoa Livros

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