Pacote celebra 100 anos de Clementina de Jesus


Por Agencia Estado

Ainda é para poucos. A caixa Clementina de Jesus - 100 anos é um brinde da BR para seus clientes. Mas a partir do segundo semestre, estará à venda, promete a gravadora EMI-Odeon. O pacote reúne, em formato digital, os oito discos gravados por Clementina para a gravadora entre 1965 e 1979. É quase a obra fonográfica completa da cantora. Acompanha a caixa um libreto com 34 páginas e textos da jornalista Lena Frias, que entende como ninguém na grande imprensa de cultura popular, em especial da cultura negra, e do produtor Hermínio Bello de Carvalho, responsável pela chegada de Clementina aos ouvidos nacionais. Hermínio conheceu a empregada doméstica, engomadeira e banqueteira no dia - conta ele - 15 de agosto de 1963. Havia encontrado a mãe da voz brasileira. Naquele primeiro encontro, era uma festa de Nossa Senhora da Glória. Ela cantava na Taberna da Glória. "Iluminada em suas rendas brancas, a partideira cantava como sempre cantou, de alegria, por necessidade de comunicação", conta Hermínio. Ele a perdeu de vista. Foi reencontrá-la no Zicartola, onde os jovens de classe média (a turma da bossa nova, Nara Leão à frente) iam ouvir o povo e sua música. Levou-a ao palco do Teatro Jovem, no Rio de Janeiro, no ano seguinte, inaugurando uma série de concertos que misturava música erudita (pelo violão de Turíbio Santos) e tradição popular, ancestralidade ? pela voz de Mãe Quelé (de Que-le-men-ti-na). Era uma ousadia. Pela mistura de linguagens. Pela idade da estreante. Clementina tinha 64 anos. A patroa, contava, reclamava dela quando se entretinha, cantarolando, ao bater roupa no tanque. "Você está cantando ou miando?", perguntava. Muitos anos depois, como lembra Lena Frias, a cantora ? extremamente técnica - Leny Andrade diria: "Nunca consegui produzir com minha garganta os sons que Clementina emite com a dela. Clementina é o horizonte da música brasileira e também o seu limite." Em março de 1965, o mesmo Hermínio criou um musical, Rosa de Ouro, que juntava uma parte da turma do Zicartola, mais a veterana Araci Cortes, que, com mais de 60 anos, depois de décadas de glória, andava esquecida. Os outros astros eram Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nélson Sargento, Nescarzinho (ou Anescarzinho) do Império e o jovem e desconhecido Paulinho da Viola. Clementina começava a escapar, como enfatizou certa vez o crítico Moacyr Andrade, daquele segmento - ao qual perteceram também Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho - marginalizado, "condenada a ser eternamente cantora de forno e fogão, para desagrado da patroa de gosto colonizado." Mas o que havia e há, registrado em disco, de tão especial na voz daquela senhora negra, cuja beleza hierática fugia tão radicalmente aos padrões que a televisão começava a impor - de juventude, beleza simétrica, gosto - não se usava, então, a palavra - globalizado? Convém lembrar um pouco da história de Clementina de Jesus da Silva, nascida em Valença, no interior do Estado do Rio provavelmente em fevereiro de 1901 (mas outras versões apontam o ano de 1907, filha de violeiro e capoeirista, que ouvia em criança cantos de trabalho, jongos, benditos, ladainhas e partidos altos cantados pela mãe. Em criança, foi morar em Osvaldo Cruz, subúrbio do Rio; adolescente, era pastorinha no bloco Moreninhas das Campinhas; aos 15 anos, cantava em rodas de samba; em seguida, passou a freqüentar a Portela; casou-se, já com quase 40 anos, com Albino Pé Grande, mangueirense histórico, e virou casaca; enquanto isso lavava, passava, cozinhava e recebia bronca por cantar. Manteve a voz imaculadamente negra, em registro grave de cantora de partido e jongo. A dicção perfeita não era fruto de esforço, mas habilidade. Clementina não tinha a preocupação de resgatar história ou fazer história: carregava no canto os séculos da raça, traduzia a formação do povo brasileiro - Moacyr Luz e Aldir Blanc atribuem a ela "a idade da sereia", no samba Rainha Negra, combinando, na frase aparentemente simples, de quatro palavras, toda a tradição da civilização ocidental e as dores da diáspora negra. No show Rosa de Ouro, um partido alto composto por Hermínio, Paulinho da Viola e Elton Medeiros anunciava sua entrada: "Clementina, cadê você, cadê você, cadê você?" Ela entrava, cruzando e descruzando os braços erguidos e, escreve Lena Frias, "a voz parecia subir da terra, vir do oco do tempo, provocando sentimentos perturbadores e antigos, chamando memórias talvez dessa Eva negra, germinal africana de toda a raça humana, mãe primeira, amorosa e terrível." Prossegue Lena: "O canto de raízes afro-brasílicas fazia ressoar tambores, cantos e rezas ancestrais em gente loura de olho azul, gente mulata de olho verde, gente de pele amarelada, morena, jambo ou curiboca, de olho preto ou marrom. Brancos pretos e mestiços de todos os matizes. Lundus e calangos; pontos e benditos; novenas e terços recolhidos à beira-córrego, nos rituais de vida e morte do universo rural de Valença e no recolhimento do santuário de Santo Antônio de Carambito; samba duro e partido alto recolhidos nos quintais cariocas de pagode e santo." Tudo integrado ao corpo e expresso em ritmo, voz, passo e gesto. Cantos de senzala, sincretizados nos cânticos e rezas das igrejas, principalmente nas festas dos oragos. (...) Uma força da natureza, como o temporal que desabou na noite de estréia do "Rosa de Ouro", inundando as ruas de Botafogo, abençoando tudo com a água pura da chuva, arrasando com raios e trovões a intolerância e o preconceito." É esse poder que está nos oito discos que comemoram os - possivelmente - 100 anos de Clementina de Jesus. O primeiro da série reúne os dois volumes, gravados ao vivo, lançados em 1965 e 1967, do show Rosa de Ouro. Os dois elepês já haviam sido lançados em CD, mas aquela primeira edição esgotou-se há muito tempo. Clementina de Jesus, o disco número dois, é de 1966 e tem cantos da tradição, de domínio público, originais de Paulo da Portela, Cartola, Zé da Zilda. Conta com a participação de João da Gente. Gente da Antiga, de 1968, é Clementina mais Pixinguinha e João da Baiana. Do mesmo ano é Mudando de Conversa, que junta Mãe Quelé com Ciro Monteiro e Nora Ney. Ainda em 1968, saiu Fala, Mangueira, outra reunião daquelas que fazem o cristão e o mouro se perguntarem o motivo de não ter sido antes lançada em CD: Clementina, Nélson Cavaquinho, Cartola e Odete Amaral. Os outros da caixa comemorativa são Marinheiro Só (1973), Clementina de Jesus (com Carlos Cachaça, 1976) e Clementina e Convidados (com João Bosco, Clara Nunes, Martinho da Vila, Adoniram Barbosa, Dona Ivone Lara e outros, 1979). Clementina de Jesus morreu sem dinheiro e praticamente esquecida, em julho de 1987 - a década que prenunciava Collor, os sertanejos, o pagode, o pragmatismo mercantilista da indústria fonográfica. É hora de soltar as vozes que eles calaram.

Ainda é para poucos. A caixa Clementina de Jesus - 100 anos é um brinde da BR para seus clientes. Mas a partir do segundo semestre, estará à venda, promete a gravadora EMI-Odeon. O pacote reúne, em formato digital, os oito discos gravados por Clementina para a gravadora entre 1965 e 1979. É quase a obra fonográfica completa da cantora. Acompanha a caixa um libreto com 34 páginas e textos da jornalista Lena Frias, que entende como ninguém na grande imprensa de cultura popular, em especial da cultura negra, e do produtor Hermínio Bello de Carvalho, responsável pela chegada de Clementina aos ouvidos nacionais. Hermínio conheceu a empregada doméstica, engomadeira e banqueteira no dia - conta ele - 15 de agosto de 1963. Havia encontrado a mãe da voz brasileira. Naquele primeiro encontro, era uma festa de Nossa Senhora da Glória. Ela cantava na Taberna da Glória. "Iluminada em suas rendas brancas, a partideira cantava como sempre cantou, de alegria, por necessidade de comunicação", conta Hermínio. Ele a perdeu de vista. Foi reencontrá-la no Zicartola, onde os jovens de classe média (a turma da bossa nova, Nara Leão à frente) iam ouvir o povo e sua música. Levou-a ao palco do Teatro Jovem, no Rio de Janeiro, no ano seguinte, inaugurando uma série de concertos que misturava música erudita (pelo violão de Turíbio Santos) e tradição popular, ancestralidade ? pela voz de Mãe Quelé (de Que-le-men-ti-na). Era uma ousadia. Pela mistura de linguagens. Pela idade da estreante. Clementina tinha 64 anos. A patroa, contava, reclamava dela quando se entretinha, cantarolando, ao bater roupa no tanque. "Você está cantando ou miando?", perguntava. Muitos anos depois, como lembra Lena Frias, a cantora ? extremamente técnica - Leny Andrade diria: "Nunca consegui produzir com minha garganta os sons que Clementina emite com a dela. Clementina é o horizonte da música brasileira e também o seu limite." Em março de 1965, o mesmo Hermínio criou um musical, Rosa de Ouro, que juntava uma parte da turma do Zicartola, mais a veterana Araci Cortes, que, com mais de 60 anos, depois de décadas de glória, andava esquecida. Os outros astros eram Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nélson Sargento, Nescarzinho (ou Anescarzinho) do Império e o jovem e desconhecido Paulinho da Viola. Clementina começava a escapar, como enfatizou certa vez o crítico Moacyr Andrade, daquele segmento - ao qual perteceram também Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho - marginalizado, "condenada a ser eternamente cantora de forno e fogão, para desagrado da patroa de gosto colonizado." Mas o que havia e há, registrado em disco, de tão especial na voz daquela senhora negra, cuja beleza hierática fugia tão radicalmente aos padrões que a televisão começava a impor - de juventude, beleza simétrica, gosto - não se usava, então, a palavra - globalizado? Convém lembrar um pouco da história de Clementina de Jesus da Silva, nascida em Valença, no interior do Estado do Rio provavelmente em fevereiro de 1901 (mas outras versões apontam o ano de 1907, filha de violeiro e capoeirista, que ouvia em criança cantos de trabalho, jongos, benditos, ladainhas e partidos altos cantados pela mãe. Em criança, foi morar em Osvaldo Cruz, subúrbio do Rio; adolescente, era pastorinha no bloco Moreninhas das Campinhas; aos 15 anos, cantava em rodas de samba; em seguida, passou a freqüentar a Portela; casou-se, já com quase 40 anos, com Albino Pé Grande, mangueirense histórico, e virou casaca; enquanto isso lavava, passava, cozinhava e recebia bronca por cantar. Manteve a voz imaculadamente negra, em registro grave de cantora de partido e jongo. A dicção perfeita não era fruto de esforço, mas habilidade. Clementina não tinha a preocupação de resgatar história ou fazer história: carregava no canto os séculos da raça, traduzia a formação do povo brasileiro - Moacyr Luz e Aldir Blanc atribuem a ela "a idade da sereia", no samba Rainha Negra, combinando, na frase aparentemente simples, de quatro palavras, toda a tradição da civilização ocidental e as dores da diáspora negra. No show Rosa de Ouro, um partido alto composto por Hermínio, Paulinho da Viola e Elton Medeiros anunciava sua entrada: "Clementina, cadê você, cadê você, cadê você?" Ela entrava, cruzando e descruzando os braços erguidos e, escreve Lena Frias, "a voz parecia subir da terra, vir do oco do tempo, provocando sentimentos perturbadores e antigos, chamando memórias talvez dessa Eva negra, germinal africana de toda a raça humana, mãe primeira, amorosa e terrível." Prossegue Lena: "O canto de raízes afro-brasílicas fazia ressoar tambores, cantos e rezas ancestrais em gente loura de olho azul, gente mulata de olho verde, gente de pele amarelada, morena, jambo ou curiboca, de olho preto ou marrom. Brancos pretos e mestiços de todos os matizes. Lundus e calangos; pontos e benditos; novenas e terços recolhidos à beira-córrego, nos rituais de vida e morte do universo rural de Valença e no recolhimento do santuário de Santo Antônio de Carambito; samba duro e partido alto recolhidos nos quintais cariocas de pagode e santo." Tudo integrado ao corpo e expresso em ritmo, voz, passo e gesto. Cantos de senzala, sincretizados nos cânticos e rezas das igrejas, principalmente nas festas dos oragos. (...) Uma força da natureza, como o temporal que desabou na noite de estréia do "Rosa de Ouro", inundando as ruas de Botafogo, abençoando tudo com a água pura da chuva, arrasando com raios e trovões a intolerância e o preconceito." É esse poder que está nos oito discos que comemoram os - possivelmente - 100 anos de Clementina de Jesus. O primeiro da série reúne os dois volumes, gravados ao vivo, lançados em 1965 e 1967, do show Rosa de Ouro. Os dois elepês já haviam sido lançados em CD, mas aquela primeira edição esgotou-se há muito tempo. Clementina de Jesus, o disco número dois, é de 1966 e tem cantos da tradição, de domínio público, originais de Paulo da Portela, Cartola, Zé da Zilda. Conta com a participação de João da Gente. Gente da Antiga, de 1968, é Clementina mais Pixinguinha e João da Baiana. Do mesmo ano é Mudando de Conversa, que junta Mãe Quelé com Ciro Monteiro e Nora Ney. Ainda em 1968, saiu Fala, Mangueira, outra reunião daquelas que fazem o cristão e o mouro se perguntarem o motivo de não ter sido antes lançada em CD: Clementina, Nélson Cavaquinho, Cartola e Odete Amaral. Os outros da caixa comemorativa são Marinheiro Só (1973), Clementina de Jesus (com Carlos Cachaça, 1976) e Clementina e Convidados (com João Bosco, Clara Nunes, Martinho da Vila, Adoniram Barbosa, Dona Ivone Lara e outros, 1979). Clementina de Jesus morreu sem dinheiro e praticamente esquecida, em julho de 1987 - a década que prenunciava Collor, os sertanejos, o pagode, o pragmatismo mercantilista da indústria fonográfica. É hora de soltar as vozes que eles calaram.

Ainda é para poucos. A caixa Clementina de Jesus - 100 anos é um brinde da BR para seus clientes. Mas a partir do segundo semestre, estará à venda, promete a gravadora EMI-Odeon. O pacote reúne, em formato digital, os oito discos gravados por Clementina para a gravadora entre 1965 e 1979. É quase a obra fonográfica completa da cantora. Acompanha a caixa um libreto com 34 páginas e textos da jornalista Lena Frias, que entende como ninguém na grande imprensa de cultura popular, em especial da cultura negra, e do produtor Hermínio Bello de Carvalho, responsável pela chegada de Clementina aos ouvidos nacionais. Hermínio conheceu a empregada doméstica, engomadeira e banqueteira no dia - conta ele - 15 de agosto de 1963. Havia encontrado a mãe da voz brasileira. Naquele primeiro encontro, era uma festa de Nossa Senhora da Glória. Ela cantava na Taberna da Glória. "Iluminada em suas rendas brancas, a partideira cantava como sempre cantou, de alegria, por necessidade de comunicação", conta Hermínio. Ele a perdeu de vista. Foi reencontrá-la no Zicartola, onde os jovens de classe média (a turma da bossa nova, Nara Leão à frente) iam ouvir o povo e sua música. Levou-a ao palco do Teatro Jovem, no Rio de Janeiro, no ano seguinte, inaugurando uma série de concertos que misturava música erudita (pelo violão de Turíbio Santos) e tradição popular, ancestralidade ? pela voz de Mãe Quelé (de Que-le-men-ti-na). Era uma ousadia. Pela mistura de linguagens. Pela idade da estreante. Clementina tinha 64 anos. A patroa, contava, reclamava dela quando se entretinha, cantarolando, ao bater roupa no tanque. "Você está cantando ou miando?", perguntava. Muitos anos depois, como lembra Lena Frias, a cantora ? extremamente técnica - Leny Andrade diria: "Nunca consegui produzir com minha garganta os sons que Clementina emite com a dela. Clementina é o horizonte da música brasileira e também o seu limite." Em março de 1965, o mesmo Hermínio criou um musical, Rosa de Ouro, que juntava uma parte da turma do Zicartola, mais a veterana Araci Cortes, que, com mais de 60 anos, depois de décadas de glória, andava esquecida. Os outros astros eram Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nélson Sargento, Nescarzinho (ou Anescarzinho) do Império e o jovem e desconhecido Paulinho da Viola. Clementina começava a escapar, como enfatizou certa vez o crítico Moacyr Andrade, daquele segmento - ao qual perteceram também Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho - marginalizado, "condenada a ser eternamente cantora de forno e fogão, para desagrado da patroa de gosto colonizado." Mas o que havia e há, registrado em disco, de tão especial na voz daquela senhora negra, cuja beleza hierática fugia tão radicalmente aos padrões que a televisão começava a impor - de juventude, beleza simétrica, gosto - não se usava, então, a palavra - globalizado? Convém lembrar um pouco da história de Clementina de Jesus da Silva, nascida em Valença, no interior do Estado do Rio provavelmente em fevereiro de 1901 (mas outras versões apontam o ano de 1907, filha de violeiro e capoeirista, que ouvia em criança cantos de trabalho, jongos, benditos, ladainhas e partidos altos cantados pela mãe. Em criança, foi morar em Osvaldo Cruz, subúrbio do Rio; adolescente, era pastorinha no bloco Moreninhas das Campinhas; aos 15 anos, cantava em rodas de samba; em seguida, passou a freqüentar a Portela; casou-se, já com quase 40 anos, com Albino Pé Grande, mangueirense histórico, e virou casaca; enquanto isso lavava, passava, cozinhava e recebia bronca por cantar. Manteve a voz imaculadamente negra, em registro grave de cantora de partido e jongo. A dicção perfeita não era fruto de esforço, mas habilidade. Clementina não tinha a preocupação de resgatar história ou fazer história: carregava no canto os séculos da raça, traduzia a formação do povo brasileiro - Moacyr Luz e Aldir Blanc atribuem a ela "a idade da sereia", no samba Rainha Negra, combinando, na frase aparentemente simples, de quatro palavras, toda a tradição da civilização ocidental e as dores da diáspora negra. No show Rosa de Ouro, um partido alto composto por Hermínio, Paulinho da Viola e Elton Medeiros anunciava sua entrada: "Clementina, cadê você, cadê você, cadê você?" Ela entrava, cruzando e descruzando os braços erguidos e, escreve Lena Frias, "a voz parecia subir da terra, vir do oco do tempo, provocando sentimentos perturbadores e antigos, chamando memórias talvez dessa Eva negra, germinal africana de toda a raça humana, mãe primeira, amorosa e terrível." Prossegue Lena: "O canto de raízes afro-brasílicas fazia ressoar tambores, cantos e rezas ancestrais em gente loura de olho azul, gente mulata de olho verde, gente de pele amarelada, morena, jambo ou curiboca, de olho preto ou marrom. Brancos pretos e mestiços de todos os matizes. Lundus e calangos; pontos e benditos; novenas e terços recolhidos à beira-córrego, nos rituais de vida e morte do universo rural de Valença e no recolhimento do santuário de Santo Antônio de Carambito; samba duro e partido alto recolhidos nos quintais cariocas de pagode e santo." Tudo integrado ao corpo e expresso em ritmo, voz, passo e gesto. Cantos de senzala, sincretizados nos cânticos e rezas das igrejas, principalmente nas festas dos oragos. (...) Uma força da natureza, como o temporal que desabou na noite de estréia do "Rosa de Ouro", inundando as ruas de Botafogo, abençoando tudo com a água pura da chuva, arrasando com raios e trovões a intolerância e o preconceito." É esse poder que está nos oito discos que comemoram os - possivelmente - 100 anos de Clementina de Jesus. O primeiro da série reúne os dois volumes, gravados ao vivo, lançados em 1965 e 1967, do show Rosa de Ouro. Os dois elepês já haviam sido lançados em CD, mas aquela primeira edição esgotou-se há muito tempo. Clementina de Jesus, o disco número dois, é de 1966 e tem cantos da tradição, de domínio público, originais de Paulo da Portela, Cartola, Zé da Zilda. Conta com a participação de João da Gente. Gente da Antiga, de 1968, é Clementina mais Pixinguinha e João da Baiana. Do mesmo ano é Mudando de Conversa, que junta Mãe Quelé com Ciro Monteiro e Nora Ney. Ainda em 1968, saiu Fala, Mangueira, outra reunião daquelas que fazem o cristão e o mouro se perguntarem o motivo de não ter sido antes lançada em CD: Clementina, Nélson Cavaquinho, Cartola e Odete Amaral. Os outros da caixa comemorativa são Marinheiro Só (1973), Clementina de Jesus (com Carlos Cachaça, 1976) e Clementina e Convidados (com João Bosco, Clara Nunes, Martinho da Vila, Adoniram Barbosa, Dona Ivone Lara e outros, 1979). Clementina de Jesus morreu sem dinheiro e praticamente esquecida, em julho de 1987 - a década que prenunciava Collor, os sertanejos, o pagode, o pragmatismo mercantilista da indústria fonográfica. É hora de soltar as vozes que eles calaram.

Ainda é para poucos. A caixa Clementina de Jesus - 100 anos é um brinde da BR para seus clientes. Mas a partir do segundo semestre, estará à venda, promete a gravadora EMI-Odeon. O pacote reúne, em formato digital, os oito discos gravados por Clementina para a gravadora entre 1965 e 1979. É quase a obra fonográfica completa da cantora. Acompanha a caixa um libreto com 34 páginas e textos da jornalista Lena Frias, que entende como ninguém na grande imprensa de cultura popular, em especial da cultura negra, e do produtor Hermínio Bello de Carvalho, responsável pela chegada de Clementina aos ouvidos nacionais. Hermínio conheceu a empregada doméstica, engomadeira e banqueteira no dia - conta ele - 15 de agosto de 1963. Havia encontrado a mãe da voz brasileira. Naquele primeiro encontro, era uma festa de Nossa Senhora da Glória. Ela cantava na Taberna da Glória. "Iluminada em suas rendas brancas, a partideira cantava como sempre cantou, de alegria, por necessidade de comunicação", conta Hermínio. Ele a perdeu de vista. Foi reencontrá-la no Zicartola, onde os jovens de classe média (a turma da bossa nova, Nara Leão à frente) iam ouvir o povo e sua música. Levou-a ao palco do Teatro Jovem, no Rio de Janeiro, no ano seguinte, inaugurando uma série de concertos que misturava música erudita (pelo violão de Turíbio Santos) e tradição popular, ancestralidade ? pela voz de Mãe Quelé (de Que-le-men-ti-na). Era uma ousadia. Pela mistura de linguagens. Pela idade da estreante. Clementina tinha 64 anos. A patroa, contava, reclamava dela quando se entretinha, cantarolando, ao bater roupa no tanque. "Você está cantando ou miando?", perguntava. Muitos anos depois, como lembra Lena Frias, a cantora ? extremamente técnica - Leny Andrade diria: "Nunca consegui produzir com minha garganta os sons que Clementina emite com a dela. Clementina é o horizonte da música brasileira e também o seu limite." Em março de 1965, o mesmo Hermínio criou um musical, Rosa de Ouro, que juntava uma parte da turma do Zicartola, mais a veterana Araci Cortes, que, com mais de 60 anos, depois de décadas de glória, andava esquecida. Os outros astros eram Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nélson Sargento, Nescarzinho (ou Anescarzinho) do Império e o jovem e desconhecido Paulinho da Viola. Clementina começava a escapar, como enfatizou certa vez o crítico Moacyr Andrade, daquele segmento - ao qual perteceram também Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho - marginalizado, "condenada a ser eternamente cantora de forno e fogão, para desagrado da patroa de gosto colonizado." Mas o que havia e há, registrado em disco, de tão especial na voz daquela senhora negra, cuja beleza hierática fugia tão radicalmente aos padrões que a televisão começava a impor - de juventude, beleza simétrica, gosto - não se usava, então, a palavra - globalizado? Convém lembrar um pouco da história de Clementina de Jesus da Silva, nascida em Valença, no interior do Estado do Rio provavelmente em fevereiro de 1901 (mas outras versões apontam o ano de 1907, filha de violeiro e capoeirista, que ouvia em criança cantos de trabalho, jongos, benditos, ladainhas e partidos altos cantados pela mãe. Em criança, foi morar em Osvaldo Cruz, subúrbio do Rio; adolescente, era pastorinha no bloco Moreninhas das Campinhas; aos 15 anos, cantava em rodas de samba; em seguida, passou a freqüentar a Portela; casou-se, já com quase 40 anos, com Albino Pé Grande, mangueirense histórico, e virou casaca; enquanto isso lavava, passava, cozinhava e recebia bronca por cantar. Manteve a voz imaculadamente negra, em registro grave de cantora de partido e jongo. A dicção perfeita não era fruto de esforço, mas habilidade. Clementina não tinha a preocupação de resgatar história ou fazer história: carregava no canto os séculos da raça, traduzia a formação do povo brasileiro - Moacyr Luz e Aldir Blanc atribuem a ela "a idade da sereia", no samba Rainha Negra, combinando, na frase aparentemente simples, de quatro palavras, toda a tradição da civilização ocidental e as dores da diáspora negra. No show Rosa de Ouro, um partido alto composto por Hermínio, Paulinho da Viola e Elton Medeiros anunciava sua entrada: "Clementina, cadê você, cadê você, cadê você?" Ela entrava, cruzando e descruzando os braços erguidos e, escreve Lena Frias, "a voz parecia subir da terra, vir do oco do tempo, provocando sentimentos perturbadores e antigos, chamando memórias talvez dessa Eva negra, germinal africana de toda a raça humana, mãe primeira, amorosa e terrível." Prossegue Lena: "O canto de raízes afro-brasílicas fazia ressoar tambores, cantos e rezas ancestrais em gente loura de olho azul, gente mulata de olho verde, gente de pele amarelada, morena, jambo ou curiboca, de olho preto ou marrom. Brancos pretos e mestiços de todos os matizes. Lundus e calangos; pontos e benditos; novenas e terços recolhidos à beira-córrego, nos rituais de vida e morte do universo rural de Valença e no recolhimento do santuário de Santo Antônio de Carambito; samba duro e partido alto recolhidos nos quintais cariocas de pagode e santo." Tudo integrado ao corpo e expresso em ritmo, voz, passo e gesto. Cantos de senzala, sincretizados nos cânticos e rezas das igrejas, principalmente nas festas dos oragos. (...) Uma força da natureza, como o temporal que desabou na noite de estréia do "Rosa de Ouro", inundando as ruas de Botafogo, abençoando tudo com a água pura da chuva, arrasando com raios e trovões a intolerância e o preconceito." É esse poder que está nos oito discos que comemoram os - possivelmente - 100 anos de Clementina de Jesus. O primeiro da série reúne os dois volumes, gravados ao vivo, lançados em 1965 e 1967, do show Rosa de Ouro. Os dois elepês já haviam sido lançados em CD, mas aquela primeira edição esgotou-se há muito tempo. Clementina de Jesus, o disco número dois, é de 1966 e tem cantos da tradição, de domínio público, originais de Paulo da Portela, Cartola, Zé da Zilda. Conta com a participação de João da Gente. Gente da Antiga, de 1968, é Clementina mais Pixinguinha e João da Baiana. Do mesmo ano é Mudando de Conversa, que junta Mãe Quelé com Ciro Monteiro e Nora Ney. Ainda em 1968, saiu Fala, Mangueira, outra reunião daquelas que fazem o cristão e o mouro se perguntarem o motivo de não ter sido antes lançada em CD: Clementina, Nélson Cavaquinho, Cartola e Odete Amaral. Os outros da caixa comemorativa são Marinheiro Só (1973), Clementina de Jesus (com Carlos Cachaça, 1976) e Clementina e Convidados (com João Bosco, Clara Nunes, Martinho da Vila, Adoniram Barbosa, Dona Ivone Lara e outros, 1979). Clementina de Jesus morreu sem dinheiro e praticamente esquecida, em julho de 1987 - a década que prenunciava Collor, os sertanejos, o pagode, o pragmatismo mercantilista da indústria fonográfica. É hora de soltar as vozes que eles calaram.

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