Aos 75 anos, Paulinho da Viola não se cobra mais. Não está angustiado como há três anos, quando falou ao Estado sobre sua aflição de estar vendo o tempo passar rápido demais enquanto sua estante continua cheia de bons livros que precisam ser lidos o quanto antes. Não tem pressa para entender como o mercado da música vai se colocar, não sabe ainda quando fará seu próximo disco nem fica contando que seu último de inéditas, Bebadosamba, saiu há 22 anos. Mesmo sem dar detalhes, ele diz que os perrengues entre ele e sua gravadora, a Sony Music, estão em um processo de pacificação para resolver questões que colaboraram para o hiato extenso sem álbuns. Uma vez resolvido, Paulinho colocaria um disco de pé em um ano.
O portelense vem a São Paulo para uma espécie de esquenta carnavalesco ao lado da filha, a cantora Beatriz Rabello. Os shows serão de 8 a 11 de fevereiro, no Sesc Pompeia. Não tem músicas novas mas um roteiro fresco pensado por Beatriz, amante do carnaval. No bloco em que cantam juntos, aparecem Mourão Que Não Cai (de Douglas Germano), Sonho de um Carnaval (de Chico Buarque), Enredo do Meu Samba (de Dona Ivone Lara e Jorge Aragão), Lata D’Água (de Luís Antônio e Jota Júnior) e Boato (dele, João Roberto Kelly, o compositor das marchinhas amaldiçoadas pelo tempo das patrulhas, Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão). Esse assunto, das marchas que podem ou não podem mais ser cantadas, também foi comentado pelo sambista nessa entrevista ao Estado, por telefone.
Você deve ser um dos músicos mais cobrados de sua geração. Gil, Caetano e mesmo Chico Buarque lançam discos detempos em tempos. Shows como esses, que vai fazer com Beatriz ou que fez com Marisa Monte em 2017, dariam vazão para a demanda de música em sua vida?
Não é bem assim. Estou resolvendo algumas questões com a gravadora para voltar a fazer discos, e vou voltar a fazer. Tenho algumas músicas, mas não me cobro assim. O encontro que fiz com Marisa Monte foi um sucesso, mesmo não tendo novidades no repertório. O com Beatriz, também sem novidades, será muito bonito. Eu tenho músicas guardadas e poderia fazê-lo em um ano, mas não posso dar mais detalhes com relação à gravadora para não atrapalhar nossas conversas.
O que funciona como estímulo para você criar algo novo?
Olha, eu vou contar uma coisa que não sei ao certo como ela acontece. Quando estou dirigindo, por exemplo, me dou conta de que uma música começa a chegar. Ela vem chegando, eu vou cantando e, lá pelas tantas, me dou conta de que estou fazendo um samba. E é aí, quando penso que estou fazendo, que já fica tudo difícil e a criação começa a empacar.
Ao mesmo tempo, o mundo corre cada vez mais rápido. Não se sente solitário ou deprimido quando percebe que a velocidade das pessoas pode estar acelerada demais para Paulinho da Viola?
Eu resolvi isso chamando todo mundo da minha família e dizendo o seguinte: “Olha gente, eu sou um cara do século 19. Não sei o que estou fazendo aqui. Não sei como parei aqui.” Essa quantidade de informação... eu não tenho esse pique. Eles usam os celulares o dia todo, fazem tudo assim, pelo celular! Mas isso, ao mesmo tempo, não me deprime. Eu leio, tenho uma boa biblioteca, ouço meus discos, ainda gosto do vinil.
Falamos em 2016 e você pareceu aflito, com medo de não ter tempo na vida para ler os livros que queria, ouvir as sinfonias que desejava...
Ah, mas agora não estou mais assim. Eu entendi que não posso ter tudo o que eu quero, que posso usar bem o tempo que tenho sem me angustiar. Aquele momento passou.
Vi que seu repertório do show com Beatriz tem uma música do João Roberto Kelly (Boato), que teve músicas proibidas em blocos de carnaval. Como se coloca na discussão de cantar ou não cantar sambas como Amélia (Mario Lago) ou Cabeleira do Zezé?
Nós, eu e você, cantamos essas músicas durante muito tempo. E de uma forma consciente ou inconsciente, contribuíamos para reforçar alguns preconceitos, algumas divisões entre pessoas mesmo em um momento de festa como o carnaval. Concordo que vivemos em um tempo diferente e devemos tomar mais cuidado com essas canções.
Você então não cantaria mais Amélia, por exemplo?
Não mais, até porque poderia soar como uma provocação. Não teria necessidade, até em respeito ao momento em que estamos vivendo.
Estamos conversando um dia depois de Lula ser condenado por unanimidade pelos juízes de segunda instância. Você tem alguma posição sobre isso?
Tenho sim, mas acho que temos já tanta gente falando... Qualquer coisa que se diz é transformada em discussão, em agressão. Eu sinto um certo cansaço. Olha, eu sou vascaíno, e aprendi uma lição torcendo para o Vasco. Não é porque torço para um determinado time que tenho de torcer sempre para ele. Eu não sou obrigado a torcer para ele quando estou sabendo de que há várias coisas erradas nos bastidores. Não sabemos agora o que vai acontecer no País daqui pra frente, ninguém sabe.
Paulinho, já pensou em como pode lançar seu novo disco quando chegar o momento? As estratégias mudaram muito nesses últimos anos...
Já me disseram que tem artista que nem faz disco. Eu não sei ainda como fazer...
Chico Buarque, por exemplo, lança algumas faixas soltas e depois vem com o disco todo, criando expectativa e várias matérias na imprensa...
Eu acho que posso fazer assim também. Afinal, CD pra que se um disco tem cada vez menos repercussão? Nem lojas temos mais. Bem, eu vou seguir o que os meus filhos disserem.
A filha. Beatriz tem no sangue o mesmo vírus que fez do pai um homem do samba. Ela ama o carnaval. “É na avenida que me inspiro”, diz ao Estado. Mas seria o seu carnaval o mesmo de Paulinho? Não, são carnavais diferentes. Estamos ligados pela mesma essência, mas os tempos são bem diferentes, os sambas são mais acelerados, como ele diz.
O show será uma mescla de um repertório de Paulinho com músicas clássicas de carnaval e outras que estão no álbum Bloco do Amor, que Beatriz lançou em 2017. Entre momentos de pai e filha juntos, só a filha ou só o pai, são lembrados sambas como Na Linha do Mar (Paulinho da Viola), Solidão (Maria Vasco e Paulinho), a própria Bloco do Amor (Paulinho) e Recomeçar (de Elton Medeiros e Paulinho).
As partes carnavalescas são evocadas com Bandeira Branca (Max Nunes e Laércio Alves), Pastorinhas (João de Barro e Noel Rosa), Máscara Negra (Zé Keti e Pereira Matos), Yes, Nós Temos Bananas (João de Barro e Alberto Ribeiro), Balancê (João de Barro e Alberto Ribeiro) e Mulata Iê Iê Iê (de João Roberto Kelly). Há ainda um pout-porri com Vai com Jeito (de João de Barro) e a Marcha do Cordão da Bola Preta (Nelson Barbosa e Vicente Paiva).
Beatriz diz que sente a necessidade de seguir promovendo seu disco, Bloco do Amor, sobretudo nas redes sociais. “Não penso ainda em fazer um novo disco, quero aproveitar mais esse e trabalhar na internet, algo que não fiz ainda.” A temática carnavalesca de seu álbum, e agora do show com o pai, tem a ver também com uma resistência. “O Rio está passando um momento duro. Foi o que me fez também pensar em um show como esse, que fosse um pouco além do que foi o disco. O show não é um baile de carnaval, não fica preso a essa ideia, mas pensei que ele poderia ajudar nesse momento.”
“É na avenida, em meio àquela alegria, que sinto às vezes quase que um devaneio. Sei que esse encantamento funciona assim com meu pai também.” Beatriz segue como atriz do musical Zeca Pagodinho — Uma História de Amor ao Samba, que vai sair do Rio este ano para várias estados e ficar em cartaz em São Paulo por dois meses.