“Eu vou ter que abrir uma escola mesmo”, disse Ana Castela quando, do palco, avistou diversas crianças na plateia em um show em Salvador. “Escola da boiadeira. Os pais vão deixar? Eu não vou deixar. E olha que não sou nem pai, nem mãe”, brincou, sob aplausos e gritos dos fãs mirins.
Quem vê a cantora – hoje, um dos maiores nomes do sertanejo – pode não entender como ela se tornou um fenômeno infantil. Artistas como ela e o cantor Jão têm crianças como público cativo, que correspondem à geração alpha, nascida após 2010. Ainda que não tenham direcionamento artístico voltado para as crianças, eles abraçaram esses cantores. O que justifica essa tendência?
A explicação passa por diversos fatores. O mais significativo é a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) de 2014, que classifica como abusiva a publicidade para esse público. Pouco a pouco, o mercado fonográfico passou por uma escassez de ídolos voltados para essa faixa etária. Para os bebês e crianças pequenas, ainda há um mercado aquecido, mas há uma lacuna de atrações para crianças quando saem dessa fase.
Além disso, as mudanças tecnológicas impactam diretamente a nova geração. Hoje, as crianças não dependem mais dos programas infantis da TV para ouvirem as músicas de que gostam ou para descobrir novos artistas – eles estão nos canais do YouTube. Basta um clique para adentrar o universo colorido que tanto Jão quanto Ana Castela têm em comum, e que acaba despertando o encantamento dos pequenos.
Ana Castela
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Boiadeirinha
A própria Ana Castela se surpreende com o sucesso que faz com o público infantil. Ela se sente honrada mas, ao mesmo tempo, parece ter noção da responsabilidade. Em entrevista ao Estadão, a cantora conta:
Ana Castela
Aos 20 anos, Ana Castela é um expoente da música sertaneja atual. Foi agenciada pelo escritório Agroplay depois de viralizar com um vídeo cantando enquanto montava a cavalo. O sucesso foi meteórico, potencializado pelo hit Pipoco, uma mistura de sertanejo e funk em parceria com Melody e DJ Chris no beat. Depois, se firmou como a “boiadeira”, com músicas como Nós é da roça, bebê, além dos hits Solteiro Forçado e Nosso Quadro, uma sofrência com batidas de reggaeton.
Ana é de uma geração pós-feminejo, herdeira dos discurso de empoderamento de nomes como Marília Mendonça, mas conectada com a geração Z, a mesma que a dela: sua sofrência é dançante, combina com as dancinhas de Tik Tok e é fluida nos gêneros musicais, sem se ater a um estilo que a limite. “Eu sempre admirei muita gente quando era criança. Queria conhecer a Anitta, o Luan Santana… tenho até fotos! Mas sempre fui eclética e gostava de vários artistas”, conta a cantora.
Carolina é fã da cantora. Ela tem 9 anos e mora em Belo Horizonte com os pais. A mãe, Mariana Morais, trabalha como gerente comercial. Na foto que ela manda para a reportagem, Carol está sorridente, usando chapéu de cowboy rosa no show da Ana Castela. Em outra, aparece nos ombros da mãe, com a mão no peito, cantando.
Ao fundo, dá para notar outras meninas igualmente trajadas com o chapéu, que é marca registrada da “boiadeira”. No show, Ana – que canta sobre relacionamentos e vivências de uma jovem adulta – altera letras que podem soar “impróprias”. Palavrões, no palco, são proibidos.
Carol, 9 anos, fã de Ana Castela
A mãe conta que, inicialmente, ficou preocupada quando a filha disse que queria ir ao show. Ela perguntou a um amigo do setor de eventos se era seguro levar crianças. Ele cravou: “Mari, o show da Ana Castela é para criança”. Quando chegou, não teve dúvidas: muitas delas dominavam a plateia, todas devidamente acompanhadas pelos responsáveis e muitas usando o chapéu de boiadeira. No fim, mesmo a mãe, que não é fã, se divertiu com a filha: “Fiquei emocionada a vendo feliz”.
Ana Castela só para os pequenos
A cantora reconhece que não canta músicas para crianças. “Eu me preocupo muito em alguns lugares que vou cantar, com a letra e as coreografias”, confessa. Por isso, está idealizando projetos específicos voltados para os pequenos. “Em 2024, teremos muitos projetos especiais, inclusive para os boiadeiros mirins, como desenho infantil, música...”
Mariana, assim como outros pais entrevistados para esta matéria, mostram-se preocupados em acompanhar o que seus filhos escutam, hábito importante já que a criança passa a ter contato com a música em outros locais para além de casa. “É por meio do repertório musical que nos iniciamos como membros de determinado grupo social”, afirma Monique Andries Nogueira é Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, no artigo A Música e o Desenvolvimento da Criança.
Mariana, mãe da Carolina
Carolina, 9 anos
Carol conta que até quer ter uma fazenda quando crescer – a mãe ri, já que a família não tem necessariamente uma vivência campestre. A menina explica que gosta de Dona de Mim pela relação mãe e filha que é tematizada na música e até pelo discurso “independente”. Na faixa, Ana Castela canta: “Eu criei filha minha pra ser boiadeira/Na volta desse mundo, não ficar por baixo/Não vai ter frescurinha pra abrir porteira/E nunca nessa vida depender de macho”.
A mãe tem uma hipótese: “É um empoderamento que as crianças nem entendem o que é, mas ela gosta porque desperta sonhos. Antes, as crianças queriam ser a Xuxa. Mais para a frente, a Anahi do Rebelde… hoje é a Ana Castela”, diz.
Ao contrário de Carol, que está na capital e sonha com fazendas enquanto ouve Ana Castela, Maria Sophia tem 7 anos e vive em um sítio no município de São Miguel do Iguaçu, interior do Paraná. Sua mãe, a confeiteira Kauana Veiga Quitaiski, compartilhou com seguidores o material escolar da filha: os cadernos, mochila e estojo são plotados com a imagem da cantora, feitas pela própria mãe, que todo ano deixa a menina escolher o tema do material.
Ana Castela acha graça em ver seu rosto estampado em cadernos pelas escolas do país. “Eu acho incrível, amo ver tudo o que eles fazem. Hoje em dia tem material escolar, festa de aniversário, roupas que eu uso em show... O povo é criativo, né?”
“A Maria Sophia foi gostando da Ana Castela sozinha, porque não costumamos escutar muito”, explica Kauani. “Como somos do interior do Paraná, ainda escutamos muito rádio, e toca moda de viola, sertanejos raiz e músicas gauchescas”, comenta.
Apesar disso, a mãe entende que a pequena se identifica com Ana Castela porque ela simboliza uma vivência que é comum a quem nasceu no interior – e que não era tão midiatizada anos atrás.
Jão, cores e efeitos
O cantor Jão é um dos mais recentes fenômenos pop. Aos 29 anos, tem quatro discos lançados: Lobos (2018), Antiheroi (2019), Pirata (2021) e Super (2023). Suas músicas falam sobre alegrias e decepções amorosas. Duas fãs mirins que conversaram com a reportagem explicam que Jão é “como uma Taylor Swift do Brasil”. Porém, a música de Jão é mais dançante, o que atrai os pequenos.
No clipe de Idiota – música favorita da Marina Rosa Cardoso, uma fã de 9 anos de São Paulo – ele surge em cena vestido de Homem-Aranha. E por que Jão é seu artista preferido? Ela atribui ao ritmo das músicas, ao estilo do cantor e também ao palco com vários efeitos, com direito a dragões, prédios e outras grandiosidades cenográficas (veja o vídeo abaixo).
Marina, 9 anos, fã de Jão
Em janeiro deste ano, o cantor lotou o Allianz Park, em São Paulo, em duas apresentações. Marina estava lá com sua mãe, Ligia, e a irmã Isabel, de 12 anos. “Quem descobriu o Jão foi a Marina, e ela mostrou para família inteira”, conta a irmã. E quem mostrou a música para Marina foi uma amiga.
Em vídeos dos shows que circulam pelo TikTok, é possível notar a presença do público infantil na apresentação do cantor em São Paulo. Mas a principal estrela – sem contar o próprio Jão – foi Maria Júlia Barbosa, ou Maju, que, aos 4 anos, foi convidada pela equipe do cantor para subir ao palco, gerando um dos momentos mais cativantes da apresentação.
Quem apresentou Jão para a pequena foi a madrinha Jacy de Mendonça Fonseca Farias, que é fisioterapeuta. As duas são também vizinhas e primas, e não se desgrudam. Elas, que são de Palmares (PE), viajaram até São Paulo para conhecer o ídolo, depois que Jão assistiu aos vídeos que Jacy postava com Maju em seu Tik Tok.
Jacy se emociona ao lembrar do momento em que Maju subiu ao palco. Com a desenvoltura de uma estrela mirim, ela segura o microfone enquanto masca chiclete e interage com o cantor. A plateia vibra.
“Revi esse vídeo agora e fiquei emocionada de novo... depois do show, eu fui chorar no banheiro de felicidade. É um amor muito grande que eu sinto por ela”, conta Jacy.
Maju, 4 anos
Mercado infantil
O fenômeno desses artistas entre as crianças pode ser explicado pela regulamentação da publicidade infantil na televisão – mesmo motivo que tirou programas como a TV Globinho do ar, gerando uma reivindicação que já virou até meme.
O último programa infantil remanescente na grade da Rede Globo foi substituído pelo Encontro com Fátima Bernardes em 2012. A própria explicou no programa Roda Viva que a emissora já se questionava sobre o futuro do programa quando ela sugeriu ocupar a faixa com uma atração voltada para adultos. “Comecei a ouvir que a própria TV estava com uma certa estranheza em relação àquele horário. É um horário que você não anuncia…”, disse naquela entrevista.
Também as gravadoras, que outrora lucravam com a venda de discos voltados para esse público - basta lembrar que o Xou da Xuxa 3 é um dos álbuns mais vendidos do Brasil –, mudaram o foco de investimento artístico. Sem Xuxa, Balão Mágico, Patati Patatá ou Chiquititas e outros fenômenos que acabavam atraindo publicidade para a TV, há uma lacuna de mercado para as crianças que se reflete no meio fonográfico.
Ana Castela e Jão furam essa bolha na geração alpha por também serem jovens, estarem conectados nas redes sociais e terem estilos autênticos que cativam as crianças. No caso de Ana Castela, a indumentária de boiadeira gera um verdadeiro mercado informal em torno dessa persona. Em sites de compras, não é difícil encontrar chapéus de cowboy com a descrição “chapéu Ana Castela”. Entre as mães, são muitos os relatos de crianças e pré-adolescentes que são fãs de um dos dois artistas.
Há também a influência de irmãos mais velhos que estão conectados às músicas que bombam no Tik Tok – e essa referência dos mais velhos, é claro, não é novidade. Então um amigo apresenta para outro que gosta, toca em uma festinha de aniversário, conversam sobre os cantores na escola. O movimento é orgânico, visto que é o meio social onde as crianças convivem e trocam referências.
Para além de tudo, tem coisas que não mudam: é o mundo de fantasias que cativa as crianças. Se os adultos de hoje se acostumaram a ouvir canções lúdicas na infância, hoje o lúdico parece residir na dança, nos palcos cheios de efeitos tecnológicos, na roupa colorida que crava uma identidade diante dos amigos e faz brilhar os olhos. Mesmo sem haver um mercado que acene para os pequenos, as próprias crianças elegem seus ídolos, o que acaba deixando a experiência de ouvir música mais divertida.