Priscilla Alcântara já foi, nessa ordem: a menina do Bom Dia & Companhia; a cantora gospel dos cabelos longos; a artista agora-sou-pop; a vencedora do The Masked Singer.
Agora, ela avisa que nada disso é a nova Priscilla.
A cantora, que passou a assinar sem o sobrenome, anunciou seu “reset” em um futuro álbum autointitulado. É um recurso muito usado por artistas pop: na dúvida, faz um rebranding e diz que não tinha mostrado sua verdadeira identidade até hoje, agora sim, vocês verão.
O roteiro está aí e não faz mal seguir. Com um novo visual chocante, Priscilla chamou a atenção e virou notícia – este texto é prova.
Todo o bafafá foi uma preparação para o novo single, Quer Dançar, lançado na noite da última quinta-feira, 9. Com participação de Bonde do Tigrão, a música escancara o desejo de Priscilla de ser a nova diva pop brasileira. Ok, ela quer esse lugar no pódio – mas vai conseguir?
Público ainda precisa ser conquistado
O pop pode ser um gênero de fácil digestão, mas isso não significa que seu público não tenha um certo ceticismo e não exija coerência. Priscilla não vai resolver, com um cabelo ou a falta de sobrenome, a carga de sua vida gospel. O que pode parecer extremo para ela e seus fãs cristãos – como um cabelo curto e vermelho – não é tão impressionante para o público geral quanto ela espera.
Há uma tensão latente. Não faz tanto tempo (um ano!) que Priscilla cantou Born This Way, de Lady Gaga, em um programa de TV – mas optou por segurar um agudo ao invés de entoar os versos “Não importa se você é gay, hétero ou bissexual, lésbica ou transgênero”, da versão original. Em 2023, no dia do orgulho LGBTQ+, ela até se pronunciou mais efusivamente: repostou uma frase poética com um emoji de arco-íris.
Ninguém se torna diva pop sem olhar de frente para a comunidade LGBTQ+ e trazê-la para perto. Até aqui, a ex-Alcântara vem olhando meio de canto; sempre tateando, acenando, mas nunca falando diretamente. E uma música tipo louvor com Gloria Groove não deu conta do recado.
Nesta semana, Priscilla escreveu: “Feliz de não ter mais vestígios nem amarras de um fundamentalismo religioso que rejeitava a diversidade”. Uma frase forte, mas radical. Será que é possível se dizer totalmente livre de qualquer vestígio de algo que a definiu por tanto tempo?
Declaração de liberdade?
A grande ideia de Priscilla com Quer Dançar, seu primeiro single da nova fase, é essa: se dizer livre de quem ela era antes. De fato, alguns resquícios do passado desapareceram. A música não tem, por exemplo, os melismas e agudos pelos quais a cantora se consagrou pré e pós-igreja. E fala de dança, um tópico muito menos profundo que vários de seus singles anteriores – mesmo já na fase pop.
A faixa ainda faz um diálogo com o funk. Para o público evangélico, isso é tão repelente quanto as sobrancelhas descoloridas. Mas se há uma referência sonora ao gênero carioca, a letra segue inocente, livre para todos os públicos. Sem subtexto: ela realmente só quer dançar.
Quer Dançar não é ruim – seu maior defeito, na verdade, é não comunicar muita coisa. Com um recorte musical icônico (e participação) do Bonde do Tigrão, Priscilla troca o molejo e o charme do funk 2000 por uma batida reta e voz processada. O conjunto música e clipe é bem-feito, tem apelo, mas falta tempero.
Ainda, o visual fica desperdiçado. Fazendo um aceno à disrupção total, a nova estética da cantora sugere uma inovação artística, uma profundidade conceitual que não veio. (Poucas coisas para uma artista, hoje, são tão perigosas quanto lembrar Rosalía – a artista cuja inventividade na música pop contemporânea é praticamente inigualável.) Se houve esse investimento em um visual radical, a música também não deveria ser ousada?
Bem assessorada e com um objetivo claro, Priscilla apostou na ruptura. Ficou no meio do caminho: a ideia está lá, mas ainda falta muito.
Sobretudo, falta a sensação de que essa mulher de cabelos vermelhos é, de fato, a Priscilla.