A cantora Aymeê Rocha provocou um estrondo na música gospel. A artista fez uma apresentação na semifinal do Dom Reality, espécie de The Voice gospel, no dia 15, e cantou uma composição sua chamada Evangelho de Fariseus. Apesar de não ter vencido o programa, ela recebeu uma ampla repercussão. De lá para cá, o vídeo da música já acumula quase 4 milhões de visualizações.
O motivo? A cantora dividiu evangélicos com uma letra que citava o “dízimo que importa mais que corações” e uma fala feita logo na sequência da apresentação sobre a Ilha do Marajó. Aymeê teve seu vídeo criticado por pastores, republicado por influenciadores e, ainda, compartilhado pela senadora Damares Alves (Republicanos). Leia mais sobre informações falsas que passaram a circular sobre a Ilha do Marajó abaixo.
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Vídeos debatendo a postura crítica da artista à própria religião jorraram de portais e canais evangélicos. Um deles trouxe até a pergunta: afinal, Aymeê é “vítima” ou “vilã”? “Eu me conectei com a mensagem [da música] antes mesmo de ecoá-la. [...] Senti. Chorei. Sofri. Mudei. Aprendi”, comenta a cantora em entrevista ao Estadão.
Quem é Aymeê
Natural de Belém, no Pará, Aymeê tem 27 anos e diz compor sua sonoridade com base em ritmos como MPB, pop, soul, indie e samba. Ela começou a ter contato com a arte desde muito nova, sempre na igreja. Apesar da pouca idade, hoje já conta com 200 músicas registradas em sua autoria.
Teve projeção no Dom Reality com duas faixas autorais: além de Evangelho de Fariseus, apresentou, na reta final da disputa, O céu é a Minha Pátria. Na letra, reflete sobre a perenidade da vida terrena e o lar eterno dos cristãos, tido como o reino dos céus.
Todo esse destaque chamou a atenção do idealizador do programa, Paulo Alberto. “Você é uma voz que ecoará de forma única e ungida”, escreveu o empresário em um post dedicado à cantora no Instagram.
Outra canção assinada por Aymêe é Pedro, ainda te amo (Judas também), também apresentada no reality. Pela temática da composição, a cantora pensou que seria eliminada. Porém, a reação dos jurados foi a melhor possível: “Amo ver a Bíblia pelo seu olhar”, disse um deles.
Outra faixa em destaque no seu canal no YouTube é Meu Melhor Amigo, apresentada em uma versão acústica intimista.
Aos 6 anos, participou de um grupo de dança e teatro liderado pela mãe. Aos 11, passou a investir na música e, aos 14, resolveu se aventurar no canto e na composição. Em uma publicação no Instagram em que mostrava ter ido assistir à Turnê D, de Djavan, a artista o classificou como sua maior inspiração.
“Quando eu me for desse mundo, quero que a minha arte também seja tão densa a ponto de passear pelos séculos. Djavan faz músicas para séculos”, escreveu na postagem. “Djavan é a arte que deságua em mim e eu, oceano”, completou.
A fala, porém, já havia gerado polêmica entre evangélicos. “Poxa. E eu pensando que tua fonte de inspiração fosse Jesus, Espírito Santo, palavra de Deus. Desculpe”, escreveu uma usuária na rede social. “De uma fonte não jorram dois tipos de água”, comentou outra.
Ao Estadão, Aymeê detalha a inspiração: para ela, Djavan faz “arte que passeia pelas gerações” e ensina que música “não é sobre compor hits em meses”. “Música boa, com conteúdo bom. Denso, mas, ao mesmo tempo, leve. Com realidade, mas também com poesia. [...] Por isso, o ouço, o admiro e o respeito”, explica.
Mesmo com uma repercussão tão recente, a cantora se mostra preparada para lidar com as críticas que recebe. “Não tenho o controle de como cada um reagiu, reage e reagirá, mas creio que as críticas só trazem à tona o que precisa ser mudado”, avalia.
Críticas de pastores
Aymeê resolveu ser direta ao compor Evangelho de Fariseus. Conforme o cristianismo, fariseus eram um grupo descrito como “hipócritas e formalistas” por Jesus. Hoje, o nome é associado de forma crítica a pessoas que valorizam a moral, mas não oferecem ajuda.
Na letra, a cantora cita o “dízimo que importa mais que os corações” e “campanhas feitas para nós [evangélicos] mesmos”. “O Reino virou negócio”, descreve ela em um trecho.
Para a artista, Evangelho de Fariseus nasceu como “um convite individual para reflexão”. Uma reflexão, inclusive, que começou como uma autocrítica. “É um convite para mudanças, boas e necessárias mudanças”, descreve.
Os versos, porém, não foram bem recebidos por alguns pastores, que usaram as redes sociais para realizar comentários negativos a Aymeê. “Mentiras perversas sobre a igreja do Senhor, mas embrulhadas com o papel macio e vistoso do politicamente correto”, escreveu Tassos Lycurgo, nomeado diretor do Iphan à época do governo de Jair Bolsonaro (PSL).
Já o pastor Marcos Sal da Terra demonstrou incômodo com uma suposta “generalização” da música. “Viralizou na internet uma canção que diz grandes verdades, mas que fala uma meia verdade, quando generaliza o tema abordado apontando para os pecados na igreja e diz insistentemente ‘pra nós mesmos... pra nós mesmos’. Nós? Vírgula”, escreveu em uma postagem no Instagram.
Música foi associada a Ilha do Marajó
Durante sua apresentação no reality gospel, Aymeê foi questionada sobre um trecho em que citou “Marajó”, uma rápida referência à Ilha do Marajó, no Pará. A resposta que a cantora deu logo em seguida comentando a questão também viralizou nas redes sociais.
“Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, na minha terra. Lá tem muito tráfico de órgãos, lá é normal. Lá tem pedofilia em nível ‘hard’ (sic). [...] As criancinhas saem em uma canoa, com 6, 7 anos, e elas se prostituem dentro do barco por 5 reais”, declarou.
Apesar de a ilha sofrer com casos de abuso sexual, denúncias de tráfico de órgãos não foram comprovadas, segundo o Ministério Público do Pará. Leia abaixo o comunicado do órgão divulgado após a repercussão do caso.
Foi o suficiente para que a situação da Ilha do Marajó voltasse a repercutir com força, especialmente entre evangélicos. A influenciadora Rafa Kalimann e a cantora Juliette republicaram o vídeo de Aymeê nas redes sociais. “É nosso dever enquanto pessoas públicas tomar iniciativa, partido e ajudar a tornar esse caso ainda mais conhecido pelas pessoas”, escreveu Kalimann em uma postagem no Instagram.
Em 2023, o governo chegou a lançar o programa Cidadania Marajó como enfrentamento à exploração de crianças e adolescentes na região. O projeto substituiu o Abrace Marajó, criado por Damares Alves, enquanto a senadora era ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro.
Damares comentou a situação da ilha na campanha eleitoral de 2022. Dois dias depois da apresentação de Aymeê, a senadora também usou seu perfil no Instagram para compartilhar o vídeo da cantora. “Assistam à música até o fim, mas vejam os comentários dos jurados”, pediu na legenda.
Durante a campanha eleitoral, Damares citou casos de crianças de 4 anos com dentes arrancados para facilitar a prática do sexo oral. Em setembro do ano passado, a senadora foi condenada a pagar uma indenização de R$ 2,5 milhões após o Ministério Público Federal considerar as denúncias como sem provas e sensacionalistas.
Aymeê pontua, porém, que a música “não é só sobre Marajó”. “São algumas realidades que me tocam como cristã, paraense e brasileira”, afirma. Sobre a associação da canção com Damares – o trecho da fala da cantora chegou a ser editado em recortes com o discurso da senadora –, a artista diz “não ter controle” sobre a repercussão.
“A gente não tem controle sobre o que editam e como editam esses recortes. Mas, se for para uma melhoria, para um avanço e para transformação de toda uma sociedade, é super válido”, afirma. Questionada sobre as notícias falsas que passaram a circular sobre o assunto, a cantora diz: “Rebato as notícias falsas com as notícias verdadeiras dos próprios moradores da Ilha do Marajó”.
O que diz o governo sobre a Ilha do Marajó
Após a enorme repercussão do caso, alguns órgãos do governo se manifestaram sobre a situação na região. O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, gravou um longo vídeo em que se pronunciou sobre uma suposta “omissão”.
“A gente não vai admitir que oportunistas utilizem as mazelas, os problemas que existem no Marajó para criar pânico moral, associar os moradores com o problema gravíssimo e que, de fato, é um problema do Brasil, que é o problema do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes”, declarou.
A pedido da pasta de Direitos Humanos, a Advocacia-Geral da União (AGU) vai atuar na “identificação de redes de desinformação, que criam desordem informacional” sobre Marajó. Vídeos que circulam nas redes sociais mostram cenas que ocorreram em outros locais associadas à ilha. O Estadão Verifica já desmentiu duas delas. Leia sobre aqui.
O caso também levou a um pronunciamento do Ministério Público do Pará. O órgão confirmou que os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são uma realidade na região. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de crimes dessa natureza é maior do que a média nacional. A região abriga um dos piores IDHs do Brasil.
Segundo o Ministério Público, porém, não há notícias nas Promotorias de Justiça sobre casos de tráfico de órgãos. “Discussões que enfatizem a violência sexual sem estudos e dados oficiais e sem propósito de efetivar políticas necessárias ou, pelo menos, a apuração de casos concretos, em nada contribuem para mudar a realidade social tão sofrida da população marajoara”, diz um trecho do comunicado.
O órgão reforçou que adota medidas de fortalecimento de redes de proteção e de conscientização e educação sobre o tema, estimulando vítimas a denunciarem esses casos. Leia a nota completa aqui. / COLABOROU DAMY COELHO