Rita Lee: jornalista acha por acaso três letras inéditas da artista nos arquivos da censura; leia


Originais de ‘Anjo da Vanguarda’, ‘Disfarce’ e ‘The Old Friend’ foram encontrados no Arquivo Nacional junto de material de Caetano Veloso; veja documentos e conheça todos os versos

Por Danilo Casaletti
Atualização:

Em 1975, três anos após ter deixado a banda Mutantes - ou ter sido convidada a se retirar dela-, Rita Lee ainda não havia emplacado na carreira solo, embora já tivesse lançado três álbuns sem a participação do grupo dos irmãos Baptista.

Com o álbum Fruto Proibido, lançado naquele ano, Rita colocou os dois pés - calçados com delicadas sandálias de plataforma - na porta da música brasileira. Com um mistura de blues e rock, ela emplacou os sucessos Ovelha Negra, só dela; Esse Tal de Roque Enrow, parceria com Paulo Coelho; e Agora Só Falta Você, escrita com o guitarrista Luiz Sérgio Carlini, músico da banda Tutti Frutti, com quem Rita divide os louros dessa fase, ainda pré- Roberto de Carvalho.

Fruto Proibido, lançado pela gravadora Som Livre, saiu com nove faixas ao todo e entrou para a história. Entretanto, segundo indicam os arquivos da Censura Federal, responsável por analisar previamente as letras das canções que eram gravadas durante a ditadura militar, Rita pode ter feito e planejado gravar pelo menos outras três canções para o álbum.

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No arquivo, junto às canções que Caetano Veloso gravou no álbum Joia, também em 1975, estão as letras de:

  • Anjo da Vanguarda e Disfarce, ambas assinadas apenas por Rita,
  • e The Old Friend, em parceria com Carlini.
A cantora Rita Lee e sua banda Tutti Frutti durante show no Teatro Aquarius, em São Paulo, em foto de 1976 Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão
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As letras foram encontradas pelo jornalista e pesquisador Renato Vieira no repositório digital do SIAN - Serviço de Informações do Arquivo Nacional. Veja imagens dos documentos e leia os versos das músicas ao longo deste texto.

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Disfarce

(Rita Lee)

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Olhei no espelho

Não vi quem eu quis

Cantar para as paredes

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Também pode ser

Tocando um rock

Disfarço a minha timidez

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Eu quero chegar lá do outro lado

Do abismo

Ouvir o silêncio

Gritar pelo som

Nem tudo é mentira

Também pode ser

Tocando um rock

Disfarço a minha insensatez

Eu quero cantar aquela melodia inacabada

Proibida às pessoas suicidas

Dessa vida e de outras parecidas com a minha

A cantora Rita Lee na época do show 'Fruto Proibido' Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

Vieira diz que descobriu as letras por acaso, pesquisando os arquivos após a morte da cantora, aos 75 anos, no dia 8 de maio. Elas estavam na mesma pasta na qual a gravadora Philips, a mais importante à época, enviou à censura as canções que Caetano Veloso pleiteava gravar no disco Jóia, também lançado no ano de 1975.

“Essas letras nunca foram gravadas. Não conhecemos a melodia delas. Rita pode ter aproveitado as melodias em outras letras delas, assim como fez com Bad Trip, que mais tarde virou Shangrilá e Tudo Isso e Mais um Pouco que ela transformou em Fruto Proibido”, comenta Vieira.

Consultado pela reportagem do Estadão, Carlini disse não se lembrar da letra. “Isso foi em 1975. Faz mais de 40 anos. Eu sou um roqueiro”, diz o músico. Entretanto, ele não acha difícil eles terem feito a canção.

“Éramos muito produtivos. Não éramos essas bandas de rock de hoje em dia, que se pautam pelo business. Nos reunimos todos os dias para fumar baseado, ir ao cinema e fazer música”, diz Carlini, atualmente com 70 anos.

The Old Friend

(Rita Lee- Luiz Sérgio Carlini)

You remind an a old friend

In everything you do

You try to get as much as you please

Because you want to get rid of the old days

But babe, there’s no sorrow

Don’t wait until tomorrow

To understand today

And everything i say

You ask me how i know about you

Do you like to find yourself in

Timeless today?

But babe there’s no mistake

Don’nt wait until your heart to break

To realize the pain

To roconize I’m a old friend

Don’t wait until tomorrow

To understand today

O Velho Amigo (tradução, tal qual foi enviada à Censura Federal)

Você me lembra uma velho amigo

Em tudo que faz

Você tenta ao máximo agradar

Porque você deseja expulsar os dias passados

Mas babe não se lamente

Não espere até amanhã

Para entender o presente

E tudo o que eu digo

Você me pergunta como eu sei sobre você

Você gosta de se achar em um dia sem fim?

Mas babe não existe erro

Não espere até seu coração partir

Para sentir dor

Para reconhecer que eu sou um velho amigo

Não espera atá amanhã

Para entender o presente

Em Fruto Proibido, ele assina com Rita a faixa Agora Só Falta Você, além de ter tocado o lendário solo de guitarra em Ovelha Negra. “Eu fiz uma parte da letra de Ovelha Negra, mas não fui creditado”, reivindica.

Guilherme Samora, editor dos livros de Rita e estudioso da obra da cantora, diz que, há alguns anos, chegou a mostrar essas três letras para a cantora - na mesma época em a artista publicou as composições censuradas no livro FavoRita, de 2018. Rita leu todas, mas não se lembrou delas.

No entanto, Samora diz que as composições se casam perfeitamente com a temática que Rita abordou em Fruto Proibido. Algo bastante comportamental, que fez com que músicas como Ovelha Negra e Agora Só Falta Você continuarem atuais após quase 50 anos.

Basta analisar. Em Anjo da Vanguarda, uma das inéditas, Rita faz uma reflexão sobre sua personalidade. ‘Eu Sou Aquela Estranha/Vontade de ser tudo/E ao mesmo tempo nada. Em outro trecho, se mostra rebelde: ‘eu sou aquela que o rei mandou esconder/mas hoje eu voltei só para te ver’.

Anjo da Vanguarda

(Rita Lee)

Hei anjo da vanguarda

Vestido de outro e prata

Descubra esse seu rosto

Eu quero ver sua cara de perto

Você não lembra mais de mim

Eu sou aquela estranha

Vontade de ser tudo ao mesmo tempo

E nada ao mesmo tempo

Querendo ver as coisas do mundo

Cadê minhas asas de cetim?

Eu sou aquela que o rei

Mandou esconder

Mas hoje eu voltei só para te ver

Talvez eu me apresente

De um jeito esquisito, mas saiba

Meu amigo eu quero sobreviver

Eu tenho um compromisso

Com quem eu não conheço

Por isso agora mesmo eu vou sair

Fora do reino

Em Disfarce, Rita indica que buscava uma nova identidade para ela e dentro da música, algo que conseguiu com Fruto Proibido, diz a letra. ‘Tocando um rock/disfarço a minha timidez/ Eu quero chegar lá do outro lado do abismo”.

Samora chama atenção para mais uma coincidência com o que Rita produzia naquele momento. Se no disco anterior, Atrás do Porto Tem Uma Cidade, as letras eram mais curtas, em Fruto Proibido elas ganharam mais versos, tais como as inéditas apresentam.

“É incrível como eles eram produtivos. Era algo até de necessidade, pois os artistas nunca sabiam quando quantas letras seriam vetadas pela censura”, diz.

O arquivo no qual as letras de Rita foram encontradas ainda guarda uma curiosidade: a canção Ovelha Negra está com o título de ‘Ovelha Negra da Família’. A letra é a mesma que a cantora gravou em Fruto Proibido.

Rita em um dia de fúria com a gravadora

A cantora Rita Lee e sua banda Tutti Frutti durante show em 1976 no Teatro Aquarius, em São Paulo Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

O arquivo da censura indica que Fruto Proibido, um lançamento da Som Livre, começou a ser produzido na gravadora Philips, com a qual Rita tinha contrato. Foi a Philips quem mandou o lote de músicas para a censura, como indica o timbre nos papéis dos arquivos.

Um episódio pode ter feito Rita trocar de gravadora em pleno plano de voo para aquele novo disco. A cantora narra isso no livro póstumo, Outra Autobiografia (Globo Livros), que ela deixou pronto antes de morrer, no dia 9 de maio, vítima de câncer no pulmão.

Rita, segundo ela, teria sido chamada para uma reunião - e aqui está implícito que seria com os executivos da gravadora Philips, é preciso deixar claro. Os executivos queriam lhe impor regras no jeito de compor e de se vestir.

“Cheguei à mesa redonda e só vi homens de terno me olhando como se eu fosse uma mulher-objeto, algo a ser trabalhado para atender a opinião deles de como deveria me comportar como artista. Papo vai, papo vem, e eu lá, só ouvindo. Os caras começaram a dizer como eu deveria me vestir: tipo minissaia e casquinho cor-de-rosa, fazendo a cocotinha fofinha e bem comportadinha, cantando músicas de outros compositores, falando de amor pueril e bobinho. Me levantei da mesa, mandei todos tomarem no cu. e fui para o banheiro da gravadora fumar um baseado. Não é preciso dizer que meu contrato foi cancelado pelos eguinhos masculinos e fiquei desempregada. Mas o lado bom daquela reunião foi aprender o que não fazer”, diz o trecho escrito por Rita.

Outras canções inéditas

Em 16 de maio, dia da missa de sétima dia de Rita, João Lee, filho do meio da cantora e do músico Roberto de Carvalho, disse à reportagem do Estadão que o ‘baú da Rita’ reúne mais de uma dezena de músicas inéditas - essas, sim, gravadas - compostas por Rita e Roberto nos últimos 20 anos - portanto, não abarcam as inéditas de Fruto Proibido.

Essas faixas, segundo João, foram produzidas para projetos que acabaram não se concretizando ou ficaram de fora dos discos que a cantora lançou durante esse período.

Em 1975, três anos após ter deixado a banda Mutantes - ou ter sido convidada a se retirar dela-, Rita Lee ainda não havia emplacado na carreira solo, embora já tivesse lançado três álbuns sem a participação do grupo dos irmãos Baptista.

Com o álbum Fruto Proibido, lançado naquele ano, Rita colocou os dois pés - calçados com delicadas sandálias de plataforma - na porta da música brasileira. Com um mistura de blues e rock, ela emplacou os sucessos Ovelha Negra, só dela; Esse Tal de Roque Enrow, parceria com Paulo Coelho; e Agora Só Falta Você, escrita com o guitarrista Luiz Sérgio Carlini, músico da banda Tutti Frutti, com quem Rita divide os louros dessa fase, ainda pré- Roberto de Carvalho.

Fruto Proibido, lançado pela gravadora Som Livre, saiu com nove faixas ao todo e entrou para a história. Entretanto, segundo indicam os arquivos da Censura Federal, responsável por analisar previamente as letras das canções que eram gravadas durante a ditadura militar, Rita pode ter feito e planejado gravar pelo menos outras três canções para o álbum.

No arquivo, junto às canções que Caetano Veloso gravou no álbum Joia, também em 1975, estão as letras de:

  • Anjo da Vanguarda e Disfarce, ambas assinadas apenas por Rita,
  • e The Old Friend, em parceria com Carlini.
A cantora Rita Lee e sua banda Tutti Frutti durante show no Teatro Aquarius, em São Paulo, em foto de 1976 Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

As letras foram encontradas pelo jornalista e pesquisador Renato Vieira no repositório digital do SIAN - Serviço de Informações do Arquivo Nacional. Veja imagens dos documentos e leia os versos das músicas ao longo deste texto.

Disfarce

(Rita Lee)

Olhei no espelho

Não vi quem eu quis

Cantar para as paredes

Também pode ser

Tocando um rock

Disfarço a minha timidez

Eu quero chegar lá do outro lado

Do abismo

Ouvir o silêncio

Gritar pelo som

Nem tudo é mentira

Também pode ser

Tocando um rock

Disfarço a minha insensatez

Eu quero cantar aquela melodia inacabada

Proibida às pessoas suicidas

Dessa vida e de outras parecidas com a minha

A cantora Rita Lee na época do show 'Fruto Proibido' Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

Vieira diz que descobriu as letras por acaso, pesquisando os arquivos após a morte da cantora, aos 75 anos, no dia 8 de maio. Elas estavam na mesma pasta na qual a gravadora Philips, a mais importante à época, enviou à censura as canções que Caetano Veloso pleiteava gravar no disco Jóia, também lançado no ano de 1975.

“Essas letras nunca foram gravadas. Não conhecemos a melodia delas. Rita pode ter aproveitado as melodias em outras letras delas, assim como fez com Bad Trip, que mais tarde virou Shangrilá e Tudo Isso e Mais um Pouco que ela transformou em Fruto Proibido”, comenta Vieira.

Consultado pela reportagem do Estadão, Carlini disse não se lembrar da letra. “Isso foi em 1975. Faz mais de 40 anos. Eu sou um roqueiro”, diz o músico. Entretanto, ele não acha difícil eles terem feito a canção.

“Éramos muito produtivos. Não éramos essas bandas de rock de hoje em dia, que se pautam pelo business. Nos reunimos todos os dias para fumar baseado, ir ao cinema e fazer música”, diz Carlini, atualmente com 70 anos.

The Old Friend

(Rita Lee- Luiz Sérgio Carlini)

You remind an a old friend

In everything you do

You try to get as much as you please

Because you want to get rid of the old days

But babe, there’s no sorrow

Don’t wait until tomorrow

To understand today

And everything i say

You ask me how i know about you

Do you like to find yourself in

Timeless today?

But babe there’s no mistake

Don’nt wait until your heart to break

To realize the pain

To roconize I’m a old friend

Don’t wait until tomorrow

To understand today

O Velho Amigo (tradução, tal qual foi enviada à Censura Federal)

Você me lembra uma velho amigo

Em tudo que faz

Você tenta ao máximo agradar

Porque você deseja expulsar os dias passados

Mas babe não se lamente

Não espere até amanhã

Para entender o presente

E tudo o que eu digo

Você me pergunta como eu sei sobre você

Você gosta de se achar em um dia sem fim?

Mas babe não existe erro

Não espere até seu coração partir

Para sentir dor

Para reconhecer que eu sou um velho amigo

Não espera atá amanhã

Para entender o presente

Em Fruto Proibido, ele assina com Rita a faixa Agora Só Falta Você, além de ter tocado o lendário solo de guitarra em Ovelha Negra. “Eu fiz uma parte da letra de Ovelha Negra, mas não fui creditado”, reivindica.

Guilherme Samora, editor dos livros de Rita e estudioso da obra da cantora, diz que, há alguns anos, chegou a mostrar essas três letras para a cantora - na mesma época em a artista publicou as composições censuradas no livro FavoRita, de 2018. Rita leu todas, mas não se lembrou delas.

No entanto, Samora diz que as composições se casam perfeitamente com a temática que Rita abordou em Fruto Proibido. Algo bastante comportamental, que fez com que músicas como Ovelha Negra e Agora Só Falta Você continuarem atuais após quase 50 anos.

Basta analisar. Em Anjo da Vanguarda, uma das inéditas, Rita faz uma reflexão sobre sua personalidade. ‘Eu Sou Aquela Estranha/Vontade de ser tudo/E ao mesmo tempo nada. Em outro trecho, se mostra rebelde: ‘eu sou aquela que o rei mandou esconder/mas hoje eu voltei só para te ver’.

Anjo da Vanguarda

(Rita Lee)

Hei anjo da vanguarda

Vestido de outro e prata

Descubra esse seu rosto

Eu quero ver sua cara de perto

Você não lembra mais de mim

Eu sou aquela estranha

Vontade de ser tudo ao mesmo tempo

E nada ao mesmo tempo

Querendo ver as coisas do mundo

Cadê minhas asas de cetim?

Eu sou aquela que o rei

Mandou esconder

Mas hoje eu voltei só para te ver

Talvez eu me apresente

De um jeito esquisito, mas saiba

Meu amigo eu quero sobreviver

Eu tenho um compromisso

Com quem eu não conheço

Por isso agora mesmo eu vou sair

Fora do reino

Em Disfarce, Rita indica que buscava uma nova identidade para ela e dentro da música, algo que conseguiu com Fruto Proibido, diz a letra. ‘Tocando um rock/disfarço a minha timidez/ Eu quero chegar lá do outro lado do abismo”.

Samora chama atenção para mais uma coincidência com o que Rita produzia naquele momento. Se no disco anterior, Atrás do Porto Tem Uma Cidade, as letras eram mais curtas, em Fruto Proibido elas ganharam mais versos, tais como as inéditas apresentam.

“É incrível como eles eram produtivos. Era algo até de necessidade, pois os artistas nunca sabiam quando quantas letras seriam vetadas pela censura”, diz.

O arquivo no qual as letras de Rita foram encontradas ainda guarda uma curiosidade: a canção Ovelha Negra está com o título de ‘Ovelha Negra da Família’. A letra é a mesma que a cantora gravou em Fruto Proibido.

Rita em um dia de fúria com a gravadora

A cantora Rita Lee e sua banda Tutti Frutti durante show em 1976 no Teatro Aquarius, em São Paulo Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

O arquivo da censura indica que Fruto Proibido, um lançamento da Som Livre, começou a ser produzido na gravadora Philips, com a qual Rita tinha contrato. Foi a Philips quem mandou o lote de músicas para a censura, como indica o timbre nos papéis dos arquivos.

Um episódio pode ter feito Rita trocar de gravadora em pleno plano de voo para aquele novo disco. A cantora narra isso no livro póstumo, Outra Autobiografia (Globo Livros), que ela deixou pronto antes de morrer, no dia 9 de maio, vítima de câncer no pulmão.

Rita, segundo ela, teria sido chamada para uma reunião - e aqui está implícito que seria com os executivos da gravadora Philips, é preciso deixar claro. Os executivos queriam lhe impor regras no jeito de compor e de se vestir.

“Cheguei à mesa redonda e só vi homens de terno me olhando como se eu fosse uma mulher-objeto, algo a ser trabalhado para atender a opinião deles de como deveria me comportar como artista. Papo vai, papo vem, e eu lá, só ouvindo. Os caras começaram a dizer como eu deveria me vestir: tipo minissaia e casquinho cor-de-rosa, fazendo a cocotinha fofinha e bem comportadinha, cantando músicas de outros compositores, falando de amor pueril e bobinho. Me levantei da mesa, mandei todos tomarem no cu. e fui para o banheiro da gravadora fumar um baseado. Não é preciso dizer que meu contrato foi cancelado pelos eguinhos masculinos e fiquei desempregada. Mas o lado bom daquela reunião foi aprender o que não fazer”, diz o trecho escrito por Rita.

Outras canções inéditas

Em 16 de maio, dia da missa de sétima dia de Rita, João Lee, filho do meio da cantora e do músico Roberto de Carvalho, disse à reportagem do Estadão que o ‘baú da Rita’ reúne mais de uma dezena de músicas inéditas - essas, sim, gravadas - compostas por Rita e Roberto nos últimos 20 anos - portanto, não abarcam as inéditas de Fruto Proibido.

Essas faixas, segundo João, foram produzidas para projetos que acabaram não se concretizando ou ficaram de fora dos discos que a cantora lançou durante esse período.

Em 1975, três anos após ter deixado a banda Mutantes - ou ter sido convidada a se retirar dela-, Rita Lee ainda não havia emplacado na carreira solo, embora já tivesse lançado três álbuns sem a participação do grupo dos irmãos Baptista.

Com o álbum Fruto Proibido, lançado naquele ano, Rita colocou os dois pés - calçados com delicadas sandálias de plataforma - na porta da música brasileira. Com um mistura de blues e rock, ela emplacou os sucessos Ovelha Negra, só dela; Esse Tal de Roque Enrow, parceria com Paulo Coelho; e Agora Só Falta Você, escrita com o guitarrista Luiz Sérgio Carlini, músico da banda Tutti Frutti, com quem Rita divide os louros dessa fase, ainda pré- Roberto de Carvalho.

Fruto Proibido, lançado pela gravadora Som Livre, saiu com nove faixas ao todo e entrou para a história. Entretanto, segundo indicam os arquivos da Censura Federal, responsável por analisar previamente as letras das canções que eram gravadas durante a ditadura militar, Rita pode ter feito e planejado gravar pelo menos outras três canções para o álbum.

No arquivo, junto às canções que Caetano Veloso gravou no álbum Joia, também em 1975, estão as letras de:

  • Anjo da Vanguarda e Disfarce, ambas assinadas apenas por Rita,
  • e The Old Friend, em parceria com Carlini.
A cantora Rita Lee e sua banda Tutti Frutti durante show no Teatro Aquarius, em São Paulo, em foto de 1976 Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

As letras foram encontradas pelo jornalista e pesquisador Renato Vieira no repositório digital do SIAN - Serviço de Informações do Arquivo Nacional. Veja imagens dos documentos e leia os versos das músicas ao longo deste texto.

Disfarce

(Rita Lee)

Olhei no espelho

Não vi quem eu quis

Cantar para as paredes

Também pode ser

Tocando um rock

Disfarço a minha timidez

Eu quero chegar lá do outro lado

Do abismo

Ouvir o silêncio

Gritar pelo som

Nem tudo é mentira

Também pode ser

Tocando um rock

Disfarço a minha insensatez

Eu quero cantar aquela melodia inacabada

Proibida às pessoas suicidas

Dessa vida e de outras parecidas com a minha

A cantora Rita Lee na época do show 'Fruto Proibido' Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

Vieira diz que descobriu as letras por acaso, pesquisando os arquivos após a morte da cantora, aos 75 anos, no dia 8 de maio. Elas estavam na mesma pasta na qual a gravadora Philips, a mais importante à época, enviou à censura as canções que Caetano Veloso pleiteava gravar no disco Jóia, também lançado no ano de 1975.

“Essas letras nunca foram gravadas. Não conhecemos a melodia delas. Rita pode ter aproveitado as melodias em outras letras delas, assim como fez com Bad Trip, que mais tarde virou Shangrilá e Tudo Isso e Mais um Pouco que ela transformou em Fruto Proibido”, comenta Vieira.

Consultado pela reportagem do Estadão, Carlini disse não se lembrar da letra. “Isso foi em 1975. Faz mais de 40 anos. Eu sou um roqueiro”, diz o músico. Entretanto, ele não acha difícil eles terem feito a canção.

“Éramos muito produtivos. Não éramos essas bandas de rock de hoje em dia, que se pautam pelo business. Nos reunimos todos os dias para fumar baseado, ir ao cinema e fazer música”, diz Carlini, atualmente com 70 anos.

The Old Friend

(Rita Lee- Luiz Sérgio Carlini)

You remind an a old friend

In everything you do

You try to get as much as you please

Because you want to get rid of the old days

But babe, there’s no sorrow

Don’t wait until tomorrow

To understand today

And everything i say

You ask me how i know about you

Do you like to find yourself in

Timeless today?

But babe there’s no mistake

Don’nt wait until your heart to break

To realize the pain

To roconize I’m a old friend

Don’t wait until tomorrow

To understand today

O Velho Amigo (tradução, tal qual foi enviada à Censura Federal)

Você me lembra uma velho amigo

Em tudo que faz

Você tenta ao máximo agradar

Porque você deseja expulsar os dias passados

Mas babe não se lamente

Não espere até amanhã

Para entender o presente

E tudo o que eu digo

Você me pergunta como eu sei sobre você

Você gosta de se achar em um dia sem fim?

Mas babe não existe erro

Não espere até seu coração partir

Para sentir dor

Para reconhecer que eu sou um velho amigo

Não espera atá amanhã

Para entender o presente

Em Fruto Proibido, ele assina com Rita a faixa Agora Só Falta Você, além de ter tocado o lendário solo de guitarra em Ovelha Negra. “Eu fiz uma parte da letra de Ovelha Negra, mas não fui creditado”, reivindica.

Guilherme Samora, editor dos livros de Rita e estudioso da obra da cantora, diz que, há alguns anos, chegou a mostrar essas três letras para a cantora - na mesma época em a artista publicou as composições censuradas no livro FavoRita, de 2018. Rita leu todas, mas não se lembrou delas.

No entanto, Samora diz que as composições se casam perfeitamente com a temática que Rita abordou em Fruto Proibido. Algo bastante comportamental, que fez com que músicas como Ovelha Negra e Agora Só Falta Você continuarem atuais após quase 50 anos.

Basta analisar. Em Anjo da Vanguarda, uma das inéditas, Rita faz uma reflexão sobre sua personalidade. ‘Eu Sou Aquela Estranha/Vontade de ser tudo/E ao mesmo tempo nada. Em outro trecho, se mostra rebelde: ‘eu sou aquela que o rei mandou esconder/mas hoje eu voltei só para te ver’.

Anjo da Vanguarda

(Rita Lee)

Hei anjo da vanguarda

Vestido de outro e prata

Descubra esse seu rosto

Eu quero ver sua cara de perto

Você não lembra mais de mim

Eu sou aquela estranha

Vontade de ser tudo ao mesmo tempo

E nada ao mesmo tempo

Querendo ver as coisas do mundo

Cadê minhas asas de cetim?

Eu sou aquela que o rei

Mandou esconder

Mas hoje eu voltei só para te ver

Talvez eu me apresente

De um jeito esquisito, mas saiba

Meu amigo eu quero sobreviver

Eu tenho um compromisso

Com quem eu não conheço

Por isso agora mesmo eu vou sair

Fora do reino

Em Disfarce, Rita indica que buscava uma nova identidade para ela e dentro da música, algo que conseguiu com Fruto Proibido, diz a letra. ‘Tocando um rock/disfarço a minha timidez/ Eu quero chegar lá do outro lado do abismo”.

Samora chama atenção para mais uma coincidência com o que Rita produzia naquele momento. Se no disco anterior, Atrás do Porto Tem Uma Cidade, as letras eram mais curtas, em Fruto Proibido elas ganharam mais versos, tais como as inéditas apresentam.

“É incrível como eles eram produtivos. Era algo até de necessidade, pois os artistas nunca sabiam quando quantas letras seriam vetadas pela censura”, diz.

O arquivo no qual as letras de Rita foram encontradas ainda guarda uma curiosidade: a canção Ovelha Negra está com o título de ‘Ovelha Negra da Família’. A letra é a mesma que a cantora gravou em Fruto Proibido.

Rita em um dia de fúria com a gravadora

A cantora Rita Lee e sua banda Tutti Frutti durante show em 1976 no Teatro Aquarius, em São Paulo Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

O arquivo da censura indica que Fruto Proibido, um lançamento da Som Livre, começou a ser produzido na gravadora Philips, com a qual Rita tinha contrato. Foi a Philips quem mandou o lote de músicas para a censura, como indica o timbre nos papéis dos arquivos.

Um episódio pode ter feito Rita trocar de gravadora em pleno plano de voo para aquele novo disco. A cantora narra isso no livro póstumo, Outra Autobiografia (Globo Livros), que ela deixou pronto antes de morrer, no dia 9 de maio, vítima de câncer no pulmão.

Rita, segundo ela, teria sido chamada para uma reunião - e aqui está implícito que seria com os executivos da gravadora Philips, é preciso deixar claro. Os executivos queriam lhe impor regras no jeito de compor e de se vestir.

“Cheguei à mesa redonda e só vi homens de terno me olhando como se eu fosse uma mulher-objeto, algo a ser trabalhado para atender a opinião deles de como deveria me comportar como artista. Papo vai, papo vem, e eu lá, só ouvindo. Os caras começaram a dizer como eu deveria me vestir: tipo minissaia e casquinho cor-de-rosa, fazendo a cocotinha fofinha e bem comportadinha, cantando músicas de outros compositores, falando de amor pueril e bobinho. Me levantei da mesa, mandei todos tomarem no cu. e fui para o banheiro da gravadora fumar um baseado. Não é preciso dizer que meu contrato foi cancelado pelos eguinhos masculinos e fiquei desempregada. Mas o lado bom daquela reunião foi aprender o que não fazer”, diz o trecho escrito por Rita.

Outras canções inéditas

Em 16 de maio, dia da missa de sétima dia de Rita, João Lee, filho do meio da cantora e do músico Roberto de Carvalho, disse à reportagem do Estadão que o ‘baú da Rita’ reúne mais de uma dezena de músicas inéditas - essas, sim, gravadas - compostas por Rita e Roberto nos últimos 20 anos - portanto, não abarcam as inéditas de Fruto Proibido.

Essas faixas, segundo João, foram produzidas para projetos que acabaram não se concretizando ou ficaram de fora dos discos que a cantora lançou durante esse período.

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