Rita Lee: ‘Outra Autobiografia’ é uma despedida com autoironia implacável e zero autopiedade


Veja principais revelações do livro em que a artista descreveu seus dois últimos anos de vida. Descoberta do tumor, discursos no hospital, aceitação da morte e últimos contatos com Elza Soares e Gal Costa são narrados por ela.

Por Pedro Só
Atualização:

Outra Autobiografia é uma espécie de diário da despedida de Rita Lee, escrito com o humor e a leveza que caracterizam sua obra e sua persona artística. Tem seus momentos fofos, até. Mas não deixa de expor o lado pouco solar da cantora e compositora brilhante que fez muita gente feliz ao longo de uma trajetória libertária e extremamente bem-sucedida. Com sutileza, quase que en passant, Rita menciona as crises de pânico que tornaram mais difíceis para ela e para os que a cercavam os dois anos passados entre a descoberta do câncer no pulmão e sua morte, em 8 de maio.

Uma das enfermeiras contratadas pela família para acompanhar a cantora em casa não conseguiu lidar bem com o que ela descreve como “meu número de ‘O médico e o monstro’, que começava sem aviso”. “As crises eram difíceis para as cuidadoras. Elas tinham um certo medo de cuidar de velha artista tida como drogada e malucona”, escreve Rita. Roberto de Carvalho e o filho João Lee precisavam intervir, sussurrando ao seu ouvido palavras que aos poucos iam acalmando o que ela chama de “meu bixo porra-louca”.”Pânico arrebatador. Visões tipo Inferno de Dante”, compara Rita, pouco antes de aventar a possibilidade de uma fuga do hospital à moda do ator Grande Otelo, que, em um episódio folclórico que foi notícia em 1981, fugiu de um hospital carioca só de camisola, praticamente de bunda de fora.

As revelações de Outra Autobiografia:

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  • descoberta do tumor como aparente bronquite;
  • discursos no hospital após medicação;
  • momentos comoventes com a família e o gato Saci;
  • as últimas mensagens com Elza Soares;
  • o email não enviado para Gal Costa;
  • o esoterismo no processo de aceitação da morte.

Descoberta do tumor

O livro começa narrando uma reação à vacina contra covid, em março de 2021, que a derrubou por dois dias, como se tivesse “um elefante deitado no lado esquerdo do corpo”. Ao tomar a segunda dose, em 9 de abril, nova reação veio em forma de uma aparente bronquite que a levou a se consultar com uma otorrinolaringologista. A partir daí foi descoberto que Rita, já pesando apenas 37 quilos, tinha um tumor de 20 centímetros no pulmão esquerdo. Em tempos angustiantes de pandemia, ela estava fumando três maços e meio por dia.

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Sua reação inicial ao diagnóstico foi: “Por mim, tomava o chazinho da meia-noite para ir desta para melhor”. Rita, favorável à eutanásia, tinha uma lembrança torturante: o sofrimento da mãe, Romilda Jones (morta em 1986), diante dos tratamentos disponíveis na década de 1980. Mas, depois de atualizada a respeito da evolução da medicina oncológica, resolveu “deixar a decisão com a família”, que optou por uma combinação de radioterapia e imunoterapia.

Ela vai descrevendo todos os processos com crueza: o uso da sonda nasoenteral para se alimentar, mesmo estando inapetente; a dificuldade de se “desmamar” dos remédios tarja preta a que recorreu durante boa parte da vida, a insônia, a falta de equilíbrio, o uso de cadeira de rodas, a queda dos cabelos, as oscilações de humor, a pele do pescoço e do tórax em carne viva e o esôfago queimado após as sessões de radioterapia. São dois anos de dores e desconfortos variados, contados com autoironia implacável e zero autopiedade.

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Rita Lee no ano em que foi detida por porte de maconha Foto: Bob Wolfenson

Discursos no hospital

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Sempre “tentada a sacanear qualquer tipo de autoridade”, a paciente Rita começa impossível. “Sou macaca velha de hospital e hospício, mocozei um tarja preta na nécessaire. Dizia que precisava ir ao banheiro, enchia a cara de ‘tarjas’ e saía do toalete mais ‘calminha’. (...) Depois que sumiram com meus tarjas passei três dias sem dormir, que nem uma zumbi arrastando correntes pelo quarto e o corredor do hospital. A medicação que me davam parecia pó e seu efeito anfetamínico me deixava falando até com as paredes. Segurava as enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país. E me exaltava tanto que acabavam me dando um sossega-leão e o ódio dava lugar ao choro pelos brasileiros que estavam morrendo por falta de compaixão dos canalhas no poder”.

Rita roubava na contagem de exercícios de fisioterapia. “Quem saía perdendo era eu mesma. Dãã.” Ela enxerga no próprio corpo fragilizado “uma franga depenada, galinha velha que nem bom caldo daria”. Mas encontra prazeres novos ao tomar banho de chuveiro, sentada no banquinho, sentindo a água caindo direto no couro cabeludo e cantando: “É dos carecas que elas gostam mais”.

Um dos medicamentos que toma, a carboplatina, fornece a oportunidade para dar seu jeito de “sextar”. “É um barato elegante, que inspira meu amor para tudo e para todos. Parece quando a gente está de pileque fazendo declarações de amor por aí.”

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Momentos comoventes com a família e o gato Saci

Rita preserva a intimidade do “namorado” Rob (como ela prefere tratar Roberto de Carvalho) e do filho João Lee. Mas não deixa de contar momentos comoventes sobre o amor e o cuidado que a cercaram desde que voltou do hospital pela primeira vez. “Rob encheu a casa de flores, mudou móveis de lugar, arrumou meu quarto. Encheu a despensa de guloseimas (...) Minha família é foda. Linda e fofa.” Mais adiante, descreve um alegria matinal: “Rob acorda e vem fazer festinha. Desce a escada cantando e dançando”.

Na jornada terminal da cantora, marcada pela pandemia, um tempo de morte em todo o planeta, várias perdas mais próximas vão pontuando a narrativa. O gato de raça Gambé, idoso, definha e se vai depois de 16 anos de “papos telepáticos” com a cantora. O gato vira-lata Saci, adolescente e “palhaço”, é encontrado no jardim, morto por uma picada de cobra. “Pa-pum, no auge da vida. Lá se foi meu menininho. E eu continuava viva.”

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As últimas mensagens com Elza Soares

Os últimos contatos com Elza Soares, morta em janeiro de 2022, são detalhados a partir da história da música “Rainha Africana”, que Rita fez a pedido da sambista (e está em seu álbum póstumo No tempo da intolerância, com lançamento previsto para 23 de junho) pouco antes de ter diagnosticado o câncer. A letra baixou em dez minutos, segundo a compositora: “Sendo uma guerreira/ Que passou a vida inteira/ Vista como nega maluca/ Uma preta lelé da cuca/ Eis me aqui, rainha africana/ Brazuca sul-americana (...) Poderosa no meu trono/ Eu não tenho dono”.

Uma demo foi gravada no mesmo dia, em casa, com Roberto de Carvalho, e Rita conta que precisou se esforçar para conseguir cantar — provavelmente é um de seus últimos registros. Elza ouviu e mandou um áudio: “Te adoro, criatura”. “Trocamos mensagens de amor. Ela foi uma das primeiras a me dar uma força depois do diagnóstico”, escreve Rita.

Email não enviado a Gal Costa

O capítulo “A Voz”, dedicado a Gal Costa, lamenta um email não enviado, poucos dias antes da partida da cantora baiana, em 9 de novembro, mas lista “polaróides”, episódios carinhosos e mesmo de flerte jocoso entre as duas cantoras. Em um encontro casual, no lobby de um hotel em Nova York, Rita conta que incorporou seu personagem humorístico Aníbal (um mecânico cafajeste), e deu “umas investidas” em Gal. “A namorada dela não achou graça”, observa Rita, gaiata.

O esoterismo no processo de aceitação da morte

No processo de aceitação da morte, a cantora revisita os tempos em que “fuçava o esoterismo”: recorre a orações tibetanas, budismo, tarô, cabala e teosofia. Vive uma experiência de sair do próprio corpo físico, consciente, tomada “por um amor imenso”. Ao andar devagar pelo jardim de casa, “atenta aos sopros cósmicos”, desfruta do que chama de “meditabundar”, cercada dos bichos que tanto ama e da árvore que gosta de abraçar. “A atividade física que eu mais gosto é dormir”, crava.

Outra Autobiografia termina com várias elucubrações de Rita sobre a finitude e a vida após a morte, “o grande gozo final da vida”, o “desmanchar num microátomo”, a partida “para o desconhecido do qual não tenho medo”. Um dos últimos sonhos que conseguiu deixar registrado está no livro: Rita Lee viaja no tempo até os anos 1940 para alertar a humanidade sobre o atentado que viria em 11 de setembro de 2001, encontra Carmen Miranda e Noel Rosa, cheira lança-perfume, se esquece da missão e termina dançando com Aracy de Almeida.

Rita Lee: Outra Autobiografia

Editora: Globo Livros (192 págs.; R$ 64,90; R$ 44,90 (o e-book)

Outra Autobiografia é uma espécie de diário da despedida de Rita Lee, escrito com o humor e a leveza que caracterizam sua obra e sua persona artística. Tem seus momentos fofos, até. Mas não deixa de expor o lado pouco solar da cantora e compositora brilhante que fez muita gente feliz ao longo de uma trajetória libertária e extremamente bem-sucedida. Com sutileza, quase que en passant, Rita menciona as crises de pânico que tornaram mais difíceis para ela e para os que a cercavam os dois anos passados entre a descoberta do câncer no pulmão e sua morte, em 8 de maio.

Uma das enfermeiras contratadas pela família para acompanhar a cantora em casa não conseguiu lidar bem com o que ela descreve como “meu número de ‘O médico e o monstro’, que começava sem aviso”. “As crises eram difíceis para as cuidadoras. Elas tinham um certo medo de cuidar de velha artista tida como drogada e malucona”, escreve Rita. Roberto de Carvalho e o filho João Lee precisavam intervir, sussurrando ao seu ouvido palavras que aos poucos iam acalmando o que ela chama de “meu bixo porra-louca”.”Pânico arrebatador. Visões tipo Inferno de Dante”, compara Rita, pouco antes de aventar a possibilidade de uma fuga do hospital à moda do ator Grande Otelo, que, em um episódio folclórico que foi notícia em 1981, fugiu de um hospital carioca só de camisola, praticamente de bunda de fora.

As revelações de Outra Autobiografia:

  • descoberta do tumor como aparente bronquite;
  • discursos no hospital após medicação;
  • momentos comoventes com a família e o gato Saci;
  • as últimas mensagens com Elza Soares;
  • o email não enviado para Gal Costa;
  • o esoterismo no processo de aceitação da morte.

Descoberta do tumor

O livro começa narrando uma reação à vacina contra covid, em março de 2021, que a derrubou por dois dias, como se tivesse “um elefante deitado no lado esquerdo do corpo”. Ao tomar a segunda dose, em 9 de abril, nova reação veio em forma de uma aparente bronquite que a levou a se consultar com uma otorrinolaringologista. A partir daí foi descoberto que Rita, já pesando apenas 37 quilos, tinha um tumor de 20 centímetros no pulmão esquerdo. Em tempos angustiantes de pandemia, ela estava fumando três maços e meio por dia.

Sua reação inicial ao diagnóstico foi: “Por mim, tomava o chazinho da meia-noite para ir desta para melhor”. Rita, favorável à eutanásia, tinha uma lembrança torturante: o sofrimento da mãe, Romilda Jones (morta em 1986), diante dos tratamentos disponíveis na década de 1980. Mas, depois de atualizada a respeito da evolução da medicina oncológica, resolveu “deixar a decisão com a família”, que optou por uma combinação de radioterapia e imunoterapia.

Ela vai descrevendo todos os processos com crueza: o uso da sonda nasoenteral para se alimentar, mesmo estando inapetente; a dificuldade de se “desmamar” dos remédios tarja preta a que recorreu durante boa parte da vida, a insônia, a falta de equilíbrio, o uso de cadeira de rodas, a queda dos cabelos, as oscilações de humor, a pele do pescoço e do tórax em carne viva e o esôfago queimado após as sessões de radioterapia. São dois anos de dores e desconfortos variados, contados com autoironia implacável e zero autopiedade.

Rita Lee no ano em que foi detida por porte de maconha Foto: Bob Wolfenson

Discursos no hospital

Sempre “tentada a sacanear qualquer tipo de autoridade”, a paciente Rita começa impossível. “Sou macaca velha de hospital e hospício, mocozei um tarja preta na nécessaire. Dizia que precisava ir ao banheiro, enchia a cara de ‘tarjas’ e saía do toalete mais ‘calminha’. (...) Depois que sumiram com meus tarjas passei três dias sem dormir, que nem uma zumbi arrastando correntes pelo quarto e o corredor do hospital. A medicação que me davam parecia pó e seu efeito anfetamínico me deixava falando até com as paredes. Segurava as enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país. E me exaltava tanto que acabavam me dando um sossega-leão e o ódio dava lugar ao choro pelos brasileiros que estavam morrendo por falta de compaixão dos canalhas no poder”.

Rita roubava na contagem de exercícios de fisioterapia. “Quem saía perdendo era eu mesma. Dãã.” Ela enxerga no próprio corpo fragilizado “uma franga depenada, galinha velha que nem bom caldo daria”. Mas encontra prazeres novos ao tomar banho de chuveiro, sentada no banquinho, sentindo a água caindo direto no couro cabeludo e cantando: “É dos carecas que elas gostam mais”.

Um dos medicamentos que toma, a carboplatina, fornece a oportunidade para dar seu jeito de “sextar”. “É um barato elegante, que inspira meu amor para tudo e para todos. Parece quando a gente está de pileque fazendo declarações de amor por aí.”

Momentos comoventes com a família e o gato Saci

Rita preserva a intimidade do “namorado” Rob (como ela prefere tratar Roberto de Carvalho) e do filho João Lee. Mas não deixa de contar momentos comoventes sobre o amor e o cuidado que a cercaram desde que voltou do hospital pela primeira vez. “Rob encheu a casa de flores, mudou móveis de lugar, arrumou meu quarto. Encheu a despensa de guloseimas (...) Minha família é foda. Linda e fofa.” Mais adiante, descreve um alegria matinal: “Rob acorda e vem fazer festinha. Desce a escada cantando e dançando”.

Na jornada terminal da cantora, marcada pela pandemia, um tempo de morte em todo o planeta, várias perdas mais próximas vão pontuando a narrativa. O gato de raça Gambé, idoso, definha e se vai depois de 16 anos de “papos telepáticos” com a cantora. O gato vira-lata Saci, adolescente e “palhaço”, é encontrado no jardim, morto por uma picada de cobra. “Pa-pum, no auge da vida. Lá se foi meu menininho. E eu continuava viva.”

As últimas mensagens com Elza Soares

Os últimos contatos com Elza Soares, morta em janeiro de 2022, são detalhados a partir da história da música “Rainha Africana”, que Rita fez a pedido da sambista (e está em seu álbum póstumo No tempo da intolerância, com lançamento previsto para 23 de junho) pouco antes de ter diagnosticado o câncer. A letra baixou em dez minutos, segundo a compositora: “Sendo uma guerreira/ Que passou a vida inteira/ Vista como nega maluca/ Uma preta lelé da cuca/ Eis me aqui, rainha africana/ Brazuca sul-americana (...) Poderosa no meu trono/ Eu não tenho dono”.

Uma demo foi gravada no mesmo dia, em casa, com Roberto de Carvalho, e Rita conta que precisou se esforçar para conseguir cantar — provavelmente é um de seus últimos registros. Elza ouviu e mandou um áudio: “Te adoro, criatura”. “Trocamos mensagens de amor. Ela foi uma das primeiras a me dar uma força depois do diagnóstico”, escreve Rita.

Email não enviado a Gal Costa

O capítulo “A Voz”, dedicado a Gal Costa, lamenta um email não enviado, poucos dias antes da partida da cantora baiana, em 9 de novembro, mas lista “polaróides”, episódios carinhosos e mesmo de flerte jocoso entre as duas cantoras. Em um encontro casual, no lobby de um hotel em Nova York, Rita conta que incorporou seu personagem humorístico Aníbal (um mecânico cafajeste), e deu “umas investidas” em Gal. “A namorada dela não achou graça”, observa Rita, gaiata.

O esoterismo no processo de aceitação da morte

No processo de aceitação da morte, a cantora revisita os tempos em que “fuçava o esoterismo”: recorre a orações tibetanas, budismo, tarô, cabala e teosofia. Vive uma experiência de sair do próprio corpo físico, consciente, tomada “por um amor imenso”. Ao andar devagar pelo jardim de casa, “atenta aos sopros cósmicos”, desfruta do que chama de “meditabundar”, cercada dos bichos que tanto ama e da árvore que gosta de abraçar. “A atividade física que eu mais gosto é dormir”, crava.

Outra Autobiografia termina com várias elucubrações de Rita sobre a finitude e a vida após a morte, “o grande gozo final da vida”, o “desmanchar num microátomo”, a partida “para o desconhecido do qual não tenho medo”. Um dos últimos sonhos que conseguiu deixar registrado está no livro: Rita Lee viaja no tempo até os anos 1940 para alertar a humanidade sobre o atentado que viria em 11 de setembro de 2001, encontra Carmen Miranda e Noel Rosa, cheira lança-perfume, se esquece da missão e termina dançando com Aracy de Almeida.

Rita Lee: Outra Autobiografia

Editora: Globo Livros (192 págs.; R$ 64,90; R$ 44,90 (o e-book)

Outra Autobiografia é uma espécie de diário da despedida de Rita Lee, escrito com o humor e a leveza que caracterizam sua obra e sua persona artística. Tem seus momentos fofos, até. Mas não deixa de expor o lado pouco solar da cantora e compositora brilhante que fez muita gente feliz ao longo de uma trajetória libertária e extremamente bem-sucedida. Com sutileza, quase que en passant, Rita menciona as crises de pânico que tornaram mais difíceis para ela e para os que a cercavam os dois anos passados entre a descoberta do câncer no pulmão e sua morte, em 8 de maio.

Uma das enfermeiras contratadas pela família para acompanhar a cantora em casa não conseguiu lidar bem com o que ela descreve como “meu número de ‘O médico e o monstro’, que começava sem aviso”. “As crises eram difíceis para as cuidadoras. Elas tinham um certo medo de cuidar de velha artista tida como drogada e malucona”, escreve Rita. Roberto de Carvalho e o filho João Lee precisavam intervir, sussurrando ao seu ouvido palavras que aos poucos iam acalmando o que ela chama de “meu bixo porra-louca”.”Pânico arrebatador. Visões tipo Inferno de Dante”, compara Rita, pouco antes de aventar a possibilidade de uma fuga do hospital à moda do ator Grande Otelo, que, em um episódio folclórico que foi notícia em 1981, fugiu de um hospital carioca só de camisola, praticamente de bunda de fora.

As revelações de Outra Autobiografia:

  • descoberta do tumor como aparente bronquite;
  • discursos no hospital após medicação;
  • momentos comoventes com a família e o gato Saci;
  • as últimas mensagens com Elza Soares;
  • o email não enviado para Gal Costa;
  • o esoterismo no processo de aceitação da morte.

Descoberta do tumor

O livro começa narrando uma reação à vacina contra covid, em março de 2021, que a derrubou por dois dias, como se tivesse “um elefante deitado no lado esquerdo do corpo”. Ao tomar a segunda dose, em 9 de abril, nova reação veio em forma de uma aparente bronquite que a levou a se consultar com uma otorrinolaringologista. A partir daí foi descoberto que Rita, já pesando apenas 37 quilos, tinha um tumor de 20 centímetros no pulmão esquerdo. Em tempos angustiantes de pandemia, ela estava fumando três maços e meio por dia.

Sua reação inicial ao diagnóstico foi: “Por mim, tomava o chazinho da meia-noite para ir desta para melhor”. Rita, favorável à eutanásia, tinha uma lembrança torturante: o sofrimento da mãe, Romilda Jones (morta em 1986), diante dos tratamentos disponíveis na década de 1980. Mas, depois de atualizada a respeito da evolução da medicina oncológica, resolveu “deixar a decisão com a família”, que optou por uma combinação de radioterapia e imunoterapia.

Ela vai descrevendo todos os processos com crueza: o uso da sonda nasoenteral para se alimentar, mesmo estando inapetente; a dificuldade de se “desmamar” dos remédios tarja preta a que recorreu durante boa parte da vida, a insônia, a falta de equilíbrio, o uso de cadeira de rodas, a queda dos cabelos, as oscilações de humor, a pele do pescoço e do tórax em carne viva e o esôfago queimado após as sessões de radioterapia. São dois anos de dores e desconfortos variados, contados com autoironia implacável e zero autopiedade.

Rita Lee no ano em que foi detida por porte de maconha Foto: Bob Wolfenson

Discursos no hospital

Sempre “tentada a sacanear qualquer tipo de autoridade”, a paciente Rita começa impossível. “Sou macaca velha de hospital e hospício, mocozei um tarja preta na nécessaire. Dizia que precisava ir ao banheiro, enchia a cara de ‘tarjas’ e saía do toalete mais ‘calminha’. (...) Depois que sumiram com meus tarjas passei três dias sem dormir, que nem uma zumbi arrastando correntes pelo quarto e o corredor do hospital. A medicação que me davam parecia pó e seu efeito anfetamínico me deixava falando até com as paredes. Segurava as enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país. E me exaltava tanto que acabavam me dando um sossega-leão e o ódio dava lugar ao choro pelos brasileiros que estavam morrendo por falta de compaixão dos canalhas no poder”.

Rita roubava na contagem de exercícios de fisioterapia. “Quem saía perdendo era eu mesma. Dãã.” Ela enxerga no próprio corpo fragilizado “uma franga depenada, galinha velha que nem bom caldo daria”. Mas encontra prazeres novos ao tomar banho de chuveiro, sentada no banquinho, sentindo a água caindo direto no couro cabeludo e cantando: “É dos carecas que elas gostam mais”.

Um dos medicamentos que toma, a carboplatina, fornece a oportunidade para dar seu jeito de “sextar”. “É um barato elegante, que inspira meu amor para tudo e para todos. Parece quando a gente está de pileque fazendo declarações de amor por aí.”

Momentos comoventes com a família e o gato Saci

Rita preserva a intimidade do “namorado” Rob (como ela prefere tratar Roberto de Carvalho) e do filho João Lee. Mas não deixa de contar momentos comoventes sobre o amor e o cuidado que a cercaram desde que voltou do hospital pela primeira vez. “Rob encheu a casa de flores, mudou móveis de lugar, arrumou meu quarto. Encheu a despensa de guloseimas (...) Minha família é foda. Linda e fofa.” Mais adiante, descreve um alegria matinal: “Rob acorda e vem fazer festinha. Desce a escada cantando e dançando”.

Na jornada terminal da cantora, marcada pela pandemia, um tempo de morte em todo o planeta, várias perdas mais próximas vão pontuando a narrativa. O gato de raça Gambé, idoso, definha e se vai depois de 16 anos de “papos telepáticos” com a cantora. O gato vira-lata Saci, adolescente e “palhaço”, é encontrado no jardim, morto por uma picada de cobra. “Pa-pum, no auge da vida. Lá se foi meu menininho. E eu continuava viva.”

As últimas mensagens com Elza Soares

Os últimos contatos com Elza Soares, morta em janeiro de 2022, são detalhados a partir da história da música “Rainha Africana”, que Rita fez a pedido da sambista (e está em seu álbum póstumo No tempo da intolerância, com lançamento previsto para 23 de junho) pouco antes de ter diagnosticado o câncer. A letra baixou em dez minutos, segundo a compositora: “Sendo uma guerreira/ Que passou a vida inteira/ Vista como nega maluca/ Uma preta lelé da cuca/ Eis me aqui, rainha africana/ Brazuca sul-americana (...) Poderosa no meu trono/ Eu não tenho dono”.

Uma demo foi gravada no mesmo dia, em casa, com Roberto de Carvalho, e Rita conta que precisou se esforçar para conseguir cantar — provavelmente é um de seus últimos registros. Elza ouviu e mandou um áudio: “Te adoro, criatura”. “Trocamos mensagens de amor. Ela foi uma das primeiras a me dar uma força depois do diagnóstico”, escreve Rita.

Email não enviado a Gal Costa

O capítulo “A Voz”, dedicado a Gal Costa, lamenta um email não enviado, poucos dias antes da partida da cantora baiana, em 9 de novembro, mas lista “polaróides”, episódios carinhosos e mesmo de flerte jocoso entre as duas cantoras. Em um encontro casual, no lobby de um hotel em Nova York, Rita conta que incorporou seu personagem humorístico Aníbal (um mecânico cafajeste), e deu “umas investidas” em Gal. “A namorada dela não achou graça”, observa Rita, gaiata.

O esoterismo no processo de aceitação da morte

No processo de aceitação da morte, a cantora revisita os tempos em que “fuçava o esoterismo”: recorre a orações tibetanas, budismo, tarô, cabala e teosofia. Vive uma experiência de sair do próprio corpo físico, consciente, tomada “por um amor imenso”. Ao andar devagar pelo jardim de casa, “atenta aos sopros cósmicos”, desfruta do que chama de “meditabundar”, cercada dos bichos que tanto ama e da árvore que gosta de abraçar. “A atividade física que eu mais gosto é dormir”, crava.

Outra Autobiografia termina com várias elucubrações de Rita sobre a finitude e a vida após a morte, “o grande gozo final da vida”, o “desmanchar num microátomo”, a partida “para o desconhecido do qual não tenho medo”. Um dos últimos sonhos que conseguiu deixar registrado está no livro: Rita Lee viaja no tempo até os anos 1940 para alertar a humanidade sobre o atentado que viria em 11 de setembro de 2001, encontra Carmen Miranda e Noel Rosa, cheira lança-perfume, se esquece da missão e termina dançando com Aracy de Almeida.

Rita Lee: Outra Autobiografia

Editora: Globo Livros (192 págs.; R$ 64,90; R$ 44,90 (o e-book)

Outra Autobiografia é uma espécie de diário da despedida de Rita Lee, escrito com o humor e a leveza que caracterizam sua obra e sua persona artística. Tem seus momentos fofos, até. Mas não deixa de expor o lado pouco solar da cantora e compositora brilhante que fez muita gente feliz ao longo de uma trajetória libertária e extremamente bem-sucedida. Com sutileza, quase que en passant, Rita menciona as crises de pânico que tornaram mais difíceis para ela e para os que a cercavam os dois anos passados entre a descoberta do câncer no pulmão e sua morte, em 8 de maio.

Uma das enfermeiras contratadas pela família para acompanhar a cantora em casa não conseguiu lidar bem com o que ela descreve como “meu número de ‘O médico e o monstro’, que começava sem aviso”. “As crises eram difíceis para as cuidadoras. Elas tinham um certo medo de cuidar de velha artista tida como drogada e malucona”, escreve Rita. Roberto de Carvalho e o filho João Lee precisavam intervir, sussurrando ao seu ouvido palavras que aos poucos iam acalmando o que ela chama de “meu bixo porra-louca”.”Pânico arrebatador. Visões tipo Inferno de Dante”, compara Rita, pouco antes de aventar a possibilidade de uma fuga do hospital à moda do ator Grande Otelo, que, em um episódio folclórico que foi notícia em 1981, fugiu de um hospital carioca só de camisola, praticamente de bunda de fora.

As revelações de Outra Autobiografia:

  • descoberta do tumor como aparente bronquite;
  • discursos no hospital após medicação;
  • momentos comoventes com a família e o gato Saci;
  • as últimas mensagens com Elza Soares;
  • o email não enviado para Gal Costa;
  • o esoterismo no processo de aceitação da morte.

Descoberta do tumor

O livro começa narrando uma reação à vacina contra covid, em março de 2021, que a derrubou por dois dias, como se tivesse “um elefante deitado no lado esquerdo do corpo”. Ao tomar a segunda dose, em 9 de abril, nova reação veio em forma de uma aparente bronquite que a levou a se consultar com uma otorrinolaringologista. A partir daí foi descoberto que Rita, já pesando apenas 37 quilos, tinha um tumor de 20 centímetros no pulmão esquerdo. Em tempos angustiantes de pandemia, ela estava fumando três maços e meio por dia.

Sua reação inicial ao diagnóstico foi: “Por mim, tomava o chazinho da meia-noite para ir desta para melhor”. Rita, favorável à eutanásia, tinha uma lembrança torturante: o sofrimento da mãe, Romilda Jones (morta em 1986), diante dos tratamentos disponíveis na década de 1980. Mas, depois de atualizada a respeito da evolução da medicina oncológica, resolveu “deixar a decisão com a família”, que optou por uma combinação de radioterapia e imunoterapia.

Ela vai descrevendo todos os processos com crueza: o uso da sonda nasoenteral para se alimentar, mesmo estando inapetente; a dificuldade de se “desmamar” dos remédios tarja preta a que recorreu durante boa parte da vida, a insônia, a falta de equilíbrio, o uso de cadeira de rodas, a queda dos cabelos, as oscilações de humor, a pele do pescoço e do tórax em carne viva e o esôfago queimado após as sessões de radioterapia. São dois anos de dores e desconfortos variados, contados com autoironia implacável e zero autopiedade.

Rita Lee no ano em que foi detida por porte de maconha Foto: Bob Wolfenson

Discursos no hospital

Sempre “tentada a sacanear qualquer tipo de autoridade”, a paciente Rita começa impossível. “Sou macaca velha de hospital e hospício, mocozei um tarja preta na nécessaire. Dizia que precisava ir ao banheiro, enchia a cara de ‘tarjas’ e saía do toalete mais ‘calminha’. (...) Depois que sumiram com meus tarjas passei três dias sem dormir, que nem uma zumbi arrastando correntes pelo quarto e o corredor do hospital. A medicação que me davam parecia pó e seu efeito anfetamínico me deixava falando até com as paredes. Segurava as enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país. E me exaltava tanto que acabavam me dando um sossega-leão e o ódio dava lugar ao choro pelos brasileiros que estavam morrendo por falta de compaixão dos canalhas no poder”.

Rita roubava na contagem de exercícios de fisioterapia. “Quem saía perdendo era eu mesma. Dãã.” Ela enxerga no próprio corpo fragilizado “uma franga depenada, galinha velha que nem bom caldo daria”. Mas encontra prazeres novos ao tomar banho de chuveiro, sentada no banquinho, sentindo a água caindo direto no couro cabeludo e cantando: “É dos carecas que elas gostam mais”.

Um dos medicamentos que toma, a carboplatina, fornece a oportunidade para dar seu jeito de “sextar”. “É um barato elegante, que inspira meu amor para tudo e para todos. Parece quando a gente está de pileque fazendo declarações de amor por aí.”

Momentos comoventes com a família e o gato Saci

Rita preserva a intimidade do “namorado” Rob (como ela prefere tratar Roberto de Carvalho) e do filho João Lee. Mas não deixa de contar momentos comoventes sobre o amor e o cuidado que a cercaram desde que voltou do hospital pela primeira vez. “Rob encheu a casa de flores, mudou móveis de lugar, arrumou meu quarto. Encheu a despensa de guloseimas (...) Minha família é foda. Linda e fofa.” Mais adiante, descreve um alegria matinal: “Rob acorda e vem fazer festinha. Desce a escada cantando e dançando”.

Na jornada terminal da cantora, marcada pela pandemia, um tempo de morte em todo o planeta, várias perdas mais próximas vão pontuando a narrativa. O gato de raça Gambé, idoso, definha e se vai depois de 16 anos de “papos telepáticos” com a cantora. O gato vira-lata Saci, adolescente e “palhaço”, é encontrado no jardim, morto por uma picada de cobra. “Pa-pum, no auge da vida. Lá se foi meu menininho. E eu continuava viva.”

As últimas mensagens com Elza Soares

Os últimos contatos com Elza Soares, morta em janeiro de 2022, são detalhados a partir da história da música “Rainha Africana”, que Rita fez a pedido da sambista (e está em seu álbum póstumo No tempo da intolerância, com lançamento previsto para 23 de junho) pouco antes de ter diagnosticado o câncer. A letra baixou em dez minutos, segundo a compositora: “Sendo uma guerreira/ Que passou a vida inteira/ Vista como nega maluca/ Uma preta lelé da cuca/ Eis me aqui, rainha africana/ Brazuca sul-americana (...) Poderosa no meu trono/ Eu não tenho dono”.

Uma demo foi gravada no mesmo dia, em casa, com Roberto de Carvalho, e Rita conta que precisou se esforçar para conseguir cantar — provavelmente é um de seus últimos registros. Elza ouviu e mandou um áudio: “Te adoro, criatura”. “Trocamos mensagens de amor. Ela foi uma das primeiras a me dar uma força depois do diagnóstico”, escreve Rita.

Email não enviado a Gal Costa

O capítulo “A Voz”, dedicado a Gal Costa, lamenta um email não enviado, poucos dias antes da partida da cantora baiana, em 9 de novembro, mas lista “polaróides”, episódios carinhosos e mesmo de flerte jocoso entre as duas cantoras. Em um encontro casual, no lobby de um hotel em Nova York, Rita conta que incorporou seu personagem humorístico Aníbal (um mecânico cafajeste), e deu “umas investidas” em Gal. “A namorada dela não achou graça”, observa Rita, gaiata.

O esoterismo no processo de aceitação da morte

No processo de aceitação da morte, a cantora revisita os tempos em que “fuçava o esoterismo”: recorre a orações tibetanas, budismo, tarô, cabala e teosofia. Vive uma experiência de sair do próprio corpo físico, consciente, tomada “por um amor imenso”. Ao andar devagar pelo jardim de casa, “atenta aos sopros cósmicos”, desfruta do que chama de “meditabundar”, cercada dos bichos que tanto ama e da árvore que gosta de abraçar. “A atividade física que eu mais gosto é dormir”, crava.

Outra Autobiografia termina com várias elucubrações de Rita sobre a finitude e a vida após a morte, “o grande gozo final da vida”, o “desmanchar num microátomo”, a partida “para o desconhecido do qual não tenho medo”. Um dos últimos sonhos que conseguiu deixar registrado está no livro: Rita Lee viaja no tempo até os anos 1940 para alertar a humanidade sobre o atentado que viria em 11 de setembro de 2001, encontra Carmen Miranda e Noel Rosa, cheira lança-perfume, se esquece da missão e termina dançando com Aracy de Almeida.

Rita Lee: Outra Autobiografia

Editora: Globo Livros (192 págs.; R$ 64,90; R$ 44,90 (o e-book)

Outra Autobiografia é uma espécie de diário da despedida de Rita Lee, escrito com o humor e a leveza que caracterizam sua obra e sua persona artística. Tem seus momentos fofos, até. Mas não deixa de expor o lado pouco solar da cantora e compositora brilhante que fez muita gente feliz ao longo de uma trajetória libertária e extremamente bem-sucedida. Com sutileza, quase que en passant, Rita menciona as crises de pânico que tornaram mais difíceis para ela e para os que a cercavam os dois anos passados entre a descoberta do câncer no pulmão e sua morte, em 8 de maio.

Uma das enfermeiras contratadas pela família para acompanhar a cantora em casa não conseguiu lidar bem com o que ela descreve como “meu número de ‘O médico e o monstro’, que começava sem aviso”. “As crises eram difíceis para as cuidadoras. Elas tinham um certo medo de cuidar de velha artista tida como drogada e malucona”, escreve Rita. Roberto de Carvalho e o filho João Lee precisavam intervir, sussurrando ao seu ouvido palavras que aos poucos iam acalmando o que ela chama de “meu bixo porra-louca”.”Pânico arrebatador. Visões tipo Inferno de Dante”, compara Rita, pouco antes de aventar a possibilidade de uma fuga do hospital à moda do ator Grande Otelo, que, em um episódio folclórico que foi notícia em 1981, fugiu de um hospital carioca só de camisola, praticamente de bunda de fora.

As revelações de Outra Autobiografia:

  • descoberta do tumor como aparente bronquite;
  • discursos no hospital após medicação;
  • momentos comoventes com a família e o gato Saci;
  • as últimas mensagens com Elza Soares;
  • o email não enviado para Gal Costa;
  • o esoterismo no processo de aceitação da morte.

Descoberta do tumor

O livro começa narrando uma reação à vacina contra covid, em março de 2021, que a derrubou por dois dias, como se tivesse “um elefante deitado no lado esquerdo do corpo”. Ao tomar a segunda dose, em 9 de abril, nova reação veio em forma de uma aparente bronquite que a levou a se consultar com uma otorrinolaringologista. A partir daí foi descoberto que Rita, já pesando apenas 37 quilos, tinha um tumor de 20 centímetros no pulmão esquerdo. Em tempos angustiantes de pandemia, ela estava fumando três maços e meio por dia.

Sua reação inicial ao diagnóstico foi: “Por mim, tomava o chazinho da meia-noite para ir desta para melhor”. Rita, favorável à eutanásia, tinha uma lembrança torturante: o sofrimento da mãe, Romilda Jones (morta em 1986), diante dos tratamentos disponíveis na década de 1980. Mas, depois de atualizada a respeito da evolução da medicina oncológica, resolveu “deixar a decisão com a família”, que optou por uma combinação de radioterapia e imunoterapia.

Ela vai descrevendo todos os processos com crueza: o uso da sonda nasoenteral para se alimentar, mesmo estando inapetente; a dificuldade de se “desmamar” dos remédios tarja preta a que recorreu durante boa parte da vida, a insônia, a falta de equilíbrio, o uso de cadeira de rodas, a queda dos cabelos, as oscilações de humor, a pele do pescoço e do tórax em carne viva e o esôfago queimado após as sessões de radioterapia. São dois anos de dores e desconfortos variados, contados com autoironia implacável e zero autopiedade.

Rita Lee no ano em que foi detida por porte de maconha Foto: Bob Wolfenson

Discursos no hospital

Sempre “tentada a sacanear qualquer tipo de autoridade”, a paciente Rita começa impossível. “Sou macaca velha de hospital e hospício, mocozei um tarja preta na nécessaire. Dizia que precisava ir ao banheiro, enchia a cara de ‘tarjas’ e saía do toalete mais ‘calminha’. (...) Depois que sumiram com meus tarjas passei três dias sem dormir, que nem uma zumbi arrastando correntes pelo quarto e o corredor do hospital. A medicação que me davam parecia pó e seu efeito anfetamínico me deixava falando até com as paredes. Segurava as enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país. E me exaltava tanto que acabavam me dando um sossega-leão e o ódio dava lugar ao choro pelos brasileiros que estavam morrendo por falta de compaixão dos canalhas no poder”.

Rita roubava na contagem de exercícios de fisioterapia. “Quem saía perdendo era eu mesma. Dãã.” Ela enxerga no próprio corpo fragilizado “uma franga depenada, galinha velha que nem bom caldo daria”. Mas encontra prazeres novos ao tomar banho de chuveiro, sentada no banquinho, sentindo a água caindo direto no couro cabeludo e cantando: “É dos carecas que elas gostam mais”.

Um dos medicamentos que toma, a carboplatina, fornece a oportunidade para dar seu jeito de “sextar”. “É um barato elegante, que inspira meu amor para tudo e para todos. Parece quando a gente está de pileque fazendo declarações de amor por aí.”

Momentos comoventes com a família e o gato Saci

Rita preserva a intimidade do “namorado” Rob (como ela prefere tratar Roberto de Carvalho) e do filho João Lee. Mas não deixa de contar momentos comoventes sobre o amor e o cuidado que a cercaram desde que voltou do hospital pela primeira vez. “Rob encheu a casa de flores, mudou móveis de lugar, arrumou meu quarto. Encheu a despensa de guloseimas (...) Minha família é foda. Linda e fofa.” Mais adiante, descreve um alegria matinal: “Rob acorda e vem fazer festinha. Desce a escada cantando e dançando”.

Na jornada terminal da cantora, marcada pela pandemia, um tempo de morte em todo o planeta, várias perdas mais próximas vão pontuando a narrativa. O gato de raça Gambé, idoso, definha e se vai depois de 16 anos de “papos telepáticos” com a cantora. O gato vira-lata Saci, adolescente e “palhaço”, é encontrado no jardim, morto por uma picada de cobra. “Pa-pum, no auge da vida. Lá se foi meu menininho. E eu continuava viva.”

As últimas mensagens com Elza Soares

Os últimos contatos com Elza Soares, morta em janeiro de 2022, são detalhados a partir da história da música “Rainha Africana”, que Rita fez a pedido da sambista (e está em seu álbum póstumo No tempo da intolerância, com lançamento previsto para 23 de junho) pouco antes de ter diagnosticado o câncer. A letra baixou em dez minutos, segundo a compositora: “Sendo uma guerreira/ Que passou a vida inteira/ Vista como nega maluca/ Uma preta lelé da cuca/ Eis me aqui, rainha africana/ Brazuca sul-americana (...) Poderosa no meu trono/ Eu não tenho dono”.

Uma demo foi gravada no mesmo dia, em casa, com Roberto de Carvalho, e Rita conta que precisou se esforçar para conseguir cantar — provavelmente é um de seus últimos registros. Elza ouviu e mandou um áudio: “Te adoro, criatura”. “Trocamos mensagens de amor. Ela foi uma das primeiras a me dar uma força depois do diagnóstico”, escreve Rita.

Email não enviado a Gal Costa

O capítulo “A Voz”, dedicado a Gal Costa, lamenta um email não enviado, poucos dias antes da partida da cantora baiana, em 9 de novembro, mas lista “polaróides”, episódios carinhosos e mesmo de flerte jocoso entre as duas cantoras. Em um encontro casual, no lobby de um hotel em Nova York, Rita conta que incorporou seu personagem humorístico Aníbal (um mecânico cafajeste), e deu “umas investidas” em Gal. “A namorada dela não achou graça”, observa Rita, gaiata.

O esoterismo no processo de aceitação da morte

No processo de aceitação da morte, a cantora revisita os tempos em que “fuçava o esoterismo”: recorre a orações tibetanas, budismo, tarô, cabala e teosofia. Vive uma experiência de sair do próprio corpo físico, consciente, tomada “por um amor imenso”. Ao andar devagar pelo jardim de casa, “atenta aos sopros cósmicos”, desfruta do que chama de “meditabundar”, cercada dos bichos que tanto ama e da árvore que gosta de abraçar. “A atividade física que eu mais gosto é dormir”, crava.

Outra Autobiografia termina com várias elucubrações de Rita sobre a finitude e a vida após a morte, “o grande gozo final da vida”, o “desmanchar num microátomo”, a partida “para o desconhecido do qual não tenho medo”. Um dos últimos sonhos que conseguiu deixar registrado está no livro: Rita Lee viaja no tempo até os anos 1940 para alertar a humanidade sobre o atentado que viria em 11 de setembro de 2001, encontra Carmen Miranda e Noel Rosa, cheira lança-perfume, se esquece da missão e termina dançando com Aracy de Almeida.

Rita Lee: Outra Autobiografia

Editora: Globo Livros (192 págs.; R$ 64,90; R$ 44,90 (o e-book)

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