Secos & Molhados, perdidos & achados: o que aconteceu com músicos da banda que ficaram esquecidos?


‘Estadão’ foi atrás de figuras que passaram por uma das bandas mais importantes do Brasil, em discos de 1978 a 1988, mas falaram pouco e até tinham trajetórias desconhecidas, com histórias reclusas e mortes no anonimato

Por Mateus de Albuquerque e Leonardo Catto
Atualização:

O álbum de estreia do Secos & Molhados, com a icônica capa da mesa de jantar e a música Sangue Latino na faixa de abertura, completa 50 anos em agosto de 2023. Os rostos de Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias, servidos em bandejas, formam uma das principais imagens no imaginário do fã de rock brasileiro. Porém, neste banquete já foram servidas outras cabeças ao longo da história do grupo, em álbuns posteriores.

Claro que os integrantes de 1973, especialmente Ney Matogrosso e João Ricardo, sempre tiveram muito o que falar sobre a história de uma das bandas mais importantes do Brasil. Eles foram, sem dúvida, os ingredientes principais, bastante ouvidos e apreciados. Mas e os acompanhamentos, nas outras formações da mesa?

Capa do primeiro álbum dos Secos e Molhados Foto: Divulgação / Gravadora Continental / Warner Music
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A discografia da banda seguiu por anos depois, sempre sob o comando de João Ricardo, e sem Ney Matogrosso, com integrantes menos conhecidos e que tiveram trajetórias distintas. Nesta reportagem, o Estadão mapeia o paradeiro de alguns músicos dos álbuns de 1978, 1980 e 1988, entre quem seguiu na música e quem ficou desconhecido. Duas mortes no anonimato, sobre as quais pouco se sabiam, estão nos relatos.

Secos & Molhados (1978)

  • Integrantes: João Ricardo, Lili Rodrigues, Wander Taffo, João Ascensão e Gel Fernandes
  • Gravado no 2º semestre de 1977, nos estúdios Reunidos (São Paulo)
  • Integrante ‘perdido’: Lili Rodrigues
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Em 1977, na casa da irmã de João Ricardo, estava reunida o que seria a nova formação do Secos & Molhados, quatro anos após o primeiro álbum. O baixista João Ascensão e o guitarrista Wander Taffo haviam tocado com João no disco solo Da Boca Pra Fora (1976). Eles indicaram o baterista Gelson Fernandes, da banda Os Incríveis.

Já o vocalista Norival Rodrigues, alto e com vocal similar ao de Ney Matogrosso, tinha vindo de uma banda de Campinas, a Pedra de Sal. Marcos Maynard, na época produtor da Polygram, teve contato com a Pedra de Sal e achou interessante fazer a ponte entre a banda e João Ricardo, mirando a volta do Secos. Do conjunto, aproveitou-se somente Norival. Na conversa, entrosaram-se todos. Alguns ganharam apelidos, de autoria do próprio João Ricardo: Norival virou Lili; Gelson, Gel.

O álbum em nada lembrava a atmosfera soturna do Secos pregressos, acenando para a febre disco. O baterista faltou à sessão fotográfica, pois estava em turnê com Os Incríveis. A gravadora, preocupada com o fato de que o encarte teria a foto de um quarteto, enquanto a banda seria um quinteto, limou Gel dos créditos, o colocando como “músico convidado”.

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Lili Rodrigues, João Ascensão, João Ricardo e Wander Taffo no encarte de Secos & Molhados (1978). A função das bexigas era fazer mistério da identidade de Lili Foto: Acervo de João Ascensão

Um clipe foi gravado para o que seria o hit do álbum, Que fim levaram todas as flores?. O vídeo, registrado em uma mercearia, foi exibido no Fantástico, da TV Globo, junto a uma reportagem que anunciava a volta do grupo.

João Ricardo chegou a dizer que agora era uma banda “muito mais consistente”. De mim para você seria outro sucesso do álbum, fazendo parte da trilha sonora da novela Te Contei?.

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A projeção midiática não se traduziu em espetáculos. “Estourou a música, foi tudo legal, mas poderia ter tido mais se a gente tivesse shows”, conta Gel, sem entender. Segundo a versão de Ascensão, o fim começou com um plano de internacionalização do grupo, a partir de uma versão em espanhol de Que fim levaram todas as flores?.

Os integrantes da formação de 1978 com o figurino projetado por Naum Alves de Souza, na capa da revista Violão & Guitarra Foto: Acervo de João Ascensão

Lili, então, organizou com os demais integrantes a participação nos lucros da banda. Todos recebiam somente cachês. João Ricardo recusou a tentativa e a banda se desfez. Já Beto Rodrigues, amigo de Lili dos tempos de Pedra de Sal e que o acompanhou de perto durante a sua passagem pelo Secos, conta que a principal questão foi artística: o grupo queria participar mais nas composições.

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O histórico de João Ricardo é coerente com o relato de Gel e Beto. Para João, o Secos & Molhados é um projeto pessoal, idealizado ainda antes da formação com Gerson e Ney. Todos os músicos, para ele, eram auxiliares à sua visão.

Gel Fernandes, João Ascensão, Lili Rodrigues e Wander Taffo montaram então um novo projeto, contando com o apoio do amigo de Lili, Beto Rodrigues, nas letras. A banda chamava-se Sobrinhos da Rainha. Uma brincadeira com a postura imperial de João Ricardo, conta Beto. O grupo gravou um fonograma de 11 faixas, mas não cativou interessados em transformar aquilo em álbum. Sem shows, frustrados e quebrados, a banda minguou, e o material foi perdido.

Mais tarde, João Ascensão desembarcou. Não queria mais saber de música e retomou a faculdade de Engenharia Elétrica, profissão que exerce hoje. Ele chegou a desmontar o baixo com o qual gravou o groove de De Mim Pra Você e o jogou fora. Wander Taffo e Gel Fernandes foram chamados para a banda de Rita Lee. Os dois fundaram, mais tarde, o Rádio Táxi. Wander faleceu em 2008, de mal súbito. Gel Fernandes está até hoje na banda.

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O paradeiro de Lili Rodrigues era um grande mistério da música brasileira. O jornalista Alberto Villas tentou localizá-lo, sem sucesso, para o Fantástico, em 2003. A última aparição pública de Lili foi em uma nota do Estadão, em 1982, sobre uma apresentação do cantor na Praça da Sé. Beto, que nunca havia sido entrevistado sobre o assunto, era grande amigo de Lili.

Segundo ele, após o insucesso dos Sobrinhos, Lili desencantou. Depois, afundou-se em uma jornada autodestrutiva com drogas. Beto o acompanhou por um tempo, mas afastou-se. “Escapei desse turbilhão e segui minha vida”, lembra. Algum contato foi mantido, especialmente nas ligações de madrugada que Lili fazia, em meio a jornadas lisérgicas.

As ligações ficaram escassas, mas Beto acompanhava o amigo à distância. Lili ainda tentou montar alguns negócios, como uma loja de roupas, e trabalhou em bares de Campinas como cantor, diz João, sobrinho de Lili que esta reportagem conseguiu localizar. Em 2010, o músico faleceu de cirrose, em decorrência do uso intenso de álcool e drogas, quando João tinha 18 anos. “Eu quis me afastar tanto que acabei me afastando da minha própria memória. Eu não me conformo”, arrepende-se Beto.

Secos & Molhados (1980)

  • Integrantes: João Ricardo, Cesar Lempé, Roberto Lempé e Carlos Amantor
  • Gravado no 1º semestre de 1980, nos estúdios Polygram (Rio de Janeiro)
  • Integrante ‘perdido’: Carlos Amantor

O ano era 1979 e estavam reunidos em um bar na Lagoa da Tijuca os irmãos Cesar e Roberto Lempé e Carlos Amantor, todos do grupo vocal Visão. Já estavam por certo tempo tentando emplacar sua fita demo, sem muito sucesso, até que um empresário argentino os chamou para um encontro. Os novatos, ao verem que o hermano trazia consigo João Ricardo, ficaram em choque.

Cesar, Roberto e Carlos foram impactados pelo Secos & Molhados de 1973 em sua juventude, e conheciam todo o repertório. João fez o convite, prontamente aceito, para os três participarem da nova formação. Cesar Lempé pediu demissão do emprego pelo qual estava prestes a ser promovido e embarcou, junto dos amigos, em uma aventura.

O trio de novatos ocupou o papel de vocalistas. As maquiagens deram lugar a camisas sociais e gravatas, acenando à new wave. Em entrevista à Revista Contigo, João reforçava: “A fase das plumas e paetês acabou”.

Carlos, Roberto, João Ricardo e Cesar: as gravatas sinalizaram para a onda new wave Foto: Acervo de Cesar Lempé

A formação chegou a ter música em novela (Muitas Pessoas, para Cavalo Amarelo, da Bandeirantes). Mas vendeu pouco. Segundo os Lempé, existem duas justificativas: a má escolha de música de trabalho por parte da gravadora, que focou em Quantas Canções é Preciso Cantar?; e a aceleração que a gravadora fez no andamento, para deixar a voz de Cesar mais aguda, distorcendo a sonoridade.

Houve poucos shows. Um empresário que organizaria os eventos teria desviado recursos e não marcado datas, segundo Roberto Lempé. Além disso, o estado anímico de João Ricardo prejudicou, diz Roberto: “Essa época era triste para o João, ele estava em um processo de separação”.”A verdade é que a gravadora não teve o retorno que ela queria”, conta Cesar.

Carlos Amantor se retirou. Hoje mora no Espírito Santo, onde é poeta e abraça o anonimato. A gravadora, focada nas bandas de rock, preferiu não manter os Lempé no elenco.

Ambos seguem músicos e parceiros, cantando Secos & Molhados e repertório próprio no Rio de Janeiro. Guardam memória afetuosa de João Ricardo. “Ele disse que queria ter nos conhecido antes, na época do Que fim levaram todas as flores?”, diz Roberto.

Cesar, João Ricardo e Roberto se reencontram no Rio de Janeiro, em 2016: relação amistosa Foto: Acervo de Cesar Lempé

A volta do gato preto (1988)

  • Integrantes: João Ricardo e Totô Braxil
  • Gravado nos estúdios Big Bang (São Paulo) no 1º semestre de 1988
  • Integrante ‘perdido’: Totô Braxil

O ano era 1987. Depois de uma temporada na Europa, após a rescisão do contrato com a PolyGram, João Ricardo estava de volta. Ensaiando no estúdio Matrix, conheceu um fã: Heitor, bailarino e cantor oriundo da banda de baile Saint Paul, ligada ao coral Baccarelli.

Heitor revelou que, quando morou na Europa, apresentou-se com músicas compostas por João. Veio, então, o convite para remontar o Secos & Molhados. Heitor escolhe seu próprio apelido: Totô Braxil. O “Totô” era uma redução do primeiro nome. Braxil é porque “o problema do Brasil seria o X da questão”.

No anúncio à imprensa, Totô foi falante. “João Ricardo era a alma autêntica do grupo, que desenhava aquela filosofia e aquele ritmo tão marcante”, opinou, na época, ao Estadão, sobre a primeira formação do Secos. O grupo apresentou o show Sem Rei, Nem Rock, no Palace, em São Paulo.

Boneco utilizado em 'Sem Rei, Nem Rock' Foto: Arquivo pessoal de Marco Lima

Eduardo Amos e Marco Lima, que faziam parte do grupo teatral Cidade Muda, foram convocados para fazer intervenções no espetáculo. Segundo Marco, a encomenda foi por algo “ousado, único”. Nas palavras dele, o espetáculo “misturava música (do novo repertório) e dança com uma estética distópica anos 1980″.

Depois, outros shows ocorreram, como no vão livre do Masp e no Rio de Janeiro. O guitarrista Edio França, que estava acompanhando João e Totô, reuniu um time de músicos para essas apresentações, Gilberto Favery (bateria) e José “Jeaf” Eduardo (baixo). Com o novo repertório, o Secos partiu para um novo álbum, produzido pela DiscoBan, antigo braço fonográfico do Grupo Bandeirantes.

O cenógrafo Marco Lima e João Ricardo, na preparação para Sem Rei, Nem Rock Foto: Arquivo pessoal de Marco Lima

A volta do gato preto é certamente o mais diferente dos álbuns aqui analisados. O pesquisador Vinícius Silva, autor do livro O doce e o amargo do Secos & Molhados (2015) avalia que o timbre grave de Totô, diferente de Lili e Cesar, colabora para isso.

Outro elemento é a sonoridade mais roqueira. Com músicas novas e uma Final Jam que unia clássicos antigos, havia ali dicotomia entre passado e presente, representada na capa, com João e Totô jantando sobre a mesma mesa que é capa do primeiro disco.

Eduardo, o baixista da banda de apoio, lamenta que o peso do disco não tenha acompanhado a atmosfera dos shows. A vocação para aquela formação parecia ser mesmo o espetáculo, encenado inclusive fora de São Paulo, já que o álbum não foi tão bem em vendas. “A mente por trás do Secos & Molhados é o João. Ele é f***. Eu não sei o que aconteceu.”, lamenta Favery.

João e Totô Braxil, na capa da revista Visão Foto: Reprodução antigo site oficial do Secos & Molhados

Assim como Lili, Totô Braxil era um grande mistério. Não se sabia nem mesmo seu nome verdadeiro. A reportagem confirmou o nome de Heitor ao encontrar antigos companheiros da Banda Saint Paul. Aparentemente, o próprio Totô desmanchou a formação, por não conseguir mais acompanhar os shows, em decorrência de ter contraído HIV.

A última aparição pública dele foi para o Estadão, em 1º de dezembro de 1993, Dia Mundial do Combate à Aids, em uma entrevista em que questionava a baixa visibilidade da luta dos portadores de HIV.

Ali, era creditado como um dos organizadores de um movimento chamado “Aids-Vida”. Segundo a produção de João Ricardo (ele mesmo não quis conceder entrevista), Totô faleceu em decorrência da de complicações causadas pela Aids, no ano de 1994.

Para onde foi o Secos & Molhados?

Após o fim da última formação, João Ricardo não publicou até 1999, quando lançou o álbum Teatro?, independente e solo apenas com voz e guitarra. O artista que assina o álbum é “Secos & Molhados”, endossando sua versão que o grupo é uma extensão de si. De lá para cá, João lançou mais álbuns do Secos, alguns sozinho, outros acompanhado pelo músico Daniel Iasbeck.

Para o pesquisador Vinícius Silva, os discos são marcados por serem projetos com a força autoral de João Ricardo, “com convicções muito próprias”. Silva relaciona as dificuldades dos álbuns com vendagem às expectativas das gravadoras, sem dar o suporte e a divulgação para tanto. As críticas sempre foram muito impiedosas com João Ricardo, pondera o pesquisador: “As composições de João Ricardo desse período são muito inspiradas, e mereciam um olhar mais piedoso”.

Nenhum dos álbuns de João Ricardo e do Secos com a Philips/PolyGram está em streaming. Segundo a produção de João Ricardo, o principal culpado disso é a Universal, hoje detentora do catálogo da Philips: “Ignoram totalmente os pedidos dos fãs.”

A assessoria da Universal Music Brasil confirmou à reportagem que os álbuns João Ricardo (1975), João Ricardo - Da Boca Pra Fora (1976), Secos & Molhados (1978), João Ricardo - Musicar (1979) e Secos & Molhados (1980) passarão a estar disponíveis até o final de 2023, sem indicar data exata. Será uma oportunidade de explorar o terreno da obra de João Ricardo e do Secos & Molhados, que segue acidentado e misterioso mesmo após 50 anos.

Onde foram parar os integrantes do Secos & Molhados de 1978, 1980 e 1988 (fora João Ricardo)

  • Lili Rodrigues: Depois do projeto Sobrinhos da Rainha, desiludiu-se da música. Faleceu em 2010.
  • Wander Taffo: Tocou com Rita Lee e fundou a banda Rádio Táxi. Faleceu em 2008.
  • Gel Fernandes: Tocou com Rita Lee e fundou a banda Rádio Táxi, onde segue até hoje.
  • João Ascensão: Durante o projeto Sobrinhos da Rainha, desiludiu-se da música. É engenheiro eletricista em São Paulo
  • Cesar Lempé e Roberto Lempé: Seguem músicos e se apresentam juntos no Rio de Janeiro.
  • Carlos Amantor: Mudou-se para o Espírito Santo e prefere o anonimato. Escreve poesias.
  • Totô Braxil: Fundou o projeto Aids-Vida. Faleceu, por complicações da Aids, em 1994.

O álbum de estreia do Secos & Molhados, com a icônica capa da mesa de jantar e a música Sangue Latino na faixa de abertura, completa 50 anos em agosto de 2023. Os rostos de Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias, servidos em bandejas, formam uma das principais imagens no imaginário do fã de rock brasileiro. Porém, neste banquete já foram servidas outras cabeças ao longo da história do grupo, em álbuns posteriores.

Claro que os integrantes de 1973, especialmente Ney Matogrosso e João Ricardo, sempre tiveram muito o que falar sobre a história de uma das bandas mais importantes do Brasil. Eles foram, sem dúvida, os ingredientes principais, bastante ouvidos e apreciados. Mas e os acompanhamentos, nas outras formações da mesa?

Capa do primeiro álbum dos Secos e Molhados Foto: Divulgação / Gravadora Continental / Warner Music

A discografia da banda seguiu por anos depois, sempre sob o comando de João Ricardo, e sem Ney Matogrosso, com integrantes menos conhecidos e que tiveram trajetórias distintas. Nesta reportagem, o Estadão mapeia o paradeiro de alguns músicos dos álbuns de 1978, 1980 e 1988, entre quem seguiu na música e quem ficou desconhecido. Duas mortes no anonimato, sobre as quais pouco se sabiam, estão nos relatos.

Secos & Molhados (1978)

  • Integrantes: João Ricardo, Lili Rodrigues, Wander Taffo, João Ascensão e Gel Fernandes
  • Gravado no 2º semestre de 1977, nos estúdios Reunidos (São Paulo)
  • Integrante ‘perdido’: Lili Rodrigues

Em 1977, na casa da irmã de João Ricardo, estava reunida o que seria a nova formação do Secos & Molhados, quatro anos após o primeiro álbum. O baixista João Ascensão e o guitarrista Wander Taffo haviam tocado com João no disco solo Da Boca Pra Fora (1976). Eles indicaram o baterista Gelson Fernandes, da banda Os Incríveis.

Já o vocalista Norival Rodrigues, alto e com vocal similar ao de Ney Matogrosso, tinha vindo de uma banda de Campinas, a Pedra de Sal. Marcos Maynard, na época produtor da Polygram, teve contato com a Pedra de Sal e achou interessante fazer a ponte entre a banda e João Ricardo, mirando a volta do Secos. Do conjunto, aproveitou-se somente Norival. Na conversa, entrosaram-se todos. Alguns ganharam apelidos, de autoria do próprio João Ricardo: Norival virou Lili; Gelson, Gel.

O álbum em nada lembrava a atmosfera soturna do Secos pregressos, acenando para a febre disco. O baterista faltou à sessão fotográfica, pois estava em turnê com Os Incríveis. A gravadora, preocupada com o fato de que o encarte teria a foto de um quarteto, enquanto a banda seria um quinteto, limou Gel dos créditos, o colocando como “músico convidado”.

Lili Rodrigues, João Ascensão, João Ricardo e Wander Taffo no encarte de Secos & Molhados (1978). A função das bexigas era fazer mistério da identidade de Lili Foto: Acervo de João Ascensão

Um clipe foi gravado para o que seria o hit do álbum, Que fim levaram todas as flores?. O vídeo, registrado em uma mercearia, foi exibido no Fantástico, da TV Globo, junto a uma reportagem que anunciava a volta do grupo.

João Ricardo chegou a dizer que agora era uma banda “muito mais consistente”. De mim para você seria outro sucesso do álbum, fazendo parte da trilha sonora da novela Te Contei?.

A projeção midiática não se traduziu em espetáculos. “Estourou a música, foi tudo legal, mas poderia ter tido mais se a gente tivesse shows”, conta Gel, sem entender. Segundo a versão de Ascensão, o fim começou com um plano de internacionalização do grupo, a partir de uma versão em espanhol de Que fim levaram todas as flores?.

Os integrantes da formação de 1978 com o figurino projetado por Naum Alves de Souza, na capa da revista Violão & Guitarra Foto: Acervo de João Ascensão

Lili, então, organizou com os demais integrantes a participação nos lucros da banda. Todos recebiam somente cachês. João Ricardo recusou a tentativa e a banda se desfez. Já Beto Rodrigues, amigo de Lili dos tempos de Pedra de Sal e que o acompanhou de perto durante a sua passagem pelo Secos, conta que a principal questão foi artística: o grupo queria participar mais nas composições.

O histórico de João Ricardo é coerente com o relato de Gel e Beto. Para João, o Secos & Molhados é um projeto pessoal, idealizado ainda antes da formação com Gerson e Ney. Todos os músicos, para ele, eram auxiliares à sua visão.

Gel Fernandes, João Ascensão, Lili Rodrigues e Wander Taffo montaram então um novo projeto, contando com o apoio do amigo de Lili, Beto Rodrigues, nas letras. A banda chamava-se Sobrinhos da Rainha. Uma brincadeira com a postura imperial de João Ricardo, conta Beto. O grupo gravou um fonograma de 11 faixas, mas não cativou interessados em transformar aquilo em álbum. Sem shows, frustrados e quebrados, a banda minguou, e o material foi perdido.

Mais tarde, João Ascensão desembarcou. Não queria mais saber de música e retomou a faculdade de Engenharia Elétrica, profissão que exerce hoje. Ele chegou a desmontar o baixo com o qual gravou o groove de De Mim Pra Você e o jogou fora. Wander Taffo e Gel Fernandes foram chamados para a banda de Rita Lee. Os dois fundaram, mais tarde, o Rádio Táxi. Wander faleceu em 2008, de mal súbito. Gel Fernandes está até hoje na banda.

O paradeiro de Lili Rodrigues era um grande mistério da música brasileira. O jornalista Alberto Villas tentou localizá-lo, sem sucesso, para o Fantástico, em 2003. A última aparição pública de Lili foi em uma nota do Estadão, em 1982, sobre uma apresentação do cantor na Praça da Sé. Beto, que nunca havia sido entrevistado sobre o assunto, era grande amigo de Lili.

Segundo ele, após o insucesso dos Sobrinhos, Lili desencantou. Depois, afundou-se em uma jornada autodestrutiva com drogas. Beto o acompanhou por um tempo, mas afastou-se. “Escapei desse turbilhão e segui minha vida”, lembra. Algum contato foi mantido, especialmente nas ligações de madrugada que Lili fazia, em meio a jornadas lisérgicas.

As ligações ficaram escassas, mas Beto acompanhava o amigo à distância. Lili ainda tentou montar alguns negócios, como uma loja de roupas, e trabalhou em bares de Campinas como cantor, diz João, sobrinho de Lili que esta reportagem conseguiu localizar. Em 2010, o músico faleceu de cirrose, em decorrência do uso intenso de álcool e drogas, quando João tinha 18 anos. “Eu quis me afastar tanto que acabei me afastando da minha própria memória. Eu não me conformo”, arrepende-se Beto.

Secos & Molhados (1980)

  • Integrantes: João Ricardo, Cesar Lempé, Roberto Lempé e Carlos Amantor
  • Gravado no 1º semestre de 1980, nos estúdios Polygram (Rio de Janeiro)
  • Integrante ‘perdido’: Carlos Amantor

O ano era 1979 e estavam reunidos em um bar na Lagoa da Tijuca os irmãos Cesar e Roberto Lempé e Carlos Amantor, todos do grupo vocal Visão. Já estavam por certo tempo tentando emplacar sua fita demo, sem muito sucesso, até que um empresário argentino os chamou para um encontro. Os novatos, ao verem que o hermano trazia consigo João Ricardo, ficaram em choque.

Cesar, Roberto e Carlos foram impactados pelo Secos & Molhados de 1973 em sua juventude, e conheciam todo o repertório. João fez o convite, prontamente aceito, para os três participarem da nova formação. Cesar Lempé pediu demissão do emprego pelo qual estava prestes a ser promovido e embarcou, junto dos amigos, em uma aventura.

O trio de novatos ocupou o papel de vocalistas. As maquiagens deram lugar a camisas sociais e gravatas, acenando à new wave. Em entrevista à Revista Contigo, João reforçava: “A fase das plumas e paetês acabou”.

Carlos, Roberto, João Ricardo e Cesar: as gravatas sinalizaram para a onda new wave Foto: Acervo de Cesar Lempé

A formação chegou a ter música em novela (Muitas Pessoas, para Cavalo Amarelo, da Bandeirantes). Mas vendeu pouco. Segundo os Lempé, existem duas justificativas: a má escolha de música de trabalho por parte da gravadora, que focou em Quantas Canções é Preciso Cantar?; e a aceleração que a gravadora fez no andamento, para deixar a voz de Cesar mais aguda, distorcendo a sonoridade.

Houve poucos shows. Um empresário que organizaria os eventos teria desviado recursos e não marcado datas, segundo Roberto Lempé. Além disso, o estado anímico de João Ricardo prejudicou, diz Roberto: “Essa época era triste para o João, ele estava em um processo de separação”.”A verdade é que a gravadora não teve o retorno que ela queria”, conta Cesar.

Carlos Amantor se retirou. Hoje mora no Espírito Santo, onde é poeta e abraça o anonimato. A gravadora, focada nas bandas de rock, preferiu não manter os Lempé no elenco.

Ambos seguem músicos e parceiros, cantando Secos & Molhados e repertório próprio no Rio de Janeiro. Guardam memória afetuosa de João Ricardo. “Ele disse que queria ter nos conhecido antes, na época do Que fim levaram todas as flores?”, diz Roberto.

Cesar, João Ricardo e Roberto se reencontram no Rio de Janeiro, em 2016: relação amistosa Foto: Acervo de Cesar Lempé

A volta do gato preto (1988)

  • Integrantes: João Ricardo e Totô Braxil
  • Gravado nos estúdios Big Bang (São Paulo) no 1º semestre de 1988
  • Integrante ‘perdido’: Totô Braxil

O ano era 1987. Depois de uma temporada na Europa, após a rescisão do contrato com a PolyGram, João Ricardo estava de volta. Ensaiando no estúdio Matrix, conheceu um fã: Heitor, bailarino e cantor oriundo da banda de baile Saint Paul, ligada ao coral Baccarelli.

Heitor revelou que, quando morou na Europa, apresentou-se com músicas compostas por João. Veio, então, o convite para remontar o Secos & Molhados. Heitor escolhe seu próprio apelido: Totô Braxil. O “Totô” era uma redução do primeiro nome. Braxil é porque “o problema do Brasil seria o X da questão”.

No anúncio à imprensa, Totô foi falante. “João Ricardo era a alma autêntica do grupo, que desenhava aquela filosofia e aquele ritmo tão marcante”, opinou, na época, ao Estadão, sobre a primeira formação do Secos. O grupo apresentou o show Sem Rei, Nem Rock, no Palace, em São Paulo.

Boneco utilizado em 'Sem Rei, Nem Rock' Foto: Arquivo pessoal de Marco Lima

Eduardo Amos e Marco Lima, que faziam parte do grupo teatral Cidade Muda, foram convocados para fazer intervenções no espetáculo. Segundo Marco, a encomenda foi por algo “ousado, único”. Nas palavras dele, o espetáculo “misturava música (do novo repertório) e dança com uma estética distópica anos 1980″.

Depois, outros shows ocorreram, como no vão livre do Masp e no Rio de Janeiro. O guitarrista Edio França, que estava acompanhando João e Totô, reuniu um time de músicos para essas apresentações, Gilberto Favery (bateria) e José “Jeaf” Eduardo (baixo). Com o novo repertório, o Secos partiu para um novo álbum, produzido pela DiscoBan, antigo braço fonográfico do Grupo Bandeirantes.

O cenógrafo Marco Lima e João Ricardo, na preparação para Sem Rei, Nem Rock Foto: Arquivo pessoal de Marco Lima

A volta do gato preto é certamente o mais diferente dos álbuns aqui analisados. O pesquisador Vinícius Silva, autor do livro O doce e o amargo do Secos & Molhados (2015) avalia que o timbre grave de Totô, diferente de Lili e Cesar, colabora para isso.

Outro elemento é a sonoridade mais roqueira. Com músicas novas e uma Final Jam que unia clássicos antigos, havia ali dicotomia entre passado e presente, representada na capa, com João e Totô jantando sobre a mesma mesa que é capa do primeiro disco.

Eduardo, o baixista da banda de apoio, lamenta que o peso do disco não tenha acompanhado a atmosfera dos shows. A vocação para aquela formação parecia ser mesmo o espetáculo, encenado inclusive fora de São Paulo, já que o álbum não foi tão bem em vendas. “A mente por trás do Secos & Molhados é o João. Ele é f***. Eu não sei o que aconteceu.”, lamenta Favery.

João e Totô Braxil, na capa da revista Visão Foto: Reprodução antigo site oficial do Secos & Molhados

Assim como Lili, Totô Braxil era um grande mistério. Não se sabia nem mesmo seu nome verdadeiro. A reportagem confirmou o nome de Heitor ao encontrar antigos companheiros da Banda Saint Paul. Aparentemente, o próprio Totô desmanchou a formação, por não conseguir mais acompanhar os shows, em decorrência de ter contraído HIV.

A última aparição pública dele foi para o Estadão, em 1º de dezembro de 1993, Dia Mundial do Combate à Aids, em uma entrevista em que questionava a baixa visibilidade da luta dos portadores de HIV.

Ali, era creditado como um dos organizadores de um movimento chamado “Aids-Vida”. Segundo a produção de João Ricardo (ele mesmo não quis conceder entrevista), Totô faleceu em decorrência da de complicações causadas pela Aids, no ano de 1994.

Para onde foi o Secos & Molhados?

Após o fim da última formação, João Ricardo não publicou até 1999, quando lançou o álbum Teatro?, independente e solo apenas com voz e guitarra. O artista que assina o álbum é “Secos & Molhados”, endossando sua versão que o grupo é uma extensão de si. De lá para cá, João lançou mais álbuns do Secos, alguns sozinho, outros acompanhado pelo músico Daniel Iasbeck.

Para o pesquisador Vinícius Silva, os discos são marcados por serem projetos com a força autoral de João Ricardo, “com convicções muito próprias”. Silva relaciona as dificuldades dos álbuns com vendagem às expectativas das gravadoras, sem dar o suporte e a divulgação para tanto. As críticas sempre foram muito impiedosas com João Ricardo, pondera o pesquisador: “As composições de João Ricardo desse período são muito inspiradas, e mereciam um olhar mais piedoso”.

Nenhum dos álbuns de João Ricardo e do Secos com a Philips/PolyGram está em streaming. Segundo a produção de João Ricardo, o principal culpado disso é a Universal, hoje detentora do catálogo da Philips: “Ignoram totalmente os pedidos dos fãs.”

A assessoria da Universal Music Brasil confirmou à reportagem que os álbuns João Ricardo (1975), João Ricardo - Da Boca Pra Fora (1976), Secos & Molhados (1978), João Ricardo - Musicar (1979) e Secos & Molhados (1980) passarão a estar disponíveis até o final de 2023, sem indicar data exata. Será uma oportunidade de explorar o terreno da obra de João Ricardo e do Secos & Molhados, que segue acidentado e misterioso mesmo após 50 anos.

Onde foram parar os integrantes do Secos & Molhados de 1978, 1980 e 1988 (fora João Ricardo)

  • Lili Rodrigues: Depois do projeto Sobrinhos da Rainha, desiludiu-se da música. Faleceu em 2010.
  • Wander Taffo: Tocou com Rita Lee e fundou a banda Rádio Táxi. Faleceu em 2008.
  • Gel Fernandes: Tocou com Rita Lee e fundou a banda Rádio Táxi, onde segue até hoje.
  • João Ascensão: Durante o projeto Sobrinhos da Rainha, desiludiu-se da música. É engenheiro eletricista em São Paulo
  • Cesar Lempé e Roberto Lempé: Seguem músicos e se apresentam juntos no Rio de Janeiro.
  • Carlos Amantor: Mudou-se para o Espírito Santo e prefere o anonimato. Escreve poesias.
  • Totô Braxil: Fundou o projeto Aids-Vida. Faleceu, por complicações da Aids, em 1994.

O álbum de estreia do Secos & Molhados, com a icônica capa da mesa de jantar e a música Sangue Latino na faixa de abertura, completa 50 anos em agosto de 2023. Os rostos de Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias, servidos em bandejas, formam uma das principais imagens no imaginário do fã de rock brasileiro. Porém, neste banquete já foram servidas outras cabeças ao longo da história do grupo, em álbuns posteriores.

Claro que os integrantes de 1973, especialmente Ney Matogrosso e João Ricardo, sempre tiveram muito o que falar sobre a história de uma das bandas mais importantes do Brasil. Eles foram, sem dúvida, os ingredientes principais, bastante ouvidos e apreciados. Mas e os acompanhamentos, nas outras formações da mesa?

Capa do primeiro álbum dos Secos e Molhados Foto: Divulgação / Gravadora Continental / Warner Music

A discografia da banda seguiu por anos depois, sempre sob o comando de João Ricardo, e sem Ney Matogrosso, com integrantes menos conhecidos e que tiveram trajetórias distintas. Nesta reportagem, o Estadão mapeia o paradeiro de alguns músicos dos álbuns de 1978, 1980 e 1988, entre quem seguiu na música e quem ficou desconhecido. Duas mortes no anonimato, sobre as quais pouco se sabiam, estão nos relatos.

Secos & Molhados (1978)

  • Integrantes: João Ricardo, Lili Rodrigues, Wander Taffo, João Ascensão e Gel Fernandes
  • Gravado no 2º semestre de 1977, nos estúdios Reunidos (São Paulo)
  • Integrante ‘perdido’: Lili Rodrigues

Em 1977, na casa da irmã de João Ricardo, estava reunida o que seria a nova formação do Secos & Molhados, quatro anos após o primeiro álbum. O baixista João Ascensão e o guitarrista Wander Taffo haviam tocado com João no disco solo Da Boca Pra Fora (1976). Eles indicaram o baterista Gelson Fernandes, da banda Os Incríveis.

Já o vocalista Norival Rodrigues, alto e com vocal similar ao de Ney Matogrosso, tinha vindo de uma banda de Campinas, a Pedra de Sal. Marcos Maynard, na época produtor da Polygram, teve contato com a Pedra de Sal e achou interessante fazer a ponte entre a banda e João Ricardo, mirando a volta do Secos. Do conjunto, aproveitou-se somente Norival. Na conversa, entrosaram-se todos. Alguns ganharam apelidos, de autoria do próprio João Ricardo: Norival virou Lili; Gelson, Gel.

O álbum em nada lembrava a atmosfera soturna do Secos pregressos, acenando para a febre disco. O baterista faltou à sessão fotográfica, pois estava em turnê com Os Incríveis. A gravadora, preocupada com o fato de que o encarte teria a foto de um quarteto, enquanto a banda seria um quinteto, limou Gel dos créditos, o colocando como “músico convidado”.

Lili Rodrigues, João Ascensão, João Ricardo e Wander Taffo no encarte de Secos & Molhados (1978). A função das bexigas era fazer mistério da identidade de Lili Foto: Acervo de João Ascensão

Um clipe foi gravado para o que seria o hit do álbum, Que fim levaram todas as flores?. O vídeo, registrado em uma mercearia, foi exibido no Fantástico, da TV Globo, junto a uma reportagem que anunciava a volta do grupo.

João Ricardo chegou a dizer que agora era uma banda “muito mais consistente”. De mim para você seria outro sucesso do álbum, fazendo parte da trilha sonora da novela Te Contei?.

A projeção midiática não se traduziu em espetáculos. “Estourou a música, foi tudo legal, mas poderia ter tido mais se a gente tivesse shows”, conta Gel, sem entender. Segundo a versão de Ascensão, o fim começou com um plano de internacionalização do grupo, a partir de uma versão em espanhol de Que fim levaram todas as flores?.

Os integrantes da formação de 1978 com o figurino projetado por Naum Alves de Souza, na capa da revista Violão & Guitarra Foto: Acervo de João Ascensão

Lili, então, organizou com os demais integrantes a participação nos lucros da banda. Todos recebiam somente cachês. João Ricardo recusou a tentativa e a banda se desfez. Já Beto Rodrigues, amigo de Lili dos tempos de Pedra de Sal e que o acompanhou de perto durante a sua passagem pelo Secos, conta que a principal questão foi artística: o grupo queria participar mais nas composições.

O histórico de João Ricardo é coerente com o relato de Gel e Beto. Para João, o Secos & Molhados é um projeto pessoal, idealizado ainda antes da formação com Gerson e Ney. Todos os músicos, para ele, eram auxiliares à sua visão.

Gel Fernandes, João Ascensão, Lili Rodrigues e Wander Taffo montaram então um novo projeto, contando com o apoio do amigo de Lili, Beto Rodrigues, nas letras. A banda chamava-se Sobrinhos da Rainha. Uma brincadeira com a postura imperial de João Ricardo, conta Beto. O grupo gravou um fonograma de 11 faixas, mas não cativou interessados em transformar aquilo em álbum. Sem shows, frustrados e quebrados, a banda minguou, e o material foi perdido.

Mais tarde, João Ascensão desembarcou. Não queria mais saber de música e retomou a faculdade de Engenharia Elétrica, profissão que exerce hoje. Ele chegou a desmontar o baixo com o qual gravou o groove de De Mim Pra Você e o jogou fora. Wander Taffo e Gel Fernandes foram chamados para a banda de Rita Lee. Os dois fundaram, mais tarde, o Rádio Táxi. Wander faleceu em 2008, de mal súbito. Gel Fernandes está até hoje na banda.

O paradeiro de Lili Rodrigues era um grande mistério da música brasileira. O jornalista Alberto Villas tentou localizá-lo, sem sucesso, para o Fantástico, em 2003. A última aparição pública de Lili foi em uma nota do Estadão, em 1982, sobre uma apresentação do cantor na Praça da Sé. Beto, que nunca havia sido entrevistado sobre o assunto, era grande amigo de Lili.

Segundo ele, após o insucesso dos Sobrinhos, Lili desencantou. Depois, afundou-se em uma jornada autodestrutiva com drogas. Beto o acompanhou por um tempo, mas afastou-se. “Escapei desse turbilhão e segui minha vida”, lembra. Algum contato foi mantido, especialmente nas ligações de madrugada que Lili fazia, em meio a jornadas lisérgicas.

As ligações ficaram escassas, mas Beto acompanhava o amigo à distância. Lili ainda tentou montar alguns negócios, como uma loja de roupas, e trabalhou em bares de Campinas como cantor, diz João, sobrinho de Lili que esta reportagem conseguiu localizar. Em 2010, o músico faleceu de cirrose, em decorrência do uso intenso de álcool e drogas, quando João tinha 18 anos. “Eu quis me afastar tanto que acabei me afastando da minha própria memória. Eu não me conformo”, arrepende-se Beto.

Secos & Molhados (1980)

  • Integrantes: João Ricardo, Cesar Lempé, Roberto Lempé e Carlos Amantor
  • Gravado no 1º semestre de 1980, nos estúdios Polygram (Rio de Janeiro)
  • Integrante ‘perdido’: Carlos Amantor

O ano era 1979 e estavam reunidos em um bar na Lagoa da Tijuca os irmãos Cesar e Roberto Lempé e Carlos Amantor, todos do grupo vocal Visão. Já estavam por certo tempo tentando emplacar sua fita demo, sem muito sucesso, até que um empresário argentino os chamou para um encontro. Os novatos, ao verem que o hermano trazia consigo João Ricardo, ficaram em choque.

Cesar, Roberto e Carlos foram impactados pelo Secos & Molhados de 1973 em sua juventude, e conheciam todo o repertório. João fez o convite, prontamente aceito, para os três participarem da nova formação. Cesar Lempé pediu demissão do emprego pelo qual estava prestes a ser promovido e embarcou, junto dos amigos, em uma aventura.

O trio de novatos ocupou o papel de vocalistas. As maquiagens deram lugar a camisas sociais e gravatas, acenando à new wave. Em entrevista à Revista Contigo, João reforçava: “A fase das plumas e paetês acabou”.

Carlos, Roberto, João Ricardo e Cesar: as gravatas sinalizaram para a onda new wave Foto: Acervo de Cesar Lempé

A formação chegou a ter música em novela (Muitas Pessoas, para Cavalo Amarelo, da Bandeirantes). Mas vendeu pouco. Segundo os Lempé, existem duas justificativas: a má escolha de música de trabalho por parte da gravadora, que focou em Quantas Canções é Preciso Cantar?; e a aceleração que a gravadora fez no andamento, para deixar a voz de Cesar mais aguda, distorcendo a sonoridade.

Houve poucos shows. Um empresário que organizaria os eventos teria desviado recursos e não marcado datas, segundo Roberto Lempé. Além disso, o estado anímico de João Ricardo prejudicou, diz Roberto: “Essa época era triste para o João, ele estava em um processo de separação”.”A verdade é que a gravadora não teve o retorno que ela queria”, conta Cesar.

Carlos Amantor se retirou. Hoje mora no Espírito Santo, onde é poeta e abraça o anonimato. A gravadora, focada nas bandas de rock, preferiu não manter os Lempé no elenco.

Ambos seguem músicos e parceiros, cantando Secos & Molhados e repertório próprio no Rio de Janeiro. Guardam memória afetuosa de João Ricardo. “Ele disse que queria ter nos conhecido antes, na época do Que fim levaram todas as flores?”, diz Roberto.

Cesar, João Ricardo e Roberto se reencontram no Rio de Janeiro, em 2016: relação amistosa Foto: Acervo de Cesar Lempé

A volta do gato preto (1988)

  • Integrantes: João Ricardo e Totô Braxil
  • Gravado nos estúdios Big Bang (São Paulo) no 1º semestre de 1988
  • Integrante ‘perdido’: Totô Braxil

O ano era 1987. Depois de uma temporada na Europa, após a rescisão do contrato com a PolyGram, João Ricardo estava de volta. Ensaiando no estúdio Matrix, conheceu um fã: Heitor, bailarino e cantor oriundo da banda de baile Saint Paul, ligada ao coral Baccarelli.

Heitor revelou que, quando morou na Europa, apresentou-se com músicas compostas por João. Veio, então, o convite para remontar o Secos & Molhados. Heitor escolhe seu próprio apelido: Totô Braxil. O “Totô” era uma redução do primeiro nome. Braxil é porque “o problema do Brasil seria o X da questão”.

No anúncio à imprensa, Totô foi falante. “João Ricardo era a alma autêntica do grupo, que desenhava aquela filosofia e aquele ritmo tão marcante”, opinou, na época, ao Estadão, sobre a primeira formação do Secos. O grupo apresentou o show Sem Rei, Nem Rock, no Palace, em São Paulo.

Boneco utilizado em 'Sem Rei, Nem Rock' Foto: Arquivo pessoal de Marco Lima

Eduardo Amos e Marco Lima, que faziam parte do grupo teatral Cidade Muda, foram convocados para fazer intervenções no espetáculo. Segundo Marco, a encomenda foi por algo “ousado, único”. Nas palavras dele, o espetáculo “misturava música (do novo repertório) e dança com uma estética distópica anos 1980″.

Depois, outros shows ocorreram, como no vão livre do Masp e no Rio de Janeiro. O guitarrista Edio França, que estava acompanhando João e Totô, reuniu um time de músicos para essas apresentações, Gilberto Favery (bateria) e José “Jeaf” Eduardo (baixo). Com o novo repertório, o Secos partiu para um novo álbum, produzido pela DiscoBan, antigo braço fonográfico do Grupo Bandeirantes.

O cenógrafo Marco Lima e João Ricardo, na preparação para Sem Rei, Nem Rock Foto: Arquivo pessoal de Marco Lima

A volta do gato preto é certamente o mais diferente dos álbuns aqui analisados. O pesquisador Vinícius Silva, autor do livro O doce e o amargo do Secos & Molhados (2015) avalia que o timbre grave de Totô, diferente de Lili e Cesar, colabora para isso.

Outro elemento é a sonoridade mais roqueira. Com músicas novas e uma Final Jam que unia clássicos antigos, havia ali dicotomia entre passado e presente, representada na capa, com João e Totô jantando sobre a mesma mesa que é capa do primeiro disco.

Eduardo, o baixista da banda de apoio, lamenta que o peso do disco não tenha acompanhado a atmosfera dos shows. A vocação para aquela formação parecia ser mesmo o espetáculo, encenado inclusive fora de São Paulo, já que o álbum não foi tão bem em vendas. “A mente por trás do Secos & Molhados é o João. Ele é f***. Eu não sei o que aconteceu.”, lamenta Favery.

João e Totô Braxil, na capa da revista Visão Foto: Reprodução antigo site oficial do Secos & Molhados

Assim como Lili, Totô Braxil era um grande mistério. Não se sabia nem mesmo seu nome verdadeiro. A reportagem confirmou o nome de Heitor ao encontrar antigos companheiros da Banda Saint Paul. Aparentemente, o próprio Totô desmanchou a formação, por não conseguir mais acompanhar os shows, em decorrência de ter contraído HIV.

A última aparição pública dele foi para o Estadão, em 1º de dezembro de 1993, Dia Mundial do Combate à Aids, em uma entrevista em que questionava a baixa visibilidade da luta dos portadores de HIV.

Ali, era creditado como um dos organizadores de um movimento chamado “Aids-Vida”. Segundo a produção de João Ricardo (ele mesmo não quis conceder entrevista), Totô faleceu em decorrência da de complicações causadas pela Aids, no ano de 1994.

Para onde foi o Secos & Molhados?

Após o fim da última formação, João Ricardo não publicou até 1999, quando lançou o álbum Teatro?, independente e solo apenas com voz e guitarra. O artista que assina o álbum é “Secos & Molhados”, endossando sua versão que o grupo é uma extensão de si. De lá para cá, João lançou mais álbuns do Secos, alguns sozinho, outros acompanhado pelo músico Daniel Iasbeck.

Para o pesquisador Vinícius Silva, os discos são marcados por serem projetos com a força autoral de João Ricardo, “com convicções muito próprias”. Silva relaciona as dificuldades dos álbuns com vendagem às expectativas das gravadoras, sem dar o suporte e a divulgação para tanto. As críticas sempre foram muito impiedosas com João Ricardo, pondera o pesquisador: “As composições de João Ricardo desse período são muito inspiradas, e mereciam um olhar mais piedoso”.

Nenhum dos álbuns de João Ricardo e do Secos com a Philips/PolyGram está em streaming. Segundo a produção de João Ricardo, o principal culpado disso é a Universal, hoje detentora do catálogo da Philips: “Ignoram totalmente os pedidos dos fãs.”

A assessoria da Universal Music Brasil confirmou à reportagem que os álbuns João Ricardo (1975), João Ricardo - Da Boca Pra Fora (1976), Secos & Molhados (1978), João Ricardo - Musicar (1979) e Secos & Molhados (1980) passarão a estar disponíveis até o final de 2023, sem indicar data exata. Será uma oportunidade de explorar o terreno da obra de João Ricardo e do Secos & Molhados, que segue acidentado e misterioso mesmo após 50 anos.

Onde foram parar os integrantes do Secos & Molhados de 1978, 1980 e 1988 (fora João Ricardo)

  • Lili Rodrigues: Depois do projeto Sobrinhos da Rainha, desiludiu-se da música. Faleceu em 2010.
  • Wander Taffo: Tocou com Rita Lee e fundou a banda Rádio Táxi. Faleceu em 2008.
  • Gel Fernandes: Tocou com Rita Lee e fundou a banda Rádio Táxi, onde segue até hoje.
  • João Ascensão: Durante o projeto Sobrinhos da Rainha, desiludiu-se da música. É engenheiro eletricista em São Paulo
  • Cesar Lempé e Roberto Lempé: Seguem músicos e se apresentam juntos no Rio de Janeiro.
  • Carlos Amantor: Mudou-se para o Espírito Santo e prefere o anonimato. Escreve poesias.
  • Totô Braxil: Fundou o projeto Aids-Vida. Faleceu, por complicações da Aids, em 1994.

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