Saiu quase tudo como ele queria. A angústia da solidão de menino virou solo de guitarra, a miséria dos campos de algodão do Mississippi se tornou discos de ouro e o blues que ele aprendeu com T-Bone Walker viajou por mais de 90 países. BB King fez 15 filhos, deixou o papa João Paulo II sorrindo no Vaticano e reservou à Dona Lucille, sua excelentíssima guitarra, um amor que não teve por muitas mulheres. Até que as coisas fugiram ao seu controle por algum tempo e a morte o pegou na calada de um quarto de hospital em Las Vegas.
Lucille ficou viúva na noite de 14 de maio de 2015, que os cartórios e tabeliães já registram como o dia em que a guitarra perdeu seu legítimo herói. O último bluesman do algodão. Um homem dos tempos em que se casava com um instrumento, se acariciava suas curvas e pelo qual arriscava-se a própria vida salvando-o de um incêndio. Uma era em que se contava uma bela história com três notas limpas e sinceras, fazendo a primeira soar delicada sob um indicador trêmulo, a segunda balbuciar um lamento com o anelar e a terceira, esticando-se a corda com o mesmo dedo, tornar este lamento um choro no limite do controlável. Mas então, como lhe ensinaram os dias que se seguiram à morte de um filho ou à partida de sua mãe, o mesmo dedo retorna e acalma Lucille com doçura. Só aí BB King abre os olhos para ver sua plateia de pé.
Seus planos incluíam a hipótese de morrer sobre o palco. A recente tentativa de se culpar seus empresários, acusando-os de submetê-lo à prática de trabalho escravo, não enganou a Justiça por um simples motivo. O escravo ali era o blues e BB, o senhor que se alimentava dele, já tinha uma turnê prevista para 2015 e, mesmo aos 89 anos, ficava contrariado com o tema aposentadoria. Quando chegava ao país de destino, deixava os aviões e fazia questão de se locomover de ônibus. Ia de São Paulo a Brasília sem pedir um gole de uísque importado. Nos bastidores, gostava de receber fãs antes e depois das apresentações, como se aquele abraço de cinco segundos e uma selfie alimentassem sua alma.
Sua simpatia nos palcos podia enganar. Mesmo depois de vencer os vacilos da gagueira de infância tocando guitarra, era um homem com pouca habilidade para usar palavras. “Jamais consegui expressar-me como gostaria. A cabeça briga com a boca, os pensamentos ficam presos na garganta. Se eu fosse injustamente acusado por um crime, teria dificuldades para provar minha inocência”, contou ele no primeiro parágrafo de sua biografia, Corpo e Alma do Blues, lançada no Brasil em 1996.
Se Keith Richards, Eric Clapton e Buddy Guy não são heróis a serem considerados? Claro que sim, mas todos eles foram feitos de uma costela de King. O primeiro começou sua vida com uma banda cover de blues inglesa chamada Rolling Stones. Injetava BB King três ou quatro vezes ao dia antes de empunhar uma guitarra. Se passou os últimos 50 anos sem dar a mínima para a velocidade e a precisão de fraseados longos, preferindo até mesmo errar a se tornar um “coxinha”, que BB King seja louvado.
O segundo começou em outra banda de blues inglesa chamada Yardbirds. Seus dedos, mais leves que os de Richards, eram tentados a voar até o momento em que se lembravam de BB King. Então, ele segurava os impulsos e a técnica que lhe sobrava e voltava seus pensamentos à cabana do Sul dos Estados Unidos, onde King ensinava que em música, como na vida, menos era sempre mais e melhor.
O terceiro, dez anos mais jovem, não tem os calos da colheita do algodão nas mãos. E por isso é menor? Não é, mas Buddy Guy, assim como Jimi Hendrix, Johnny Winter e Stevie Ray Vaughan, cultiva uma linguagem de mais tensão e menos doçura, mais estripulia e menos calmaria, mais sexo e menos amor.
Não se produzirá um novo BB King primeiro porque não se produz mais ícones da guitarra. Os próprios solos entraram em desuso nas bandas de rock, sobretudo surgidas depois de 1990. Guitarras são mais usadas para criar atmosferas, texturas e climas harmônicos. Jack White, uma das sensações da guitarra pós anos 2000, é um ótimo produtor de discos que passa longe de solos. Narrar uma história com uma simples sequência tirada de uma pequena escala de cinco notas ficou fora de moda. E quem o fizer que se prepare para sofrer bullying de acadêmicos que sempre viram o blues como uma música menor, repetitiva, pobre. Uma injustiça criada pela insistência de se colocar no mesmo barco o Delta blues, o Chicago blues, o Texas blues, o West Coast blues, o blues africano.
BB King dizia que sua luta não era para a supremacia dos negros, mas pelo respeito ao blues. Que conseguindo o segundo, o primeiro estaria resolvido. Sem panfletagens, chegou a tocar em clubes de blues do Sul dos Estados Unidos que aceitavam plateias mistas e guardou para sempre a imagem de mãos negras e brancas aplaudindo-o no mesmo volume. “É possível mudar o sentimento das pessoas?”, perguntou na última página de sua biografia. “É possível apagar séculos de ódio e ignorância?”
Às vésperas de seus 90 anos, que seriam festejados no próximo 16 de setembro, BB King voltava à sua infância a cada apresentação. Criança e gigante no palco, se divertia com as próprias notas e conversava com a plateia até que o baterista chamasse a próxima canção. Quando o tempo começou a dar sinais de que não iria ganhar alforria nem por seus serviços prestados à Humanidade, a brincadeira começou a perder a graça. Em uma de sua apresentações, em outubro do ano passado, falou por mais tempo do que deveria e irritou a plateia. Ouviu vaias e viu, pela primeira vez em sua história, pessoas insatisfeitas abandonando a casa. Em 2012 ele fez sua última apresentação no Brasil. Depois de seu grupo preparar a plateia com duas ou três músicas instrumentais, levando a expectativa ao limite do suportável, BB King surgiu em passos lentos, amparado por um dos integrantes, mas com um sorriso largo. Sentou-se, apanhou a guitarra e solou com os dedos lentos. A certa altura, mostrou-se confuso e tocou a mesma música por duas vezes. Ao vê-lo deixando o palco amparado e exausto, foi impossível não dizer, mesmo que bem baixinho, adeus.