A pandemia do coronavírus e a consequente paralisação das atividades artísticas foram, sem dúvida, cruéis para o setor cultural e de entretenimento. Entretanto, há um aspecto positivo que esse período difícil irá deixar: grandes projetos, que muito provavelmente não ocorreriam não fosse o afastamento compulsório de artistas e bandas dos palcos.
Um deles, que se junta a recentes lançamentos anteriormente não planejados, como Noturno, mais novo disco de Maria Bethânia, e Nu com a Minha Música, EP que Ney Matogrosso lançou há pouco e que se revelará por completo até o final deste ano, é o álbum SepulQuarta, que a banda de metal Sepultura lança nesta sexta, 13, em CD, vinil e nas plataformas digitais.
O álbum é derivado de uma série de eventos online e encontros à distância com músicos de diferentes partes do mundo, que a banda, uma das mais celebradas do gênero, formada por Derrick Green (vocalista), Andreas Kisser (guitarra), Eloy Casagrande (bateria) e Paulo Xisto (baixo), realizou durante o período de isolamento social.
Dessas jam sessions, em que cada uma gravava sua parte de casa – foram 28 no total –, eles selecionaram 15 para fazer parte deste SepulQuarta, o mesmo nome dos eventos realizados remotamente.
As canções escolhidas se dividem entre hits do grupo – são o caso de Ratamahatta, Sepulnation e Kaiowas – e outras que há tempos eles não tocavam para o público, entre elas, Apes of God e Slaves of Pain, além da faixa Fear, Pain, Chaos, Suffering do álbum Quadra, que a banda lançou em fevereiro de 2020, pouco antes de a pandemia se espalhar pelo mundo.
Nova maneira de ser Sepultura
“Inventamos o SepulQuarta para conversar com os fãs, para a banda continuar trabalhando com foco, cada um tocando de sua casa. Nunca imaginei o Sepultura sem palco. Somos uma banda de estrada. Porém, com a ajuda dos fãs e da tecnologia, enxergamos uma nova maneira de sermos Sepultura. A primeira ideia era fazer um evento interessante toda quarta-feira. E isso foi crescendo. Chamamos convidados para participar”, explica Andreas Kisser, em conversa por vídeo com a reportagem do Estadão.
Para além de um encontro virtual, no final de 2020, o grupo percebeu que tinha faixas de boa qualidade oriundas desses encontros com músicos e cantores. Foi daí que a ideia de lançar um novo disco ganhou forma – e muito também pelo pedido dos fãs. “Era um material fantástico, com convidados incríveis. Resolvemos mixar e masterizar. Nada foi planejado. O disco é muito espontâneo. Não é ao vivo nem de estúdio. Foi feito nesse novo método (gravado a distância) que ainda não tem um nome específico”, diz Kisser.
Esses encontros musicais eram, a princípio, mixados pelo próprio guitarrista, em um processo quase caseiro, que funcionava muito bem para a internet. Para esse lançamento, as músicas passaram por uma nova mixagem, realizada por Conrado Ruther. Nada foi refeito, segundo Kisser.
Uma das principais faixas de SepulQuarta é Slave New World, lançada originalmente no álbum Chaos A.D., de 1993, que agora conta com a participação do guitarrista Matt Heafy, da banda americana Trivium. Um vídeo do encontro virtual será disponibilizado ao público também nesta sexta-feira.
“A Trivium já havia feito uma versão para essa música (em 2011). Foi meio que óbvio chamar o Matt. Era como se a gente estivesse em uma turnê, ele chegasse lá para assistir ao show e a gente o convidasse para subir ao palco para fazer um som”, revela Kisser.
De Megadeth a João Barone e Charles Gavin
Esse processo natural aconteceu igualmente com outros nomes escolhidos pelo grupo. Casos do baixista David Ellefson, ex-Megadeth, que toca em Territory, faixa que abre o disco, e do guitarrista Scott Ian, em Cut-Throat. O encontro entre o Sepultura e Ian, ocorrido em junho do ano passado, já soma mais de 500 mil visualizações no canal oficial da banda no YouTube.
Entre os convidados brasileiros está Emmily Barreto, vocalista da banda potiguar de rock Far From Alaska, que divide os vocais com Green em Fear, Pain, Chaos, Suffering. Essa contribuição já havia sido registrada no álbum Quadra.
“Conheci a Emmily em um programa de televisão e a convidei para o disco. Foi a primeira vez que a banda trabalhou com um vocal feminino. Fazer essa Fear, Pain, Chaos, Suffering ao vivo, no palco, ia ser muito difícil. Sem ela, não faz muito sentido. A Emmily deu um direcionamento todo especial para a música. Ela entrou no SepulQuarta, nessa performance quarentena, por ser uma versão mais viva, comparada com a que foi gravada anteriormente”, conta Kisser.
Todo esse processo sem artificialismos pode ser exemplificado também pela faixa Ratamahatta, cuja primeira gravação está no álbum Roots, de 1996. Na nova versão, o baterista Eloy Casagrande, que sempre aparece – ou encabeça – nas listas de melhores do mundo, se junta a outros dois craques da bateria nacional: Charles Gavin, ex-Titãs, e João Barone, dos Paralamas do Sucesso.
“Tínhamos um curto tempo para organizar a gravação. O João tem um home estúdio na casa dele. Para ele, foi fácil gravar. O Charles estava com uma viagem marcada com a família para o interior do Rio de Janeiro. Ele foi escutando a música no carro, com as filhas, para aprender. Ele me mandou um áudio dizendo que elas não aguentam mais (risos)”, diz Casagrande.
Para registrar sua parte, Gavin colocou os tambores no carro, subiu em uma montanha perto de seu sítio, e gravou por lá, ao ar livre. “As filhas o ajudaram a carregar os instrumentos. Ele tocou e elas gravaram com dois ou três celulares. O áudio foi extraído do vídeo. Ficou uma versão única”, conta o baterista do Sepultura.
Aliás, essa naturalidade foi algo que a banda buscou nessa “nova maneira de ser Sepultura”. “Você não precisa ter o melhor microfone, por exemplo. É possível fazer sem muita paranoia. Quantas vezes fazemos uma demo e, quando vamos gravar no estúdio para valer, falamos ‘puxa, na demo estava melhor’. É preciso ter um equilíbrio e não ficar tão preso à perfeição, que é um conceito irreal. O real é a espontaneidade do momento”, diz Kisser.
Andreas Kisser
O projeto semanal SepulQuarta levou muito mais que músicas aos fãs e espectadores da banda nas redes sociais. Além de tocar, o grupo também comandou bate-papos e debates sobre temas como depressão e meio ambiente. Uma das conversas foi com o jornalista André Trigueiro, que abordou, por exemplo, as queimadas que atingiram áreas como o Pantanal em 2020 e o consumo de carne animal.
Um pouco dessa discussão aparece na capa do álbum, criada pelo artista plástico e ilustrador mineiro Eduardo Recife. Nela, há o desenho de um pássaro morto do qual brotam novas flores. A contracapa traz um sagui em meio a folhagens. A fauna e a flora são as principais inspirações do artista que já fez trabalho para os jornais The New York Times e The Guardian e empresas como Nike e Paramount Pictures.
BANDA QUER RETORNAR ÀS TURNÊS COM 'QUADRA'
Em fevereiro de 2020, as notícias sobre a covid já surgiam no noticiário, mas ninguém imaginava que o planeta passaria um período tão longo de restrições. Para o Sepultura o cenário era: havia acabado de colocar, depois de três anos, um novo disco na praça, Quadra, e começava a ensaiar para sair em turnê mundial. Agora, a ideia é retomá-lo.
“Eu queria estar no palco ontem. Estamos pronto”, diz Kisser. Se nada mudar até lá, a volta às turnês deve ocorrer no dia 4 de novembro, em Copenhague, na Dinamarca. Em 2022, o grupo desembarca na América do Norte. “Foi um álbum muito bem recebido pelo público e pela mídia. É um desafio executá-lo ao vivo”, conta Casagrande.
Quadra, o 15º álbum de estúdio na discografia da banda criada em 1984 pelos irmãos Igor e Max Cavalera (ambos já não fazem mais parte do Sepultura), foi gravado na Suécia com produção musical de Jens Bogren. O trabalho foi conceitualmente dividido em quatro partes, cada uma composta por três músicas. Na primeira delas, traz o metal característico da banda, o thrash. A segunda traz músicas com elementos tribais, algo sempre presente na trajetória do grupo. A divisão segue com a terceira parte valorizando as passagens instrumentais. E, por fim, Quadra apresenta faixas mais melódicas.