Morre hoje, ou melhor, começa a morrer hoje, à beira dos 40 anos, o Sepultura. É um fim ao estilo dos dinossauros, os do rock, sem meteoro ou catástrofes climáticas, mas com o anúncio estrondoso de uma última e grandiosa turnê — que, a história ensina, pode muito bem vir a ser a penúltima ou a antepenúltima.
Assim como Quincas Berro d’Água, o célebre personagem bebum de Jorge Amado, a banda mineira fundada em 1984 vai ficar na história por ter duas mortes. Duas ou três, considerando as saídas traumáticas do líder Max Cavalera, em 1996, e de seu irmão, o baterista Iggor Cavalera, em 2006. Nenhuma delas, porém, foi capaz de dar cabo do Sepultura.
Prevaleceu a viagem fantástica dos meninos que saíram de Minas para conquistar o mundo fazendo música extrema, sem concessões: black metal, death metal, depois thrash metal, groove metal e, na maior parte da trajetória, explorando um estilo próprio, com expansões, fusões e invenções, que fica melhor definido com o termo “Sepultura music”. Em vocais guturais, em inglês, entendidos ou não, fica o recado gritado pelos quatro cantos do mundo contra o autoritarismo de governos e religiões organizadas.
Nenhuma banda brasileira foi tão longe em popularidade, prestígio e capilaridade internacional, atingindo países e grotões globais onde nem mesmo a bossa nova e o samba haviam ecoado. Mesmo ligado a uma subcultura alternativa e nichado em um gênero pouco palatável para o grande público, o Sepultura ficou famoso internacionalmente entre as “coisas associadas ao Brasil”, virou top of mind junto com samba, futebol e caipirinha.
A história pode parecer um conto de fadas (com alguns acenos satanistas, é verdade): em apenas três anos, a banda formada por dois irmãos adolescentes, com letras em um inglês de Joel Santana “do mal”, conseguiu ter seu segundo álbum, Schizophrenia, lançado nos Estados Unidos. Mas o salto se deu sem milagres nem mágicas, veio a partir da articulação e da devoção da cultura underground pré-internet.
A tímida cena metal de Minas chegou até o selo independente Cogumelo, que lançou, no fim de 1985 (ano em que o heavy metal foi apresentado para a grande mídia do Brasil, a partir do Rock in Rio) o EP Bestial Devastation, dividido entre Sepultura (formado então pelos irmãos Cavalera, o baixista Paulo Jr. e o guitarrista Jairo Guedes) e Overdose. Max, na época conhecido como Max Possessed, trabalhava direto na divulgação, em correspondências com fanzines europeus, enviando fitas e cultivando amizades com selos, bandas, jornalistas e fãs.
O upgrade fundamental viria em 1987, com a banda já morando em São Paulo, a partir da entrada de Andreas Kisser, um guitarrista com formação musical mais sólida. Criando riffs poderosos e abrindo novas possibilidades de composição, ele forneceu espaço para o crescimento de Iggor e para o florescimento de Max como persona artística — já no segundo LP, Schizophrenia, mais próximo do universo do thrash metal.
Elogiadíssimo em fanzines e revistas especializadas, o disco saiu nos EUA pelo selo New Renaissance e causou sensação na Europa, onde chegava em prensagens piratas. Foi daí que veio o contrato para fazer sete álbuns com o selo Roadrunner, estendendo de vez um tapete mágico para a carreira internacional.
O terceiro álbum, Beneath the Remains, de 1989, foi gravado no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro (escolhido por ter sido o berço de Cabeça Dinossauro, dos Titãs), com o produtor americano Scott Burns, especialista em death metal. Até hoje é tido como um clássico do thrash. Na turnê europeia, abrindo para o Sodom, consolidou-se a reputação do Sepultura como experiência avassaladora ao vivo.
Em janeiro de 1991, eles estavam tocando no Maracanã, no Rock in Rio 2, depois de passar uma semana farreando com amigos como Mike Patton e Billy Gould, do Faith No More, a banda de rock mais cool daquele começo de década. Lançado pouco depois, Arise, o quarto álbum, é o marco inicial da trilogia clássica da banda, já abrindo para influências do som industrial e ritmos mais groovados. Depois da turnê desse disco, o mundo já era do Sepultura: foram 220 shows em 39 países, capas em semanários ingleses e espaço em revistas que raramente cobriam rock pesado.
Melhor promovido, Chaos A.D., de 1993, escancarou nas misturas com ritmos brasileiros, vendeu mais, transgrediu e impactou mais. Nos vídeos, as mensagens politizadas de Refuse/Resist e “Territory” ganhavam imagens fortes, trazendo mais prestígio para toda aquela porradaria sonora.
A obra-prima Roots, de 1996, coroou a fase inovadora, com tempos mais lentos, afinações abaixadas e influência explícita do Brasil (culminando na instrumental Kaiowas, fruto de uma visita aos xavantes, em Canarana, Mato Grosso). Parecia que, a cada ano morando longe do país, o Sepultura abraçava mais uma brasilidade que, mais que essência, era diferencial criativo.
Em dezembro de 1996, com a banda no auge, veio o racha, e a saída de Max. O Sepultura perdeu ao mesmo tempo o frontman, a empresária (Gloria, casada com Max) e boa parte dos investimentos da gravadora. Mas soube se reinventar com ousadia, chamando um preto americano, Derrick Green, para cantar, sem tocar instrumentos, com uma dinâmica de palco e influências totalmente diversas.
Após o pé na porta bem dado de Against (1999), a nova encarnação da banda nem sempre conseguiu se manter tão relevante. Ainda sofreu a deserção de Iggor em 2006, logo depois de lançar Dante-XXI (disco bem cotado entre os fãs estrangeiros, assim como Roorback, de 2003). Em meio a oscilações, porém, veio Quadra, em 2020, aclamado internacionalmente como retorno à melhor forma.
O Sepultura parte deixando “filhos musicais” em quase todos os continentes (talvez haja algum até na Antártida), bandas como a francesa Gojira, transformadas pela audição de discos como Chaos A.D.. Deixa tambem viúvas célebres, como Dave Grohl, grande fã. “Roubei todos os seus beats. Tenho que te dar uma grana”, disse ele, num encontro com Iggor Cavalera.