Sem pudor de misturar religiosidade e fé com um discurso social ao mesmo tempo contundente e amoroso, Caetano Veloso e Maria Bethânia deram início à maior turnê brasileira de 2024 (18 apresentações em dez cidades, quase todas em estádios, encerrando com três noites — 14, 15 e 18 de dezembro no Allianz Parque, em São Paulo) no sábado, 3, na Farmasi Arena, zona oeste do Rio de Janeiro.
A grande tacada do show business nacional, que chegou a ser apelidada CaeBet, aposta em um repertório de grandes sucessos, com concessões que podem ser vistas como populistas (ou não), e na raridade do encontro entre os dois irmãos nascidos em Santo Amaro da Purificação, na Bahia.
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Eles não faziam turnê juntos desde 1978 (registrada no LP Maria Bethânia e Caetano Veloso: Ao Vivo). Em 1999, excepcionalmente, realizaram um antológico show para 40 mil pessoas na Praça Castro Alves, em homenagem aos 450 anos de Salvador.
No novo espetáculo, temos duas entidades superpoderosas da cultura brasileira que explicam e conciliam brasis. Tem louvor evangélico, tem canção combativa feminista da negra periférica Iza, tem dor de cotovelo à moda antiga, muito sincretismo religioso e porções generosas da música baiana, em especial do Recôncavo, fonte e raiz dos filhos de Dona Canô. Caetano e Bethânia são dois gênios que entendem o Brasil e apostam em um País que ainda pode se entender.
Depois de um bom aquecimento com música mecânica, o espetáculo começou às 22h19, levantando a plateia com a marcação de agogô na introdução da esfuziante Alegria, Alegria, uma das pedras fundamentais do tropicalismo, enraizada há décadas como clássico popular. “Eu quero seguir vivendo, amor/ Eu vou/ Por que não? Por que não?”, propuseram, seguros e carismáticos como sempre, Caetano, que completa 82 anos na terça-feira, 7 de agosto, e Bethânia, 78 anos feitos em 18 de junho.
Devidamente contagiado, o público — cerca de 13 mil pessoas — cantou junto e bem alto, talvez mais alto do que o previsto pelos técnicos.
A escolha do repertório perdeu um pouco de surpresa porque um painel de teleprompter perto da mesa de som entregou spoilers do roteiro (que incluía frases das interações previstas). Mas o palco, simples, com rampas e estrutura pensada para arenas por Bia Lessa, causou impacto. Os sete painéis verticais ao fundo funcionam como telões e são complementados dois outros telões laterais: o da direita, focado em Caetano; o da esquerda, em Bethânia.
Problemas com o volume do som irritaram parte do público durante as primeiras músicas. Uma pena, porque, no esquema “pouco papo e muito som”, os manos mandaram em sequência Os Mais Doces Bárbaros e uma linda versão de Gente antes de uma Oração ao Tempo abençoada por imagens de Dona Canô nos telões.
A canção lançada em 1979 gerou a maior das catarses coletivas da noite; nem o mar de celulares em riste estragou a transcendência de versos como “peço-te o prazer legítimo/ e o movimento preciso/ tempo, tempo, tempo/ quando o tempo for propício (...) de modo que o meu espírito/ ganhe um brilho definido/ tempo, tempo, tempo, tempo/ e eu espalhe benefícios”.
Caetano pouco tocou o violão, mas manteve se dinâmico nas dancinhas e no gestual — o bracinho de toureiro sublinhando expressões vocais. Bethânia, mais dependente do teleprompter para lembrar algumas letras, cometeu alguns errinhos, contornados com fair play em Um Índio e na entrada de Negue, que pediu para repetir. Vocalmente, no entanto, ambos seguem como duas dádivas.
Surpresas, houve poucas e bastante ricas em significado. Em sua parte solo, Caetano encaixou o hino gospel Deus Cuida de Mim (que havia gravado em 2022) em um repertório de grandes hits e clássicos, depois de justificar: “O fato de vir crescendo o número de evangélicos no Brasil é uma coisa que tem imensa importância para mim. Por isso vou cantar o amado louvor do pastor Kléber Lucas”.
A inclusão travou um pouco a fluência do espetáculo, mas dialogou com o momento menos previsível do show: Fé, sucesso da cantora carioca Iza. Juntos, Caetano e Bethânia cantaram com ferocidade o refrão abrasivo: “Fé pra quem é forte/ Fé pra quem não foge à luta/ Fé pra quem não perde o foco/ Fé pra enfrentar esses filhadap***”.
Para além do impacto da mensagem sobre a trajetória da cantora negra que saiu de Olaria para o alto das paradas pop, os fãs de Maria Bethânia observaram outra ousadia: sua diva cantando letra com palavrão, para espanto de uns e deleite de outros.
Três blocos e sem bis
A direção musical, a quatro mãos, dos braços direitos de Bethânia (o baixista Jorge Helder) e Caetano (o guitarrista Lucas Nunes, que também integra o grupo Bala Desejo), conduziu a banda com um espírito conciliador e inclusivo de estilos. Generosa nas puxadas de afoxé e ijexá, mas sem perder o ouvido no impacto de arena, abriu espaços para um naipe de sopros quase sempre protagonista (Joana Queiroz, Diogo Gomes e Marlon Sette).
A primeira parte vale por um show dentro do show. A partir de A Tua Presença Morena, a baianidade se acentua. Caetano puxou palmas do público e incluiu pérolas como Samba de Dois-Dois (Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro) e Filhos de Gandhi (“isso é gilberto gil”, vibrou Caetano, ao anunciar) numa sequência que tem Milagres do Povo, Dedicatória (que exalta a Mãe Menininha do Gantois), Eu e Água, e desemboca em Tropicália, Marginália II, Um índio e Cajuína.
O bloco de Caetano sozinho jogou para a galera em excesso, começando com... Sozinho (seu megahit, composição de Peninha) e avançando por O Leãzinho, Você Não Me Ensinou a te Esquecer (de Fernando Mendes) e Você é Linda.
Bethânia solo pareceu mais equilibrada em suas escolhas: a radiofônica Brincar de Viver, Explode Coração, As Canções que Você Fez pra Mim, Negue e uma emocionante Vida (de Chico Buarque), infelizmente pouco apreciada por uma plateia deveras tagarela.
No quarto bloco, com os dois no palco, Pretinho da Serrinha comandou o pot-pourri de sambas de temática mangueirense, começando pela pulada de cerca do portelense Paulinho da Viola (Sei Lá, Mangueira, parceria com Hermínio Bello de Carvalho) e emendando com A Menina dos Olhos de Oyá (samba-enredo em homenagem à Bethânia que levou a escola ao título em 2016), Exaltação à Mangueira (de 1956, de Aloísio da Costa e Enéas Brittes, imortalizada e sempre associada a seu intérprete Jamelão), e Onde o Rio é Mais Baiano.
Daí em diante, tudo foi ou beirou o apoteótico. Teve Vaca Profana, um momento “toca Raul” em Gita (de apelo popular, mas dispensável), O Quereres, a já citada Fé, e a comovente homenagem a Gal em Baby, que vale em dobro, pois faz um acerto histórico com Bethânia (que merecia coautoria da música por ter “briefado” a letra em detalhes ao irmão). Em Reconvexo, Caê e Betha se soltaram e dançaram bonito, quem sabe levando os requebros suaves da chula de Santo Amaro para o repertório de dancinhas da geração TikTok.
Os dois irmãos não voltaram para o suposto bis, com a dançante Odara, momento em que as cantoras de apoio atacaram como soul sisters e o arranjo reverenciou o histórico Bicho Baile Show, que Caetano fez em 1978, com a banda Black Rio. Os metais brilharam mais uma vez, e Jorge Helder não poupou slaps de disco music. A canção, criticada por muito tempo como símbolo do escapismo de uma geração de “alienados” despolitizados, deixa tudo “joia rara”, com gosto de festa conciliadora. Parte do público retoma o hábito quase perdido de pedir “mais um”, sem sucesso. A sensação geral é de que a maior parte dos 13 mil presentes saiu mais leve, feliz por testemunhar uma noite histórica. Para muitos, por duas horas, o mundo ficou odara. Por que não?