Thierry Fischer faz sua estreia como novo maestro da Osesp


Em três concertos, a orquestra interpreta a ‘Missa Solene’ de Beethoven

Por João Luiz Sampaio
Atualização:

No começo, o vazio, o silêncio. Então, é como se fôssemos colocados em um estado de suspensão. E logo em seguida, a guerra. “Não dura mais do que dois segundos”, diz o maestro Thierry Fischer. Canta o começo da peça, uma, duas, três vezes. Olha para o alto. “Toda ideia de eternidade e transcendência”, ele começa, mas faz uma pausa. “Viemos do pó, voltamos ao pó. Aquele primeiro silêncio, isso me pega todas as vezes.”

Ensaio. Fischer com músicos e coral na Sala São Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

No final da tarde de terça, em sua nova sala no 2.º andar da Estação Júlio Prestes, Fischer está falando da Missa solene de Beethoven - obra com que faz nesta quinta, 5, sexta e sábado sua estreia como regente titular e diretor musical da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, substituindo a maestrina Marin Alsop.

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“Beethoven cria algo tão complexo, mas uma complexidade que fala diretamente conosco. A Missa é visionária como só uma obra de arte pode ser, como uma pintura de Picasso, um Giacometti, que revelam a nós milagres possíveis.” Outra pausa, o olhar para o alto. “Poderia sentar aqui e falar de cada pedaço da Missa, mas não vou fazer isso.”

Ele está mentindo. “Pensa no Gloria, nessa alegria inocente. Então, o Sanctus” - ele canta um pedaço da música, bate as mãos na mesa. “E o Credo, no qual na verdade ele nos coloca uma dúvida: será que devemos crer?” - Fischer abre os braços, grita, como se repetindo as palavras do coro. “É complexo, mas o lado obscuro da complexidade. É perturbador.” Outra pausa. “É um privilégio ser perturbado por uma obra de arte.”

Os concertos desta semana na Sala São Paulo abrem a temporada da Osesp, que este ano homenageia Beethoven por seus 250 anos. E o compositor será um dos focos de Fischer em suas oito semanas à frente da orquestra em 2020 (“Haverá mais nos próximos anos”, ele faz questão de ressaltar). O principal destaque é a interpretação das oito primeiras sinfonias do compositor - a Nona sinfonia foi interpretada por Alsop na sua despedida do grupo, em dezembro, e Fischer imagina regê-la talvez em 2021.

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“Falei muito com a orquestra hoje sobre o que entendo como disciplina coletiva, como articulação coletiva. Não me entenda errado, é uma orquestra fantástica. Mas nesse primeiro ano precisaremos encontrar a personalidade em nosso relacionamento. E ela tem a ver com isso. O som de uma orquestra vem dessa capacidade de articulação, do desenvolvimento de uma coesão coletiva. Do prazer de fazer as coisas juntos. Projeção, precisão, balanço, equilíbrio, é nisso que vamos trabalhar. E é isso que Beethoven exige. É perfeito que comecemos essa parceria artística justamente com as oito sinfonias. Com elas, o objetivo é quebrar para construir. E, com elas, desenvolvemos um desejo coletivo de excelência.”

O nome de Fischer foi anunciado como regente principal e diretor musical em junho, favorito entre candidatos como Alexandre Liebreich e Alexander Shelley. Ele nasceu no Zâmbia, mas cresceu na Suíça. Começou na música como flautista e atualmente é diretor da Sinfônica de Utah e principal regente convidado da Filarmônica de Seul.

O primeiro posto ele deixa no fim de 2022; o segundo, em dezembro deste ano, abrindo mais tempo para sua permanência em São Paulo. A expectativa é de que ele esteja no Brasil com mais frequência do que Alsop. E, quando seu nome foi anunciado, a direção da Osesp foi clara em afirmar que espera, com ele, aumentar a conexão da orquestra com a cidade e o País. Não é uma fórmula fácil. Mas Fischer se diz pronto.

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“Conectar-se com a cidade é o ponto de partida”, diz. “Já temos planos de turnês internacionais. Mas só faz sentido para a Osesp viajar pela América do Sul, por exemplo, se o seu público em São Paulo se orgulhar desse plano e apoiá-lo.” O maestro diz também querer estabelecer contato com outras instituições culturais. “É meu papel conhecer museus, teatro de ópera, companhias de balé. No fim de semana fui conhecer o Masp, percorri o museu e depois conheci o projeto, bastidores. Entrar em contato com projetos ambiciosos e ousados me fará ser mais ousado com a Osesp. A arte, afinal, nos ajuda a sermos melhores, sempre.”

Já na porta do escritório, ele se despede. “Não, uma última coisa, me desculpe, que esqueci de falar sobre a Missa, e é muito importante: no final, a missa nos fala de uma visão da eternidade, de uma paz individual e coletiva. Mas a peça acaba de repente. Depois de uma hora e 20 de música, nada. Eu acho fascinante, porque...” Uma outra pausa. “Beethoven queria terminar com uma pergunta. Pense nisso.”

Maestro suíço é o sexto titular da história da orquestra

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Thierry Fischer é o sexto maestro a ocupar o posto de regente titular da Osesp, em uma história que já se convencionou separar em dois momentos distintos. A orquestra foi criada em 1954, quando foi dirigida por Souza Lima e Bruno Roccella. No início dos anos 1970, começou a até hoje mais longa parceria artística do grupo com um maestro, Eleazar de Carvalho, que ficou no posto até sua morte, em 1996.

O maestro Thierry Fischer Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Foi então que a Osesp passou pelo processo de reestruturação. E, com John Neschling como diretor artístico, viu episódios como o nascimento da Sala São Paulo, em 1999, e a transformação da orquestra em uma fundação, o que aconteceu em 2005.

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Neschling deixou o posto em 2009. Decidiu-se, então, fragmentar o poder artístico no grupo, com a nomeação de um diretor artístico (Arthur Nestrovski, que segue no cargo) e de um regente titular, Yan Pascal Tortelier, que trabalhou em 2010 e 2011.

Marin Alsop chegou em 2012 e esteve à frente da orquestra, primeiro como regente titular e em seguida como diretora musical, durante oito temporadas. Abrindo espaço, então, para Fischer, cujo contrato inicial é de quatro anos (como também havia sido o de Alsop).

Com exceção do vácuo artístico do período Tortelier, que nunca mais voltou a reger a orquestra, cada maestro do período pós-reestruturação ofereceu ao grupo um caminho.

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John Neschling fez do repertório da passagem do século 19 para o século 20, em especial as sinfonias de Mahler e mais tarde peças de Strauss, o ponto de partida para a construção do que defendia como identidade sonora da Osesp.

Alsop, dentro da proposta artística mais ampla de Arthur Nestrovski, também fez sua integral de Mahler com a orquestra, mas suas escolhas mais pessoais recaíram sobre a música americana do século 20 e a música russa do mesmo período – com a integral das sinfonias de Prokofiev, por exemplo, gravadas para o selo Naxos.

O primeiro ano de Fischer já dá algumas pistas do que ele pretende trabalhar com a orquestra. Além das sinfonias de Beethoven, obrigatórias por conta dos 250 anos do compositor, ele vai reger Berg, Schoenberg e Webern, autores da chamada segunda escola de Viena, símbolos da vanguarda do começo do século 20.

De certa forma, é a sequência do repertório que marcou a identidade da orquestra nos anos Neschling. “Ouvindo você colocar esse percurso de repertório dos últimos 20 anos, acho que faz todo sentido”, ele diz. “Mas o critério não foi esse. A segunda escola de Viena exige algo que Beethoven também exige: a precisão é importante para dar sentido a essas obras, assim como a capacidade dos músicos de ouvir uns aos outros. Quando você trabalha isso, se dá uma reação em cadeia que vai perpassando todo o repertório.” 

A OSESP E BEETHOVEN

Sinfonias A Osesp vai interpretar as oito primeiras sinfonias do compositor sob regência de Thierry Fischer, que também rege o oratório Cristo no Monte das Oliveiras - e a Missa solene, que ele considera uma das mais importantes peças do compositor

Concertos para piano Os cinco concertos para piano serão interpretados na temporada. O primeiro deles será o Concerto imperador, já na próxima semana, com o pianista britânico Paul Lewis e o maestro suíço Stefan Blunier como regente. Os demais concertos serão apresentados por artistas como o francês Jean-Eflam Bavouzet, que vai atuar como solista e maestro

Obras para piano Lewis também fará três recitais no fim de março, dando início ao projeto de interpretação das 32 sonatas para piano solo do compositor, que vai ter diferentes pianistas ao longo do ano

SERVIÇO OSESP Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes, 16 Concertos: 5ª (5) e 6ª, às 20h30, e sáb., às 16h30.  Ingressos: R$ 50 a R$ 190.  Telefone da bilheteria: 3777-9721.

No começo, o vazio, o silêncio. Então, é como se fôssemos colocados em um estado de suspensão. E logo em seguida, a guerra. “Não dura mais do que dois segundos”, diz o maestro Thierry Fischer. Canta o começo da peça, uma, duas, três vezes. Olha para o alto. “Toda ideia de eternidade e transcendência”, ele começa, mas faz uma pausa. “Viemos do pó, voltamos ao pó. Aquele primeiro silêncio, isso me pega todas as vezes.”

Ensaio. Fischer com músicos e coral na Sala São Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

No final da tarde de terça, em sua nova sala no 2.º andar da Estação Júlio Prestes, Fischer está falando da Missa solene de Beethoven - obra com que faz nesta quinta, 5, sexta e sábado sua estreia como regente titular e diretor musical da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, substituindo a maestrina Marin Alsop.

“Beethoven cria algo tão complexo, mas uma complexidade que fala diretamente conosco. A Missa é visionária como só uma obra de arte pode ser, como uma pintura de Picasso, um Giacometti, que revelam a nós milagres possíveis.” Outra pausa, o olhar para o alto. “Poderia sentar aqui e falar de cada pedaço da Missa, mas não vou fazer isso.”

Ele está mentindo. “Pensa no Gloria, nessa alegria inocente. Então, o Sanctus” - ele canta um pedaço da música, bate as mãos na mesa. “E o Credo, no qual na verdade ele nos coloca uma dúvida: será que devemos crer?” - Fischer abre os braços, grita, como se repetindo as palavras do coro. “É complexo, mas o lado obscuro da complexidade. É perturbador.” Outra pausa. “É um privilégio ser perturbado por uma obra de arte.”

Os concertos desta semana na Sala São Paulo abrem a temporada da Osesp, que este ano homenageia Beethoven por seus 250 anos. E o compositor será um dos focos de Fischer em suas oito semanas à frente da orquestra em 2020 (“Haverá mais nos próximos anos”, ele faz questão de ressaltar). O principal destaque é a interpretação das oito primeiras sinfonias do compositor - a Nona sinfonia foi interpretada por Alsop na sua despedida do grupo, em dezembro, e Fischer imagina regê-la talvez em 2021.

“Falei muito com a orquestra hoje sobre o que entendo como disciplina coletiva, como articulação coletiva. Não me entenda errado, é uma orquestra fantástica. Mas nesse primeiro ano precisaremos encontrar a personalidade em nosso relacionamento. E ela tem a ver com isso. O som de uma orquestra vem dessa capacidade de articulação, do desenvolvimento de uma coesão coletiva. Do prazer de fazer as coisas juntos. Projeção, precisão, balanço, equilíbrio, é nisso que vamos trabalhar. E é isso que Beethoven exige. É perfeito que comecemos essa parceria artística justamente com as oito sinfonias. Com elas, o objetivo é quebrar para construir. E, com elas, desenvolvemos um desejo coletivo de excelência.”

O nome de Fischer foi anunciado como regente principal e diretor musical em junho, favorito entre candidatos como Alexandre Liebreich e Alexander Shelley. Ele nasceu no Zâmbia, mas cresceu na Suíça. Começou na música como flautista e atualmente é diretor da Sinfônica de Utah e principal regente convidado da Filarmônica de Seul.

O primeiro posto ele deixa no fim de 2022; o segundo, em dezembro deste ano, abrindo mais tempo para sua permanência em São Paulo. A expectativa é de que ele esteja no Brasil com mais frequência do que Alsop. E, quando seu nome foi anunciado, a direção da Osesp foi clara em afirmar que espera, com ele, aumentar a conexão da orquestra com a cidade e o País. Não é uma fórmula fácil. Mas Fischer se diz pronto.

“Conectar-se com a cidade é o ponto de partida”, diz. “Já temos planos de turnês internacionais. Mas só faz sentido para a Osesp viajar pela América do Sul, por exemplo, se o seu público em São Paulo se orgulhar desse plano e apoiá-lo.” O maestro diz também querer estabelecer contato com outras instituições culturais. “É meu papel conhecer museus, teatro de ópera, companhias de balé. No fim de semana fui conhecer o Masp, percorri o museu e depois conheci o projeto, bastidores. Entrar em contato com projetos ambiciosos e ousados me fará ser mais ousado com a Osesp. A arte, afinal, nos ajuda a sermos melhores, sempre.”

Já na porta do escritório, ele se despede. “Não, uma última coisa, me desculpe, que esqueci de falar sobre a Missa, e é muito importante: no final, a missa nos fala de uma visão da eternidade, de uma paz individual e coletiva. Mas a peça acaba de repente. Depois de uma hora e 20 de música, nada. Eu acho fascinante, porque...” Uma outra pausa. “Beethoven queria terminar com uma pergunta. Pense nisso.”

Maestro suíço é o sexto titular da história da orquestra

Thierry Fischer é o sexto maestro a ocupar o posto de regente titular da Osesp, em uma história que já se convencionou separar em dois momentos distintos. A orquestra foi criada em 1954, quando foi dirigida por Souza Lima e Bruno Roccella. No início dos anos 1970, começou a até hoje mais longa parceria artística do grupo com um maestro, Eleazar de Carvalho, que ficou no posto até sua morte, em 1996.

O maestro Thierry Fischer Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Foi então que a Osesp passou pelo processo de reestruturação. E, com John Neschling como diretor artístico, viu episódios como o nascimento da Sala São Paulo, em 1999, e a transformação da orquestra em uma fundação, o que aconteceu em 2005.

Neschling deixou o posto em 2009. Decidiu-se, então, fragmentar o poder artístico no grupo, com a nomeação de um diretor artístico (Arthur Nestrovski, que segue no cargo) e de um regente titular, Yan Pascal Tortelier, que trabalhou em 2010 e 2011.

Marin Alsop chegou em 2012 e esteve à frente da orquestra, primeiro como regente titular e em seguida como diretora musical, durante oito temporadas. Abrindo espaço, então, para Fischer, cujo contrato inicial é de quatro anos (como também havia sido o de Alsop).

Com exceção do vácuo artístico do período Tortelier, que nunca mais voltou a reger a orquestra, cada maestro do período pós-reestruturação ofereceu ao grupo um caminho.

John Neschling fez do repertório da passagem do século 19 para o século 20, em especial as sinfonias de Mahler e mais tarde peças de Strauss, o ponto de partida para a construção do que defendia como identidade sonora da Osesp.

Alsop, dentro da proposta artística mais ampla de Arthur Nestrovski, também fez sua integral de Mahler com a orquestra, mas suas escolhas mais pessoais recaíram sobre a música americana do século 20 e a música russa do mesmo período – com a integral das sinfonias de Prokofiev, por exemplo, gravadas para o selo Naxos.

O primeiro ano de Fischer já dá algumas pistas do que ele pretende trabalhar com a orquestra. Além das sinfonias de Beethoven, obrigatórias por conta dos 250 anos do compositor, ele vai reger Berg, Schoenberg e Webern, autores da chamada segunda escola de Viena, símbolos da vanguarda do começo do século 20.

De certa forma, é a sequência do repertório que marcou a identidade da orquestra nos anos Neschling. “Ouvindo você colocar esse percurso de repertório dos últimos 20 anos, acho que faz todo sentido”, ele diz. “Mas o critério não foi esse. A segunda escola de Viena exige algo que Beethoven também exige: a precisão é importante para dar sentido a essas obras, assim como a capacidade dos músicos de ouvir uns aos outros. Quando você trabalha isso, se dá uma reação em cadeia que vai perpassando todo o repertório.” 

A OSESP E BEETHOVEN

Sinfonias A Osesp vai interpretar as oito primeiras sinfonias do compositor sob regência de Thierry Fischer, que também rege o oratório Cristo no Monte das Oliveiras - e a Missa solene, que ele considera uma das mais importantes peças do compositor

Concertos para piano Os cinco concertos para piano serão interpretados na temporada. O primeiro deles será o Concerto imperador, já na próxima semana, com o pianista britânico Paul Lewis e o maestro suíço Stefan Blunier como regente. Os demais concertos serão apresentados por artistas como o francês Jean-Eflam Bavouzet, que vai atuar como solista e maestro

Obras para piano Lewis também fará três recitais no fim de março, dando início ao projeto de interpretação das 32 sonatas para piano solo do compositor, que vai ter diferentes pianistas ao longo do ano

SERVIÇO OSESP Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes, 16 Concertos: 5ª (5) e 6ª, às 20h30, e sáb., às 16h30.  Ingressos: R$ 50 a R$ 190.  Telefone da bilheteria: 3777-9721.

No começo, o vazio, o silêncio. Então, é como se fôssemos colocados em um estado de suspensão. E logo em seguida, a guerra. “Não dura mais do que dois segundos”, diz o maestro Thierry Fischer. Canta o começo da peça, uma, duas, três vezes. Olha para o alto. “Toda ideia de eternidade e transcendência”, ele começa, mas faz uma pausa. “Viemos do pó, voltamos ao pó. Aquele primeiro silêncio, isso me pega todas as vezes.”

Ensaio. Fischer com músicos e coral na Sala São Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

No final da tarde de terça, em sua nova sala no 2.º andar da Estação Júlio Prestes, Fischer está falando da Missa solene de Beethoven - obra com que faz nesta quinta, 5, sexta e sábado sua estreia como regente titular e diretor musical da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, substituindo a maestrina Marin Alsop.

“Beethoven cria algo tão complexo, mas uma complexidade que fala diretamente conosco. A Missa é visionária como só uma obra de arte pode ser, como uma pintura de Picasso, um Giacometti, que revelam a nós milagres possíveis.” Outra pausa, o olhar para o alto. “Poderia sentar aqui e falar de cada pedaço da Missa, mas não vou fazer isso.”

Ele está mentindo. “Pensa no Gloria, nessa alegria inocente. Então, o Sanctus” - ele canta um pedaço da música, bate as mãos na mesa. “E o Credo, no qual na verdade ele nos coloca uma dúvida: será que devemos crer?” - Fischer abre os braços, grita, como se repetindo as palavras do coro. “É complexo, mas o lado obscuro da complexidade. É perturbador.” Outra pausa. “É um privilégio ser perturbado por uma obra de arte.”

Os concertos desta semana na Sala São Paulo abrem a temporada da Osesp, que este ano homenageia Beethoven por seus 250 anos. E o compositor será um dos focos de Fischer em suas oito semanas à frente da orquestra em 2020 (“Haverá mais nos próximos anos”, ele faz questão de ressaltar). O principal destaque é a interpretação das oito primeiras sinfonias do compositor - a Nona sinfonia foi interpretada por Alsop na sua despedida do grupo, em dezembro, e Fischer imagina regê-la talvez em 2021.

“Falei muito com a orquestra hoje sobre o que entendo como disciplina coletiva, como articulação coletiva. Não me entenda errado, é uma orquestra fantástica. Mas nesse primeiro ano precisaremos encontrar a personalidade em nosso relacionamento. E ela tem a ver com isso. O som de uma orquestra vem dessa capacidade de articulação, do desenvolvimento de uma coesão coletiva. Do prazer de fazer as coisas juntos. Projeção, precisão, balanço, equilíbrio, é nisso que vamos trabalhar. E é isso que Beethoven exige. É perfeito que comecemos essa parceria artística justamente com as oito sinfonias. Com elas, o objetivo é quebrar para construir. E, com elas, desenvolvemos um desejo coletivo de excelência.”

O nome de Fischer foi anunciado como regente principal e diretor musical em junho, favorito entre candidatos como Alexandre Liebreich e Alexander Shelley. Ele nasceu no Zâmbia, mas cresceu na Suíça. Começou na música como flautista e atualmente é diretor da Sinfônica de Utah e principal regente convidado da Filarmônica de Seul.

O primeiro posto ele deixa no fim de 2022; o segundo, em dezembro deste ano, abrindo mais tempo para sua permanência em São Paulo. A expectativa é de que ele esteja no Brasil com mais frequência do que Alsop. E, quando seu nome foi anunciado, a direção da Osesp foi clara em afirmar que espera, com ele, aumentar a conexão da orquestra com a cidade e o País. Não é uma fórmula fácil. Mas Fischer se diz pronto.

“Conectar-se com a cidade é o ponto de partida”, diz. “Já temos planos de turnês internacionais. Mas só faz sentido para a Osesp viajar pela América do Sul, por exemplo, se o seu público em São Paulo se orgulhar desse plano e apoiá-lo.” O maestro diz também querer estabelecer contato com outras instituições culturais. “É meu papel conhecer museus, teatro de ópera, companhias de balé. No fim de semana fui conhecer o Masp, percorri o museu e depois conheci o projeto, bastidores. Entrar em contato com projetos ambiciosos e ousados me fará ser mais ousado com a Osesp. A arte, afinal, nos ajuda a sermos melhores, sempre.”

Já na porta do escritório, ele se despede. “Não, uma última coisa, me desculpe, que esqueci de falar sobre a Missa, e é muito importante: no final, a missa nos fala de uma visão da eternidade, de uma paz individual e coletiva. Mas a peça acaba de repente. Depois de uma hora e 20 de música, nada. Eu acho fascinante, porque...” Uma outra pausa. “Beethoven queria terminar com uma pergunta. Pense nisso.”

Maestro suíço é o sexto titular da história da orquestra

Thierry Fischer é o sexto maestro a ocupar o posto de regente titular da Osesp, em uma história que já se convencionou separar em dois momentos distintos. A orquestra foi criada em 1954, quando foi dirigida por Souza Lima e Bruno Roccella. No início dos anos 1970, começou a até hoje mais longa parceria artística do grupo com um maestro, Eleazar de Carvalho, que ficou no posto até sua morte, em 1996.

O maestro Thierry Fischer Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Foi então que a Osesp passou pelo processo de reestruturação. E, com John Neschling como diretor artístico, viu episódios como o nascimento da Sala São Paulo, em 1999, e a transformação da orquestra em uma fundação, o que aconteceu em 2005.

Neschling deixou o posto em 2009. Decidiu-se, então, fragmentar o poder artístico no grupo, com a nomeação de um diretor artístico (Arthur Nestrovski, que segue no cargo) e de um regente titular, Yan Pascal Tortelier, que trabalhou em 2010 e 2011.

Marin Alsop chegou em 2012 e esteve à frente da orquestra, primeiro como regente titular e em seguida como diretora musical, durante oito temporadas. Abrindo espaço, então, para Fischer, cujo contrato inicial é de quatro anos (como também havia sido o de Alsop).

Com exceção do vácuo artístico do período Tortelier, que nunca mais voltou a reger a orquestra, cada maestro do período pós-reestruturação ofereceu ao grupo um caminho.

John Neschling fez do repertório da passagem do século 19 para o século 20, em especial as sinfonias de Mahler e mais tarde peças de Strauss, o ponto de partida para a construção do que defendia como identidade sonora da Osesp.

Alsop, dentro da proposta artística mais ampla de Arthur Nestrovski, também fez sua integral de Mahler com a orquestra, mas suas escolhas mais pessoais recaíram sobre a música americana do século 20 e a música russa do mesmo período – com a integral das sinfonias de Prokofiev, por exemplo, gravadas para o selo Naxos.

O primeiro ano de Fischer já dá algumas pistas do que ele pretende trabalhar com a orquestra. Além das sinfonias de Beethoven, obrigatórias por conta dos 250 anos do compositor, ele vai reger Berg, Schoenberg e Webern, autores da chamada segunda escola de Viena, símbolos da vanguarda do começo do século 20.

De certa forma, é a sequência do repertório que marcou a identidade da orquestra nos anos Neschling. “Ouvindo você colocar esse percurso de repertório dos últimos 20 anos, acho que faz todo sentido”, ele diz. “Mas o critério não foi esse. A segunda escola de Viena exige algo que Beethoven também exige: a precisão é importante para dar sentido a essas obras, assim como a capacidade dos músicos de ouvir uns aos outros. Quando você trabalha isso, se dá uma reação em cadeia que vai perpassando todo o repertório.” 

A OSESP E BEETHOVEN

Sinfonias A Osesp vai interpretar as oito primeiras sinfonias do compositor sob regência de Thierry Fischer, que também rege o oratório Cristo no Monte das Oliveiras - e a Missa solene, que ele considera uma das mais importantes peças do compositor

Concertos para piano Os cinco concertos para piano serão interpretados na temporada. O primeiro deles será o Concerto imperador, já na próxima semana, com o pianista britânico Paul Lewis e o maestro suíço Stefan Blunier como regente. Os demais concertos serão apresentados por artistas como o francês Jean-Eflam Bavouzet, que vai atuar como solista e maestro

Obras para piano Lewis também fará três recitais no fim de março, dando início ao projeto de interpretação das 32 sonatas para piano solo do compositor, que vai ter diferentes pianistas ao longo do ano

SERVIÇO OSESP Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes, 16 Concertos: 5ª (5) e 6ª, às 20h30, e sáb., às 16h30.  Ingressos: R$ 50 a R$ 190.  Telefone da bilheteria: 3777-9721.

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