Análise: Tina Turner e Rita Lee, de ‘traidoras’ a rainhas do rock


Como as duas únicas mulheres chamadas de “rainhas do rock” enfrentaram a fúria dos fãs ortodoxos de um dos gêneros mais machistas e conservadores do mundo pop

Por Julio Maria
Atualização:

Há mais cruzamentos do que se pode imaginar nas essências de Tina Turner e Rita Lee, duas bússolas que a música pop pós anos 70, depois de ter alguns de ter nas duas seus pilares fundamentais, perdeu nos últimos dias. De territórios geográficos distantes, apartadas por genéticas raciais de papéis opostos, a negra Tina e a branca Rita espelham-se em duas essências, uma técnica e outra social: elas tiveram de romper com a fidelidade a suas origens musicais para se tornar planetárias. E só conseguiram fazer isso derrubando o império machista a marretadas.

Tina Turner e Lionel Richie, ao receber um Grammy Awards em 1985 Foto: Photo/Lennox McLendon

As duas são chamadas um tanto tortuosamente, e sobretudo nos últimos dias, de “Rainha do Rock”. Uma reverência tão afetuosa quanto limitadora. Nem Tina nem Rita desempenharam o papel que os roqueiros ortodoxos esperavam que elas fossem desempenhar, e pagaram um preço por tal “infidelidade”.

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Tina foi casada com um homem violento que a espancava e detestava ser pai, mas importante para a história do rock and roll. Ike Turner gravou, com seu Kings of Rhythm, um dos primeiros rocks da história: Rocket 88. Isso em 1951. Deste, ele queria a paternidade: “Eu criei algo novo quando fiz Rocket 88. Acabei sendo o primeiro homem a gravar um rock”, contou, confiante de ser o primeiro, em uma conversa que tivemos para o Jornal da Tarde, em 2007.

Ike queria apagar o passado de exploração e machismo que fez Tina querer e buscar a morte por pelo menos uma vez, em 1968. No pior momento de sua relação, em 1968, quando o marido dividia a casa com outras duas mulheres, fazendo questão de tratar Tina da pior maneira, a cantora tomou de uma vez 50 comprimidos de um remédio para dormir. “Eu sabia que levaria tempo para sentir os efeitos, e estava contando com isso”, ela conta em seu livro Minha História de Amor. “A ideia era morrer depois de cantar em nosso show, para que Ike conseguisse receber o pagamento... Eu estava tão adestrada que até meu suicídio precisava acontecer de um jeito mais conveniente para Ike.”

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Ao finalmente deixar o marido em 1976, depois de muitas surras e uma exploração artística perversa, Tina desamarrou-se das matrizes originais do rock que ajudou a construir com Ike desde que se chamava Little Ann e cantava Proud Mary, Nutbush City Limits e versões para Get Back e Come Together. Uma nova cantora nascia, sob arranjos de mais teclados e menos guitarras, mais doçura e menos revolta, mais eco de reverb e menos distorções.

Era a Tina pop, galáctica, chegando a quem a conhecia das origens ou não, e pronta para vencer os sintéticos anos 80. I Don’t Wanna Fight, Let’s Stay Together (Al Green em suas bênçãos), Help! (a única versão de uma canção dos Beatles que se tornou, de fato, uma outra canção), e a inquestionável The Best. Parte do público que percebeu sua guinada pop não perdoou. “Tina está traindo suas origens” disse ele, Ike Turner, pegando carona nos críticos. Ike se arrependeria de tal frase antes de morrer, em 2007.

Rita: um lugar ao qual nenhuma outra brasileira chegou  Foto: Eduardo Nicolau / Estadão
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Rita Lee Jones não sofreu violência direta de espancadores de mulheres, mas sentiu a fúria dos fãs que a viram começar a cantar nas trilhas de novelas da Globo, nos anos 80. Depois da história criada com os Mutantes, finalizada no início dos anos 70, e da sequência stoniana com a banda Tutti Frutti, ainda mais rock and roll do que a primeira, virou a mesma chave de Tina, que a fez deixar de querer cantar só aos ortodoxos e buscar o coração de quem quer que tivesse um. Baila Comigo, Lança Perfume, Doce Vampiro, Mania de Você. Sua audiência raiz não perdoou. “Traidora do rock”, disseram, previsivelmente, ao vê-la nos braços de Roberto de Carvalho, seu maior tradutor. Rita jamais os perdoou: “Roqueiro é muito clichê”, ela dizia, para lembrar do mais publicável.

Tina e Rita criaram, a partir de suas existências, espaços de mulheres em mundos brutos que ainda não chegaram a ser ocupados. Quem mais se aproxima da primeira é Beyoncé – e alguns estudiosos de Tina (e outros leigos que virem as duas cantando lado a lado em um vídeo no YouTube) se coçarão ao ler essa possibilidade. Mas qual seria outra? Beyoncé, além de ter bebido doses cavalares de Tina Turner para dar origem à sua formação artística, veio com postura, vozeirão e um marido um tanto... marido. Jay Z, rapper, traiu a esposa a ponto de inspirá-la na criação de um álbum, Lemonade. Por enquanto, Beyoncé perdoa Jay Z. Sobre Rita, a chamada rainha do gênero no Brasil, quem mais estaria apta a tal lugar? Pitty? Não, sobretudo por falta condições geracionais. Reis e rainhas não são mais personagens viáveis no mundo dos ídolos líquidos.

Há mais cruzamentos do que se pode imaginar nas essências de Tina Turner e Rita Lee, duas bússolas que a música pop pós anos 70, depois de ter alguns de ter nas duas seus pilares fundamentais, perdeu nos últimos dias. De territórios geográficos distantes, apartadas por genéticas raciais de papéis opostos, a negra Tina e a branca Rita espelham-se em duas essências, uma técnica e outra social: elas tiveram de romper com a fidelidade a suas origens musicais para se tornar planetárias. E só conseguiram fazer isso derrubando o império machista a marretadas.

Tina Turner e Lionel Richie, ao receber um Grammy Awards em 1985 Foto: Photo/Lennox McLendon

As duas são chamadas um tanto tortuosamente, e sobretudo nos últimos dias, de “Rainha do Rock”. Uma reverência tão afetuosa quanto limitadora. Nem Tina nem Rita desempenharam o papel que os roqueiros ortodoxos esperavam que elas fossem desempenhar, e pagaram um preço por tal “infidelidade”.

Tina foi casada com um homem violento que a espancava e detestava ser pai, mas importante para a história do rock and roll. Ike Turner gravou, com seu Kings of Rhythm, um dos primeiros rocks da história: Rocket 88. Isso em 1951. Deste, ele queria a paternidade: “Eu criei algo novo quando fiz Rocket 88. Acabei sendo o primeiro homem a gravar um rock”, contou, confiante de ser o primeiro, em uma conversa que tivemos para o Jornal da Tarde, em 2007.

Ike queria apagar o passado de exploração e machismo que fez Tina querer e buscar a morte por pelo menos uma vez, em 1968. No pior momento de sua relação, em 1968, quando o marido dividia a casa com outras duas mulheres, fazendo questão de tratar Tina da pior maneira, a cantora tomou de uma vez 50 comprimidos de um remédio para dormir. “Eu sabia que levaria tempo para sentir os efeitos, e estava contando com isso”, ela conta em seu livro Minha História de Amor. “A ideia era morrer depois de cantar em nosso show, para que Ike conseguisse receber o pagamento... Eu estava tão adestrada que até meu suicídio precisava acontecer de um jeito mais conveniente para Ike.”

Ao finalmente deixar o marido em 1976, depois de muitas surras e uma exploração artística perversa, Tina desamarrou-se das matrizes originais do rock que ajudou a construir com Ike desde que se chamava Little Ann e cantava Proud Mary, Nutbush City Limits e versões para Get Back e Come Together. Uma nova cantora nascia, sob arranjos de mais teclados e menos guitarras, mais doçura e menos revolta, mais eco de reverb e menos distorções.

Era a Tina pop, galáctica, chegando a quem a conhecia das origens ou não, e pronta para vencer os sintéticos anos 80. I Don’t Wanna Fight, Let’s Stay Together (Al Green em suas bênçãos), Help! (a única versão de uma canção dos Beatles que se tornou, de fato, uma outra canção), e a inquestionável The Best. Parte do público que percebeu sua guinada pop não perdoou. “Tina está traindo suas origens” disse ele, Ike Turner, pegando carona nos críticos. Ike se arrependeria de tal frase antes de morrer, em 2007.

Rita: um lugar ao qual nenhuma outra brasileira chegou  Foto: Eduardo Nicolau / Estadão

Rita Lee Jones não sofreu violência direta de espancadores de mulheres, mas sentiu a fúria dos fãs que a viram começar a cantar nas trilhas de novelas da Globo, nos anos 80. Depois da história criada com os Mutantes, finalizada no início dos anos 70, e da sequência stoniana com a banda Tutti Frutti, ainda mais rock and roll do que a primeira, virou a mesma chave de Tina, que a fez deixar de querer cantar só aos ortodoxos e buscar o coração de quem quer que tivesse um. Baila Comigo, Lança Perfume, Doce Vampiro, Mania de Você. Sua audiência raiz não perdoou. “Traidora do rock”, disseram, previsivelmente, ao vê-la nos braços de Roberto de Carvalho, seu maior tradutor. Rita jamais os perdoou: “Roqueiro é muito clichê”, ela dizia, para lembrar do mais publicável.

Tina e Rita criaram, a partir de suas existências, espaços de mulheres em mundos brutos que ainda não chegaram a ser ocupados. Quem mais se aproxima da primeira é Beyoncé – e alguns estudiosos de Tina (e outros leigos que virem as duas cantando lado a lado em um vídeo no YouTube) se coçarão ao ler essa possibilidade. Mas qual seria outra? Beyoncé, além de ter bebido doses cavalares de Tina Turner para dar origem à sua formação artística, veio com postura, vozeirão e um marido um tanto... marido. Jay Z, rapper, traiu a esposa a ponto de inspirá-la na criação de um álbum, Lemonade. Por enquanto, Beyoncé perdoa Jay Z. Sobre Rita, a chamada rainha do gênero no Brasil, quem mais estaria apta a tal lugar? Pitty? Não, sobretudo por falta condições geracionais. Reis e rainhas não são mais personagens viáveis no mundo dos ídolos líquidos.

Há mais cruzamentos do que se pode imaginar nas essências de Tina Turner e Rita Lee, duas bússolas que a música pop pós anos 70, depois de ter alguns de ter nas duas seus pilares fundamentais, perdeu nos últimos dias. De territórios geográficos distantes, apartadas por genéticas raciais de papéis opostos, a negra Tina e a branca Rita espelham-se em duas essências, uma técnica e outra social: elas tiveram de romper com a fidelidade a suas origens musicais para se tornar planetárias. E só conseguiram fazer isso derrubando o império machista a marretadas.

Tina Turner e Lionel Richie, ao receber um Grammy Awards em 1985 Foto: Photo/Lennox McLendon

As duas são chamadas um tanto tortuosamente, e sobretudo nos últimos dias, de “Rainha do Rock”. Uma reverência tão afetuosa quanto limitadora. Nem Tina nem Rita desempenharam o papel que os roqueiros ortodoxos esperavam que elas fossem desempenhar, e pagaram um preço por tal “infidelidade”.

Tina foi casada com um homem violento que a espancava e detestava ser pai, mas importante para a história do rock and roll. Ike Turner gravou, com seu Kings of Rhythm, um dos primeiros rocks da história: Rocket 88. Isso em 1951. Deste, ele queria a paternidade: “Eu criei algo novo quando fiz Rocket 88. Acabei sendo o primeiro homem a gravar um rock”, contou, confiante de ser o primeiro, em uma conversa que tivemos para o Jornal da Tarde, em 2007.

Ike queria apagar o passado de exploração e machismo que fez Tina querer e buscar a morte por pelo menos uma vez, em 1968. No pior momento de sua relação, em 1968, quando o marido dividia a casa com outras duas mulheres, fazendo questão de tratar Tina da pior maneira, a cantora tomou de uma vez 50 comprimidos de um remédio para dormir. “Eu sabia que levaria tempo para sentir os efeitos, e estava contando com isso”, ela conta em seu livro Minha História de Amor. “A ideia era morrer depois de cantar em nosso show, para que Ike conseguisse receber o pagamento... Eu estava tão adestrada que até meu suicídio precisava acontecer de um jeito mais conveniente para Ike.”

Ao finalmente deixar o marido em 1976, depois de muitas surras e uma exploração artística perversa, Tina desamarrou-se das matrizes originais do rock que ajudou a construir com Ike desde que se chamava Little Ann e cantava Proud Mary, Nutbush City Limits e versões para Get Back e Come Together. Uma nova cantora nascia, sob arranjos de mais teclados e menos guitarras, mais doçura e menos revolta, mais eco de reverb e menos distorções.

Era a Tina pop, galáctica, chegando a quem a conhecia das origens ou não, e pronta para vencer os sintéticos anos 80. I Don’t Wanna Fight, Let’s Stay Together (Al Green em suas bênçãos), Help! (a única versão de uma canção dos Beatles que se tornou, de fato, uma outra canção), e a inquestionável The Best. Parte do público que percebeu sua guinada pop não perdoou. “Tina está traindo suas origens” disse ele, Ike Turner, pegando carona nos críticos. Ike se arrependeria de tal frase antes de morrer, em 2007.

Rita: um lugar ao qual nenhuma outra brasileira chegou  Foto: Eduardo Nicolau / Estadão

Rita Lee Jones não sofreu violência direta de espancadores de mulheres, mas sentiu a fúria dos fãs que a viram começar a cantar nas trilhas de novelas da Globo, nos anos 80. Depois da história criada com os Mutantes, finalizada no início dos anos 70, e da sequência stoniana com a banda Tutti Frutti, ainda mais rock and roll do que a primeira, virou a mesma chave de Tina, que a fez deixar de querer cantar só aos ortodoxos e buscar o coração de quem quer que tivesse um. Baila Comigo, Lança Perfume, Doce Vampiro, Mania de Você. Sua audiência raiz não perdoou. “Traidora do rock”, disseram, previsivelmente, ao vê-la nos braços de Roberto de Carvalho, seu maior tradutor. Rita jamais os perdoou: “Roqueiro é muito clichê”, ela dizia, para lembrar do mais publicável.

Tina e Rita criaram, a partir de suas existências, espaços de mulheres em mundos brutos que ainda não chegaram a ser ocupados. Quem mais se aproxima da primeira é Beyoncé – e alguns estudiosos de Tina (e outros leigos que virem as duas cantando lado a lado em um vídeo no YouTube) se coçarão ao ler essa possibilidade. Mas qual seria outra? Beyoncé, além de ter bebido doses cavalares de Tina Turner para dar origem à sua formação artística, veio com postura, vozeirão e um marido um tanto... marido. Jay Z, rapper, traiu a esposa a ponto de inspirá-la na criação de um álbum, Lemonade. Por enquanto, Beyoncé perdoa Jay Z. Sobre Rita, a chamada rainha do gênero no Brasil, quem mais estaria apta a tal lugar? Pitty? Não, sobretudo por falta condições geracionais. Reis e rainhas não são mais personagens viáveis no mundo dos ídolos líquidos.

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