Dalal Achcar, em evento social recente - a abertura da Semana da Francofonia no consulado suíço no Rio -, é lembrada de que foi ela quem encomendou a Tom Jobim a canção ecológica Forever Green. Do alto de seus 86 anos (ela fez 87 nesta quarta, 1º), e em plena atividade, a coreógrafa ignora o pedido por detalhes e entrega informação bem mais surpreendente: guarda há seis décadas, e ainda sonha em levar ao palco, a coreografia de uma trilha para balé inédita escrita pelo compositor de Águas de Março.
Quem jogara Forever Green começava a colher frutos bem maduros: a suíte sinfônica Água de Meninos. Dois dias após a noite de comes e bebes e conversas jogadas dentro, a resposta de Dalal, agora via Whatsapp, aumentava o interesse pela história completa.
“Eu era muito amiga do Tom e do Vinicius. Eles saíam do bar do Veloso trazendo a cervejinha e vinham no meu estúdio de dança, que era ao lado, e pediam para usar o piano pois estavam inspirados… Ficavam horas batucando o piano e compondo letras e músicas. Foi um período muito rico de criações musicais. Ele compôs o ballet a meu pedido”, conta a bailarina.
Ela segue: “E um dia, o Vinicius me telefonou e me disse que eles estavam gravando um LP e estava faltando uma faixa para completar o disco. E me perguntou: ‘Dalal querida, será que você cederia uma das músicas da partitura que o Tom compôs para você? É uma emergência!’ Eu disse: ‘Claro que sim, vocês podem escolher’. Essa música deve estar na partitura. Essa é a história.”
Será que a tal canção pinçada da trilha tiraria o ineditismo da trilha?
Antes de tentar uma brecha na cheia agenda da coreógrafa são consultados Beth Jobim (a artista plástica que, nos anos 1980 e 1990, foi uma das cantoras da Banda Nova, que acompanhou seu pai em shows e discos) e o músico, compositor e cineasta Aluisio Didier (desde 2020, o diretor do Instituto Antonio Carlos Jobim). Ambos dizem desconhecer uma obra assinada por Tom com o nome Água de Meninos. Checagem que se juntou à pesquisa em diferentes biografias e songbooks e ainda na internet, incluindo as mais de mil partituras (entre composições ou arranjos de Jobim para outros autores) acessíveis no próprio site do Instituto. Em nenhuma fonte há registro dessa trilha ou menção à encomenda feita por Dalal.
Caso se confirmasse a descoberta, a partitura na sede da Cia de Ballet Dalal Achcar seria a primeira obra inédita de Jobim a vir à luz em três décadas. Justamente no ano em que se completarão 30 anos de sua morte (em Nova York, em 8 de dezembro de 1994). Ainda na fase troca da mensagens, novos detalhes reforçaram o interesse. Dalal enviou um foto da página de abertura da partitura e contou: “Radamés Gnattali fez a orquestração. Mas eu nunca consegui dinheiro para gravar e montar o ballet com cenário, figurinos e orquestração completa. Ainda quero fazer”.
Novos motivos para marcar um encontro presencial e ter acesso à partitura completa, o que aconteceu mais de um mês após as primeiras notícias sobre Água de Meninos. Nesse período, enquanto ensaiava dois projetos diferentes, Dalal passou 14 dias sem poder trabalhar, recuperando-se de covid-19 e pneumonia. Finalmente, após entregar a sua coreografia para a A Noviça Rebelde (que, adaptada e dirigida por Claudio Botelho, estreou em 28 de abril e fica em cartaz até 23 de junho no Teatro Riachuelo, no Rio) e em meio aos ensaios para uma nova montagem do balé em dois atos Floresta Amazônica (nos dias 11 e 12 de maio, na Cidade das Artes), ela achou tempo para a entrevista.
Obra inédita de Tom Jobim com orquestração de Radamés Gnattali
Aluisio Didier, maestro habilitado para ler aquelas páginas ocupadas por cinco linhas, quatro espaços e símbolos representando claves, notas musicais e figuras de tempo, participou e confirmou o ineditismo da obra.
O balé com a trilha de Tonzinho, como Dalal chama o saudoso amigo, seria a sequência perfeita para a carreira de uma bailarina e coreógrafa que, naquele início dos anos 1960, vinha revolucionando o balé clássico no Brasil. Mas, as dificuldades habituais de um País em crise e transe sem fim adiaram a concretização do sonho. Que, agora, pode acontecer.
Mesmo que usando trechos de algumas canções de Tom e Vinicius, incluindo Eu Preciso de Você (com melodia que entra e volta em diferentes momentos) e Água de Beber (esta, provavelmente a que Vinicius pediu emprestado), e ainda o baião bossa-novista Bim bom (de João Gilberto, em seu álbum de estreia, em 1959, com arranjos de Jobim), há muitos trechos inéditos na partitura completa. Não só passagens incidentais de ligação entre os temas, mas belas melodias até então desconhecidas, passando por fanfarra, baião, samba, capoeira.
Outro dado importante é a peça contar com a orquestração de um amigo e mestre de Tom, Radamés Gnattali, que escreveu as partituras para uma sinfônica completa, já com as partes dos naipes de violino, viola, violoncelo, flauta, fagote, percussão, etc...
“Provavelmente, pela letra, o manuscrito foi feito por Aída, irmã de Radamés, que costumava trabalhar com ele”, comenta Didier, explicando que, com cerca de meia hora de duração, a análise da suíte sinfônica tomará mais algum tempo. Bem menos do que as seis décadas que se passaram. E, certamente, gerando muitas belezas.
30 anos sem Tom Jobim
No ano em que se completam 30 anos da morte do compositor, a suíte sinfônica em mãos de Dalal é mais um motivo de celebração. No segundo semestre, estão previstas a estreia de Tom Jobim - Musical, peça que vem sendo escrita por Nelson Motta e Pedro Brício, com produção da Bonus Track, e duas exposições organizadas pelo Instituto Antonio Carlos Jobim. Não é arriscado cravar que, em breve, a música e a coreografia de Água de Meninos também virão a público. Obra em progresso.
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Inspirada na suíte sinfônica A Floresta do Amazonas, de Heitor Villa-Lobos, a coreografia de Floresta Amazônica foi criada por Dalal para a amiga Margot Fonteyn, que a estreou no Rio, em 1975. Foram quase duas décadas de empenho, desde que, no início dos 1960, ela teve o sinal verde dos herdeiros de Villa-Lobos para adaptar a composição, originalmente feita para o filme Green Mansions (A Flor Que Não Morreu).
Com a morte do compositor, ao descobrir que não existia cópia da partitura no Brasil, a coreógrafa conseguiu localizar e comprar a original nos estúdios Metro-Goldwyn-Mayer. As páginas estavam mal conservadas, recortadas e embaralhadas, mas, com a ajuda do maestro Henrique Morelenbaum, ela pôde reconstituir a partitura completa.
Para o desgosto de Villa-Lobos, o filme, lançado em 1959, dirigido por Mel Ferrer e estrelado por Audrey Hepburn e Anthony Perkins, só utilizou um terço da peça, e ainda tinha música adicional de Bronislau Kaper. O brasileiro transformou a trilha em uma suíte sinfônica e conseguiu que o estúdio financiasse a gravação daquele que foi seu último álbum.
“Recebi as partituras e estava tudo cortado e misturado. Fizemos cópias na Xerox, recém-instalada no Rio, e Morelenbaum foi montando o quebra-cabeças musical passo a passo, usando o álbum com a gravação de A Floresta do Amazonas como guia”, explica Dalal.
Com esse trabalho, ela avançava no projeto de criar conteúdo brasileiro para o balé. Já em suas primeiras coreografias, a partir de 1960, quando uma participação no Gala da Royal Academy of Dancing em Londres prevista para duas semanas se estendeu por uma turnê de quatro meses, com apresentações por países como Itália, Espanha e Portugal e diversas cidades do Reino Unido. Nessas apresentações, Dalal adaptou obras de Alberto Nepomuceno, Francisco Mignone, Heckel Tavares e Claudio Santoro com libretos de Vinicius e Manuel Bandeira e cenografias de Burle-Marx e Fernando Pamplona.
Um trajeto singular, a partir da virada dos 1950 para os 60, prova que a coreógrafa fez para o balé o mesmo que Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e companhia fizeram para o cinema, que Tom, Vinicius, Nara Leão e os Joãos Gilberto e Donato fizeram para a música popular, o que Oscar Niemeyer fez para a arquitetura e Burle Marx, para o paisagismo e a cenografia.
Sim, Dalal, que comemorou 87 anos nesta quarta, 1º, é revolucionária. Como também confirma agora a nova montagem para Villa-Lobos - o espetáculo Floresta Amazônica será apresentado nos dias 11 e 12 de maio, na Cidade das Artes, no Rio. Cerca de 20 integrantes no elenco vêm do Norte e do Nordeste e foram selecionados em audições que ela fez em Belém, quando, em agosto do ano passado, levou Floresta Amazônica ao Theatro da Paz.
“Fiquei impressionada com o talento desses jovens, vindo de lugares onde não existem escolas de dança. Nos últimos anos, apesar de todas as carências, bailarinos brasileiros têm brilhado em concursos no mundo todo, nada devendo aos grandes centros da dança mundial”, conta.
Além do empenho em criar repertório original, consciência social e ecológica marcam a personalidade da coreógrafa.
Vale voltar a Forever Green (Sempre Verde, em tradução literal), que acabou tirando Água de Meninos do cofre. Escrita por Tom e Paulo Jobim em inglês, a canção foi encomenda de Dalal para o Concert for Planet Earth, que idealizou e dirigiu em junho do 1992, durante a pioneira Conferência Internacional do Meio Ambiente Eco 92.
No elenco do evento na Lagoa Rodrigo de Freitas, narrado por Jeremy Irons e irradiado pela BBC, estavam artistas vindos dos cinco continentes. Coro e orquestra do Municipal do Rio e, entre outros, cantores, instrumentistas e bailarinos, Denyce Graves, Placido Domingo, Wynton Marsalis, Sarah Chang, Eleonora Cassano, Julio Bocca, Gal Costa e Tom Jobim.
No CD e DVD depois editados pela Sony Music, Gal e Tom interpretam Dindi e Eu Sei Que Vou Te Amar. Forever Green só seria gravada em Antonio Brasileiro, o último álbum lançado em vida por Jobim - no segundo semestre de 1994.