Aos 89 anos, Tony Bennett, continua a se reinventar com charme, leveza e enorme talento. Pertence à rara categoria dos cantores populares capazes de unir acesso ao grande público com música de qualidade. Sempre se deu bem no jazz e na música pop.
Em 2014, mostrou que a bizarra persona pública de Lady Gaga, 29 aninhos, é apenas uma formidável construção pop tecida por uma mulher talentosa que poderia fazer muito mais. Ela realizou isso no CD Cheek to Cheek em repertório seletíssimo, feito a caráter para Bennett, acostumado a trafegar entre Duke Ellington e Bill Evans, mas também nas grandes canções nascidas nos musicais da Broadway, que viraram gemas do “great american songbook”, assinadas por Irving Berlin, Cole Porter, Jimmy Van Heusen e Jerome Kern. Arranjos típicos das big band dos anos 1930/40 feitos por Marion Evans ressaltam a atmosfera musicalmente privilegiada dos anos 1930/40.
Em The Silver Lining, Bennett retorna ao formato jazzístico mainstream, acompanhado pelo trio piano-contrabaixo acústico-bateria de Bill Charlap e os irmãos Peter e Kenny Washington. E faz um recorte mais preciso: garimpa na estante de canções troféus geniais de Jerome Kern (1885-1945), um dos grandes compositores da Broadway desde Show Boat, de 1927, autor de 700 canções. Você com certeza já ouviu The Way You Look Tonight até em casamentos. Ou então Ol’ Man River, All the Things You Are, The Song Is You – todas estão no refinado CD de Bennett.
São 14 faixas antológicas. A voz de Bennett está cada vez mais parecida com o scotch mais raro, meio rascante, alcançando agudos que você não acredita que ele conseguirá (mas chega lá). A expressividade na emissão das palavras é outra característica emocionante (confira na incrível The Last Time I Saw Paris).
Bill Charlap, apesar de ter 49 anos, parece ter crescido no ambiente musical jazzístico dos anos 1940. Não se engane: se o contexto é mainstream, de “revival” ou tributo, a qualidade musical é vivíssima.
Um exemplo basta. O clássico de Kern I Won’t Dance recebera um convencional arranjo estilo big band anos 1930 no CD de 2014 com Lady Gaga. Agora, Bennett quis interpretá-la no três-por-quatro de valsa. No encarte, Will Friedwald diz que “eles mudaram o título para I Won’t Waltz. E Kern seria “uma conexão direta entre Brahms e Charlie Parker”. Depois de ouvir o CD, percebe-se o acerto. Em muitas de suas 200 canções para voz e piano (lieder), Brahms canta a serena felicidade de tempos idos, evoca melancolicamente a felicidade perdida e o sentimento resignado de ter vindo ao mundo tarde demais (expressões de Alfred Einstein, em livro sobre o lied alemão). Pois a música de Kern tem muito disso – e com o refinamento harmônico e suingante de Parker.
Bennett e Charlap são precisos nesta recriação. Em três canções, só voz e piano; em outras quatro, incluindo a faixa-título, a cantora e pianista Renée Rosnes, mulher de Charlap, toca com ele a dois pianos contidos, acariciando a voz de Bennett. E nas sete restantes reina o formato piano-baixo-bateria. Mezzo Brahms, mezzo Parker. Encanta mais o clima de uma noitada rara de canções afins ao repertório do “lied” romântico do século. Uma linda surpresa, mais uma joia preciosa no baú do cantor próximo de completar 90 anos, em 26 de agosto de 2016.