A primeira vez que o fotógrafo Paulo Kawall viu Rita Lee (1947-2023) foi na década de 1970, ainda na fase dos Mutantes. A cantora passou rapidamente pela sala da casa dos pais dele e foi direto para o quarto de Thereza, irmã de Kawall, que depois se casaria com o músico Liminha, um dos mutantes. As duas ficaram trancadas no cômodo tocando violão.
Depois de fazer sua estreia como fotógrafo por acaso, e sem autorização, em uma apresentação do grupo de dança Dzi Croquettes no ano de 1973 – as fotos que conquistaram o coreógrafo Lennie Dale, líder do Dzi, recentemente foram recuperadas e agora integram o acervo do Instituto Moreira Salles (IMS) -, Kawall foi contratado para fazer fotos para a extinta revista Música. A primeira personagem foi a cantora Elis Regina que fazia sucesso com o espetáculo Falso Brilhante.
Não demoraria e Kawall estaria novamente com Rita. Ela, já em sua grande fase solo, no fim da mesma década de 1970. A missão do fotógrafo era fazer imagens de divulgação da cantora. O estúdio foi improvisado na casa de seu pai, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Por lá, também passaram, além de Rita e Elis, muitos outros nomes da MPB, entre eles, Ney Matogrosso, que, sem camisa, posou com uma pomba no ombro.
Foi nesse local que Kawall fotografou Rita ainda puérpera, em 1979. A cantora apareceu no estúdio como se fosse uma militar, segundo ele. Vestia uma camisa camuflada, uma boina e carregava uma guitarra – pela imagem cedida ao Estadão, Rita lembra mais uma guerrilheira. Em certo momento, segundo Kawall, o leite materno começou a sair de um dos seios de Rita. “Foi algo tão marcante para mim. Ela voltou para casa, fim do ensaio”, conta Kawall, 69 anos.
Kawall fotografou ainda os shows Lança Perfume e O Circo, grandes sucessos de Rita, de 1980. As fotos que Kawall guarda traz variações de imagens já conhecidas pelo público – algumas estão no livro FavoRita, de 2018. Nem por isso são menos fascinantes. Há Rita tocando flauta, e apito, sentada no chão com Roberto de Carvalho ao fundo e fazendo careta com o dedo no nariz.
“Eu tinha uma intimidade natural, tanto quanto ela quanto com Roberto”, diz.
Kawall também foi convocado pela cantora para clicar as fotos do livro infantil Dr. Alex. Capturou a ternura que Rita tinha com seu hamster, o animalzinho que inspirou a história. E mais: se tornou um personagem do livro.
“Rita me ligou e disse que ela e o Roberto estavam matutando para saber quem faria o Ratão. Foi quando, segundo ela, um olhou para o outro e disse: “só pode ser o Paulão!”. Foi a própria Rita que me fotografou vestido como o personagem. Ela pirava”, conta Kawall.
Em 1988, fotografou a cantora para a capa do disco Zona Zen, álbum de uma fase menos pop e mais roqueira de Rita. Os registros foram feitos em uma casa na rua Purpurina, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, em um terreno vizinho ao qual Kawall já havia instalado um estúdio próprio.
O gafritti que compõe o cenário da capa foi pintado na parede pelo artista Maurício Villaça. Rita, com uma blusa listrada, sentou em um amplificador para fazer a foto. De repente, o cachorro do vizinho surge na cena e se posiciona ao lado de Rita. “Foi algo tão natural”, lembra Kawall. Foram feitas versões coloridas e em preto e branco. Rita preferiu a segunda opção. “Muita gente me questionou depois, mas foi escolha dela”, diz o fotógrafo.
No início dos anos 1990, Kawall se desencantou com a indústria fonográfica que passava por profundas transformações em um mercado que começava a migrar para um modelo digital. Foi destratado por um executivo de gravadora e decidiu montar restaurantes na Vila Madalena. Atualmente, se divide entre o bairro e sua casa em Gonçalves, Minas Gerais, onde aluga chalés.
“Minha vida foi um sonho. Acordava, fotografava e ganhava dinheiro. De repente, não dava mais nada”, diz Kawall, que, no início de carreira, foi assistente da fotógrafa Cláudia Andujar.
Há milhares de fotos em seu acervo: Roberto Carlos, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Secos & Molhados, Hermeto Pascoal, Luiz Melodia, Paulinho da Viola, Fagner, Raul Seixas, Tonico & Tinoco, entre outros.
Por ora, ele faz uma retrospectiva digital em sua conta no Instagram com o título Da Época Em Que Eu Era Vivo.
“Confesso que fico um pouco incomodado em mexer com essas fotografias depois de tanto tempo. O que gostaria mesmo é dar um destino para elas, que alguma instituição se interessasse pelo acervo para preservá-lo corretamente. Sei que já estou na história”, diz Kawall, que se define como um “retratista”.