A história do jazz mostra a velocidade com a qual esse gênero capta as transformações do mundo e as assume para si criando em tempo real aos ajustes da própria vida humana novas correntes musicais. Desde o final do século 19, quando surgiu, o jazz passou a oferecer novas sugestões em ciclos de dez em dez anos sobrepondo (e não substituindo) camadas de sons organizadas de forma distinta que têm origem no ragtime (1890) e avança no tempo com ordenamentos diferentes em uma linha que segue pelo Estilo New Orleans (1900), dixieland (1910), Chicago (1920), Era do Swing (1930), bebob (1940), hard bop e cool jazz (1950), free jazz (1960) e fusion (1970). Então, depois de cinco décadas marcadas por uma liberdade de ação e acesso cada vez maior e mais difusos com a quebra das fronteiras, percebe-se a força de uma nova fotografia. Jovens com idades entre 25 e 35 anos que atravessam agora a era da incerteza, do isolamento e das urgências militantes chegam com uma nova visão não só do jazz mas do próprio jazzista. E o jazz, mais uma vez, faz o papel de jazz.
Quem e como seriam esse jazzistas? As listas das maiores revistas de jazz do mundo, como as inglesas Jazzwise e The Wire, as norte-americanas Downbeat e JazzTimes, a alemã Jazzthing e a polonesa Jazzpress, além das publicações em jornais como The New York Times e Washington Post, fizeram há pouco suas costumeiras listas de melhores de 2020 e apostas de 2021. A reportagem seguiu atrás de nomes que se repetem em algumas delas e falou com alguns instrumentistas para tentar entender se já existem características geracionais peculiares no som e no pensamento de nomes que, no momento, estão sob os holofotes.
Jakub Wieçek, mais conhecido como Kuba Wieçek, é um saxofonista de Varsóvia de conhecimentos aprimorados em Amsterdã e Copenhagen. Ele tem 27 anos e seu recente álbum, Multitasking, garantiu um prêmio de disco do ano da revista polonesa Polityka e o levou para a lista das apostas da Jazzwise. Sua música bruta, rítmica e despojada de solos longos e coerentes já indica um processo geracional. Se não foi, o álbum de Wieçek poderia ter sido criado inteiramente no computador de seu quarto. Ele diz ao Estado: “O jazz é algo mais do que apenas as notas que tocamos. Para mim, sempre foi sobre estar aqui e agora, sobre estar aberto à possibilidade de que a cada segundo tudo possa mudar. Sempre se tratou de correr riscos, buscar o desconhecido e aceitar cometer erros para depois criar arte a partir desses erros.”
Ele diz que novos idiomas estão sendo definidos pelo meio em que o jazz é cada vez mais produzido em tempos de pandemia, ou seja, por aplicativos e programas de gravação. “Jazz é sobre o som e a maneira como você o produz e o funde com coisas de diferentes gêneros.” Mas é sua fala seguinte que talvez dê a maior pista de uma das mais polêmicas reavaliações de sua geração. “Eu não acho que ser virtuoso seja algo que importe tanto quanto importava há oito anos. Acontecem tantas coisas no mundo que estamos agora apreciando o minimalismo.”
Wieçek parece falar por muitos. Nas mãos do inglês crescido em Barbados, Shabaka Hutchings, por exemplo, um dos nomes mais festejados pela crítica de Londres e dos Estados Unidos de alguns anos para cá, o sax também atua em peças de linhas curtas, misteriosas, tensas, às vezes eletrônicas, urbanas e mântricas, dialogando em algum nível com sua ancestralidade africana. Não parece importar a eles serem os melhores nem sequer dominarem seus instrumentos, uma cultura perpetuada no jazz dos sopros desde o bebop de Charlie Parker. Um posicionamento jazzístico aceitável nos últimos tempos é criado por um artista que sabe onde colocar as poucas notas extraídas de um sax. “Virtuosismo é coisa de quem cultua o passado”, diz o crítico e estudioso do jazz e da música clássica, João Marcos Coelho. “E isso não significa que esses trabalhos sejam piores. Há músicos muitos bons que entenderam que não precisam mais serem virtuoses.”
Qual seria hoje o peso dos pesos do jazz? Thelonious Monk, Charlie Parker, Sonny Rollins e Horace Silver ainda influenciam um artista jovem com a mesma carga determinante de sua própria linguagem ou estariam todos cada vez mais respeitados do que perseguidos? A guitarrista e cantora de Santiago do Chile com a carreira baseada em Nova York há mais de dez anos, Camila Meza, definida pelo crítico do The New York Times, Nate Chinen, como “uma combinação atraente de leveza e profundidade”, diz que sim, as referências para a sua geração seguem sendo decisivas. “Mais do que reverenciar os grandes, nos os experimentamos e os mesclamos, o que nos leva a uma criação interessante e cheia de movimento.” Sua existência mais clássica é fruto de seu discurso. Camila ama Pat Metheny, Herbie Hancock, Chick Corea, John Scofield e Milton Nascimento, o que se percebe em seu álbum Ambar, o mais nostálgico do que os três anteriores.
Sobre o peso das escolas, Kuba Wieçek tem outra percepção. “Eu gostava tanto de fazer minha própria música enquanto era forçado a tocar bebop em Amsterdã que realmente passei a não gostar dos standards. Só me apaixonei por eles quando me mudei para Copenhagen e descobri o amor que havia lá pela tradição do jazz”. Na vibrante cena na Polônia, ele diz, as coisas são um pouco diferentes: “Temos respeito por eles, mas muitos jovens não os seguem de forma alguma. Os alunos são mais influenciados por músicos de jazz modernos do que por Charlie Parker e Sonny Rollins.”
O isolamento social prolongado por causa da Covid 19 e o distanciamento que pode deixar sequelas mesmo em um mundo vacinado seriam capazes de transformar a linguagem do jazz? Música originária do encontro de povos nascida não por acaso em Nova Orleans – franceses, espanhóis, ingleses, italianos, alemães, eslavos e afro-americanos namoraram e tiveram filhos – o que seria do jazz do não encontro? Não vale falar a palavra "live". “Eu gravei um álbum com o grande trompetista Dave Douglas de forma distanciada em 2020, cada um de sua casa. Primeiro o baixo e, depois, somamos os outros instrumentos, mas parece que estivemos em um mesmo estúdio. Foi um descobrimento”, diz Camila Meza. “O jazz é uma música resiliente. Sempre encontramos uma maneira de fazê-la como música espontânea junto a outros seres humanos. Queiramos ou não, esta é uma necessidade.”
O pianista cubano Alfredo Rodriguez é uma unanimidade entre os críticos de jazz dos Estados Unidos. “Em uma simples melodia, suas linhas nítidas de bebop lembram as primeiras apresentações de Bill Evans no álbum Jazz Workshop, de George Russell, de meados dos anos 50”, escreveu cheio de comparações Don Heckman para a International Review of Music, de Oregon. Sua performance explosiva realmente impressiona. “Prefiro dizer que sou apenas um músico”, ele fala ao Estado, entendendo o jazz como um rótulo redutor de suas raízes afro cubanas absorvidas da música que lhe chegava de Camarões, Benin e Nigéria, três fortes correntes que soam em Havana. De fato, seu último álbum, Duologue, gravado como cantor Pedrito Martinez, tem uma forte presença africana até em uma versão feita para Thriller, de Michael Jackson. Ainda que sem saber para onde suas próximas notas devem seguir, ele diz: “Vivemos uma época diferente de anos como 1950, 1960, 1970 e os próprios 2000. Vamos mudando como a vida que nos rodeia. Por tudo o que estamos vivendo, a música também vai soar diferente.”
A lógica do jazz da especialização também estaria mais aberta a admitir talentos polivalentes sem entender um deles como mera função secundária? Camila Meza diz que George Benson norteou sua ideia de cantar e tocar guitarra sem sucatear nenhuma das áreas e sua xará nos Estados Unidos, a saxofonista e cantora Camille Thurman, 34 anos, uma aposta não só da crítica mas também de Wynton Marsalis, que a contratou para a sua orquestra de excelência do Jazz at Lincoln Center, respondeu assim quando perguntada de sua decisão sobre cantar mesmo depois de já ter se firmado como saxofonista. “Você só precisa fazer os dois da melhor maneira que puder.”
A geração de jazzistas da hiper informação parece se recusar a ser reduzida a apenas uma função. Miles Davis, Dizzy Gillespie e Louis Armstrong precisaram de apenas um trompete para mudar o mundo ou, ao menos, o mundo do jazz. Mas isso parece cada vez mais característica dos tempos em que a devoção às escolhas de um jazzista era algo de dimensão quase religiosa. Saxofonistas, trompetistas e pianistas entendiam que vinham ao mundo com uma missão e que deveriam saber de seus lugares para se restringir a eles. Uma vida apenas seria muito pouco para duas paixões vividas com genialidade.
Nduduzo Makhathini (pronuncia-se ignorando a primeira letra N) é um filósofo, professor e pianista sul-africano de 38 anos nascido na mística região de Umgungundlovu. Seus mestres são nomes do jazz sul-africano, como Bheki Mseleku, Moses Molelekwa e Abdullah Ibrahim, e, além de sua carreira em quarteto, sua atuação ocorre também no grupo do saxofonista Shabaka Hutchings, The Ancestors. Makhatini fez sua chegada ao Blue Note de Nova York em 2019 e logo foi convidado por Wynton Marsalis para se apresentar como convidado de sua orquestra.
Como prova de seu momento excepcional, a revista Downbeat deu cinco estrelas para seu álbum novo, Modes Of Communication: Letters From The Underworlds (Modos de Comunicação: Cartas do Submundo) e escreveu: “Estrela em ascensão do jazz sul-africano, Nduduzo Makhathini é um nome a ser observado.” Para Makhatini, não há pontos isolados no universo, o que explica que nenhuma formação humana se dá de forma independente e solta das outras. Em entrevista à emissora BBC, de Londres, ele disse: “Absorvemos a música como faríamos com uma história que está sendo contada.” O professor de física, o filósofo, o pianista e tudo o mais que quiser ser formarão, assim, um professor de física, um filósofo e um pianista muito melhores. E, ao que parece, ser uma pessoa melhor em vez de ser o melhor músico de todos os tempos pode se tornar uma característica das novas gerações.
Vídeos:
1. Shabaka Hutchings & The Ancestors, um os três trabalhos simultâneos do saxofonista inglês, é sempre carregado por uma aura misteriosa e mântrica. Go My Heart, Go To Heaven é um vídeo assustador e inquietante
O saxofonista polonês Kuba Wieçek quer retirar de seu instrumento apenas as notas que lhe sirvam para a criação daquele momento. Ele diz que não seguiu os mestres no início dos estudos e que a obrigatoriedade em tocar bebop na universidade o fez criar uma certa resistência ao gênero. Assim como Shabaka, sua música também se conecta com sua ancestralidade. Esse foi um de seus primeiros vídeos, de 2019.
Camille Thurman é uma saxofonista norte-americana seguidora das tradições do bebop. Mais recentemente, ela se lançou como cantora, desafiando uma lógica e alguns preconceitos do próprio meio.
Das tradições africanas de Cuba, o pianista Alfredo Rodriguez seguiu para fazer carreira e absorver as influências do jazz dos Estados Unidos. Sua técnica ágil e sua musicalidade explosiva fazem justiça a seu país de origem. Aqui, ele toca Besame Mucho no Montreux Jazz Festival de 2020.
O jazz sul africano tem o pianista Nduduzo Makhatini como uma de suas apostas. Filósofo e também professor, ele se apresenta em quarteto e também com o grupo The Ancestors, de Shabaka Hutchings
Veronica Swift, dos Estados Unidos, é uma das mais jovens apostas das publicações especializadas em jazz. Sua performance é evidentemente inspiurada pelas cantoras do jazz dos anos 30 e 40. Impossível não lembrar de Ella Fitzgerald. Aqui, ela aparece ao lado de Wynton Marsalis. Absolutamente imperdível.
A chilena Camila Meza tem uma formação com influências transparentes de guitarristas como George Benson e Pat Metheny. Sua voz e seu fraseado na guitarra são, contudo, cheios de originalidade