Vida de BB King foi a maior vitória do blues contra os racistas


No documentário gravado no Brasil em 2004 pelo diretor Ricardo Nauemberg, bluesman lembra de sua infância de abandono e do quanto desafiou a cultura de um país racista para se tornar uma majestade

Por Julio Maria
Atualização:

Um dos últimos bluesmen legítimos conhecidos mundialmente, B.B. King se foi em 2015, aos 89 anos, depois de trilhar uma impressionante trajetória. Hoje, só o também guitarrista Buddy Guy, 84 anos, pode lotar casas de shows longe de casa. Homem negro saído da região racista de Indianola, Mississippi, perdeu pai e mãe muito cedo, trabalhou nas lavouras de algodão para sobreviver, viveu sozinho dos 9 aos 14 anos, tocou nas ruas, apanhou por entrar em banheiros de brancos, ousou arranhar as cordas do violão de um reverendo deixado sobre a cama da casa em que vivia, migrou para fazer suas primeiras gravações em Memphis e se tornou uma lenda em vida. B.B. King veio muitas vezes ao Brasil e, ao menos em dez delas, se apresentou na casa de shows Bourbon Street Music Club, em Moema, se tornando o padrinho do estabelecimento. Generoso com jovens estudantes, paciente com jornalistas, recebeu muitos deles em suas vindas e deixou relatos cada vez mais importantes para se entender o legado do blues, a cultura afro-americana mais decisiva e onipresente na formação de todas as outras culturas populares ocidentais de massa, a partir do início do século 20.

Show de BB King no Centro de Convencoes Ulysses Guimaraes em Brasilia, em 2010. Foto: Celso Junior / Estadão

B.B. King, em sua visita de 2004, falou também ao produtor e diretor de cinema e TV Ricardo Nauenberg. O conteúdo com o áudio das entrevistas foi editado, juntamente com imagens de um show e cenas de arquivo das épocas narradas pelo músico, e transformado em um documentário. Dezessete anos depois da vinda do guitarrista, o filme Black, White and Blues pode ser visto a partir de amanhã, dia 1º, até domingo, 4 de julho. de forma gratuita na plataforma ZYX (www.zyx.solutions). Depois, ele permanece disponível ao preço de R$ 10.

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As músicas que surgem ao fundo da narração não são de B.B. King, algo que pode causar alguma estranheza inicial, e o guitarrista só aparece falando mesmo, em close, ao final do documentário. Mas, apesar de ele já ter contado muitas das histórias ao lado de David Ritz em sua ótima autobiografia Corpo e Alma do Blues, lançada no Brasil em 1999, o conteúdo é de enorme impacto ao ser narrado pelo próprio músico.

Ele fala de sua infância com bom humor, apesar dos tons que poderiam deixá-la trágica. Conta que, antes da morte da mãe, seu primeiro contato com um instrumento se deu na casa dos pais. Eles recebiam para jantares de domingo o reverendo Archie Fear, que sempre chegava com o mesmo violão que usava nas celebrações batistas que conduzia na igreja local. Quando a mesa estava posta, Fear deixava o instrumento na cama do quarto e B.B. King, então chamado pela família pelo nome de batismo, Riley, mexia em suas cordas. Até o dia em que foi surpreendido. “Ele me ensinou três acordes. Acordes que uso até hoje.” Era a sequência básica do blues, sobre a qual repousaria seus solos pelos próximos 80 anos.

B.B. King seguiu indo para a escola após a partida da mãe, mas trabalhou bastante para a mesma família. “Eu ia para a escola depois de ordenhar 20 vacas por dia.” Depois de aprender a dirigir um trator, ainda em Indianola, se tornou um popstar. “Um motorista de trator era como uma estrela na época”, conta, sorrindo. Foi quando passou a ganhar 22 dólares por semana, o que não era pouco, mas que logo seria menos do que passaria a receber tocando nas ruas para o espanto de passantes negros e brancos. “Isso me fez ter outro plano de vida.”

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Alguns traços da personalidade do guitarrista ficam evidentes em sua narrativa. Ao contrário do que se idealizou sobre sua imagem, B.B. King nunca foi um militante racial de liderar massas. Ele conta ter tido sempre mais simpatias pelo humanismo de Martin Luther King do que pelo belicismo de Malcom X e revela ter feito muitos shows para “arrecadar dinheiro para tirar pessoas da cadeia.” Seu engajamento era sua própria existência. Mesmo sem discursar nos palcos, sua aura pacifista desarmava os meninos brancos de cabelos compridos ao ponto de fazê-los todos lotarem um clube de blues em São Francisco.

Ao chegar para a apresentação e avistar a fila na porta, ele disse ao empresário: “Acho que estamos no lugar errado”. Mas não, era ali mesmo. Os jovens brancos norte-americanos, depois de ouvirem os ingleses do Who, dos Rolling Stones e dos Beatles falando de B.B. King, e ainda Eric Clapton, Jeff Beck, John Mayall, Animals, Jimmy Page e todos querendo ser B.B. King por ao menos alguns compassos, correram para saber quem era B.B. King. A história não deixa de ser triste: a validação do músico nos Estados Unidos só acontece depois de os brancos ingleses dizerem que ele prestava. A validação dos negros não bastava. Anos antes da noite em São Francisco, na qual B.B. King chorou copiosamente depois de ser apresentado com reverências reais no início do show, ele foi vaiado violentamente na mesma situação. Aquilo o destruiu. Além de ser negro, era um bluesman. E assim, ele conclui: “Se você é um músico de blues e é negro, é como se você fosse negro duas vezes”.

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O filme de Nauenberg, apesar de ter suas imagens captadas em 2004, atualiza-se no discurso de King. Um dos primeiros artistas a tocar para plateias mistas nos Estados Unidos, B.B. King sabia o valor de uma história bem contada. Ao receber jornalistas e jovens fãs, valorizava cada palavra por saber exatamente as dores do silêncio. Sua postura, para além das questões raciais embrenhadas em cada passo que dava, é também uma lição aos artistas encastelados. B.B. King tratava quem queria ouvi-lo com gratidão, jamais com desprezo. E a frase que diz ao final do filme Black, White and Blues é um ensinamento sublime: “Antigamente, ninguém queria ouvir o que eu tinha para dizer. Hoje, vocês tomaram um tempo para virem até aqui e conversar comigo. Eu queria agradecer por vocês terem feito isso”. Além de aprovar o filme, o artista pediu que ele fosse exibido no B.B. King Museum, um local em Indianola que tenta pagar uma parte ínfima da conta eterna com seu filho ao celebrar sua trajetória.

A noite em que foi vaiado em uma casa de shows dos Estados Unidos por ser negro se tornou um marco para Dr. King. Ao falar sobre ela, sua voz cai alguns tons. Assim que se recompôs no palco, lembra que olhou para seus músicos e começou a tocar Sweet Sexteen em lágrimas. Um de seus blues mais famosos é um lamento cortante, como em quase todos os blues, por uma mulher que se vai, deixando o amante em pedaços. Mas, naquela noite, uma das estrofes ganhou outro sentido.

King conta que, depois de ser vaiado, os versos a seguir foram cantados para os garotos que desdenharam de sua cor, de seu povo e de sua história: “Você pode me tratar mal, baby / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Você pode me tratar mal / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Mas, dia desses, baby / você vai dar um monte de dinheiro para ouvir alguém chamar meu nome”. As entradas para ver B.B. King, pagas por negros e brancos, poderiam passar dos R$ 1 mil em seus últimos shows.White 

Um dos últimos bluesmen legítimos conhecidos mundialmente, B.B. King se foi em 2015, aos 89 anos, depois de trilhar uma impressionante trajetória. Hoje, só o também guitarrista Buddy Guy, 84 anos, pode lotar casas de shows longe de casa. Homem negro saído da região racista de Indianola, Mississippi, perdeu pai e mãe muito cedo, trabalhou nas lavouras de algodão para sobreviver, viveu sozinho dos 9 aos 14 anos, tocou nas ruas, apanhou por entrar em banheiros de brancos, ousou arranhar as cordas do violão de um reverendo deixado sobre a cama da casa em que vivia, migrou para fazer suas primeiras gravações em Memphis e se tornou uma lenda em vida. B.B. King veio muitas vezes ao Brasil e, ao menos em dez delas, se apresentou na casa de shows Bourbon Street Music Club, em Moema, se tornando o padrinho do estabelecimento. Generoso com jovens estudantes, paciente com jornalistas, recebeu muitos deles em suas vindas e deixou relatos cada vez mais importantes para se entender o legado do blues, a cultura afro-americana mais decisiva e onipresente na formação de todas as outras culturas populares ocidentais de massa, a partir do início do século 20.

Show de BB King no Centro de Convencoes Ulysses Guimaraes em Brasilia, em 2010. Foto: Celso Junior / Estadão

B.B. King, em sua visita de 2004, falou também ao produtor e diretor de cinema e TV Ricardo Nauenberg. O conteúdo com o áudio das entrevistas foi editado, juntamente com imagens de um show e cenas de arquivo das épocas narradas pelo músico, e transformado em um documentário. Dezessete anos depois da vinda do guitarrista, o filme Black, White and Blues pode ser visto a partir de amanhã, dia 1º, até domingo, 4 de julho. de forma gratuita na plataforma ZYX (www.zyx.solutions). Depois, ele permanece disponível ao preço de R$ 10.

As músicas que surgem ao fundo da narração não são de B.B. King, algo que pode causar alguma estranheza inicial, e o guitarrista só aparece falando mesmo, em close, ao final do documentário. Mas, apesar de ele já ter contado muitas das histórias ao lado de David Ritz em sua ótima autobiografia Corpo e Alma do Blues, lançada no Brasil em 1999, o conteúdo é de enorme impacto ao ser narrado pelo próprio músico.

Ele fala de sua infância com bom humor, apesar dos tons que poderiam deixá-la trágica. Conta que, antes da morte da mãe, seu primeiro contato com um instrumento se deu na casa dos pais. Eles recebiam para jantares de domingo o reverendo Archie Fear, que sempre chegava com o mesmo violão que usava nas celebrações batistas que conduzia na igreja local. Quando a mesa estava posta, Fear deixava o instrumento na cama do quarto e B.B. King, então chamado pela família pelo nome de batismo, Riley, mexia em suas cordas. Até o dia em que foi surpreendido. “Ele me ensinou três acordes. Acordes que uso até hoje.” Era a sequência básica do blues, sobre a qual repousaria seus solos pelos próximos 80 anos.

B.B. King seguiu indo para a escola após a partida da mãe, mas trabalhou bastante para a mesma família. “Eu ia para a escola depois de ordenhar 20 vacas por dia.” Depois de aprender a dirigir um trator, ainda em Indianola, se tornou um popstar. “Um motorista de trator era como uma estrela na época”, conta, sorrindo. Foi quando passou a ganhar 22 dólares por semana, o que não era pouco, mas que logo seria menos do que passaria a receber tocando nas ruas para o espanto de passantes negros e brancos. “Isso me fez ter outro plano de vida.”

Alguns traços da personalidade do guitarrista ficam evidentes em sua narrativa. Ao contrário do que se idealizou sobre sua imagem, B.B. King nunca foi um militante racial de liderar massas. Ele conta ter tido sempre mais simpatias pelo humanismo de Martin Luther King do que pelo belicismo de Malcom X e revela ter feito muitos shows para “arrecadar dinheiro para tirar pessoas da cadeia.” Seu engajamento era sua própria existência. Mesmo sem discursar nos palcos, sua aura pacifista desarmava os meninos brancos de cabelos compridos ao ponto de fazê-los todos lotarem um clube de blues em São Francisco.

Ao chegar para a apresentação e avistar a fila na porta, ele disse ao empresário: “Acho que estamos no lugar errado”. Mas não, era ali mesmo. Os jovens brancos norte-americanos, depois de ouvirem os ingleses do Who, dos Rolling Stones e dos Beatles falando de B.B. King, e ainda Eric Clapton, Jeff Beck, John Mayall, Animals, Jimmy Page e todos querendo ser B.B. King por ao menos alguns compassos, correram para saber quem era B.B. King. A história não deixa de ser triste: a validação do músico nos Estados Unidos só acontece depois de os brancos ingleses dizerem que ele prestava. A validação dos negros não bastava. Anos antes da noite em São Francisco, na qual B.B. King chorou copiosamente depois de ser apresentado com reverências reais no início do show, ele foi vaiado violentamente na mesma situação. Aquilo o destruiu. Além de ser negro, era um bluesman. E assim, ele conclui: “Se você é um músico de blues e é negro, é como se você fosse negro duas vezes”.

O filme de Nauenberg, apesar de ter suas imagens captadas em 2004, atualiza-se no discurso de King. Um dos primeiros artistas a tocar para plateias mistas nos Estados Unidos, B.B. King sabia o valor de uma história bem contada. Ao receber jornalistas e jovens fãs, valorizava cada palavra por saber exatamente as dores do silêncio. Sua postura, para além das questões raciais embrenhadas em cada passo que dava, é também uma lição aos artistas encastelados. B.B. King tratava quem queria ouvi-lo com gratidão, jamais com desprezo. E a frase que diz ao final do filme Black, White and Blues é um ensinamento sublime: “Antigamente, ninguém queria ouvir o que eu tinha para dizer. Hoje, vocês tomaram um tempo para virem até aqui e conversar comigo. Eu queria agradecer por vocês terem feito isso”. Além de aprovar o filme, o artista pediu que ele fosse exibido no B.B. King Museum, um local em Indianola que tenta pagar uma parte ínfima da conta eterna com seu filho ao celebrar sua trajetória.

A noite em que foi vaiado em uma casa de shows dos Estados Unidos por ser negro se tornou um marco para Dr. King. Ao falar sobre ela, sua voz cai alguns tons. Assim que se recompôs no palco, lembra que olhou para seus músicos e começou a tocar Sweet Sexteen em lágrimas. Um de seus blues mais famosos é um lamento cortante, como em quase todos os blues, por uma mulher que se vai, deixando o amante em pedaços. Mas, naquela noite, uma das estrofes ganhou outro sentido.

King conta que, depois de ser vaiado, os versos a seguir foram cantados para os garotos que desdenharam de sua cor, de seu povo e de sua história: “Você pode me tratar mal, baby / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Você pode me tratar mal / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Mas, dia desses, baby / você vai dar um monte de dinheiro para ouvir alguém chamar meu nome”. As entradas para ver B.B. King, pagas por negros e brancos, poderiam passar dos R$ 1 mil em seus últimos shows.White 

Um dos últimos bluesmen legítimos conhecidos mundialmente, B.B. King se foi em 2015, aos 89 anos, depois de trilhar uma impressionante trajetória. Hoje, só o também guitarrista Buddy Guy, 84 anos, pode lotar casas de shows longe de casa. Homem negro saído da região racista de Indianola, Mississippi, perdeu pai e mãe muito cedo, trabalhou nas lavouras de algodão para sobreviver, viveu sozinho dos 9 aos 14 anos, tocou nas ruas, apanhou por entrar em banheiros de brancos, ousou arranhar as cordas do violão de um reverendo deixado sobre a cama da casa em que vivia, migrou para fazer suas primeiras gravações em Memphis e se tornou uma lenda em vida. B.B. King veio muitas vezes ao Brasil e, ao menos em dez delas, se apresentou na casa de shows Bourbon Street Music Club, em Moema, se tornando o padrinho do estabelecimento. Generoso com jovens estudantes, paciente com jornalistas, recebeu muitos deles em suas vindas e deixou relatos cada vez mais importantes para se entender o legado do blues, a cultura afro-americana mais decisiva e onipresente na formação de todas as outras culturas populares ocidentais de massa, a partir do início do século 20.

Show de BB King no Centro de Convencoes Ulysses Guimaraes em Brasilia, em 2010. Foto: Celso Junior / Estadão

B.B. King, em sua visita de 2004, falou também ao produtor e diretor de cinema e TV Ricardo Nauenberg. O conteúdo com o áudio das entrevistas foi editado, juntamente com imagens de um show e cenas de arquivo das épocas narradas pelo músico, e transformado em um documentário. Dezessete anos depois da vinda do guitarrista, o filme Black, White and Blues pode ser visto a partir de amanhã, dia 1º, até domingo, 4 de julho. de forma gratuita na plataforma ZYX (www.zyx.solutions). Depois, ele permanece disponível ao preço de R$ 10.

As músicas que surgem ao fundo da narração não são de B.B. King, algo que pode causar alguma estranheza inicial, e o guitarrista só aparece falando mesmo, em close, ao final do documentário. Mas, apesar de ele já ter contado muitas das histórias ao lado de David Ritz em sua ótima autobiografia Corpo e Alma do Blues, lançada no Brasil em 1999, o conteúdo é de enorme impacto ao ser narrado pelo próprio músico.

Ele fala de sua infância com bom humor, apesar dos tons que poderiam deixá-la trágica. Conta que, antes da morte da mãe, seu primeiro contato com um instrumento se deu na casa dos pais. Eles recebiam para jantares de domingo o reverendo Archie Fear, que sempre chegava com o mesmo violão que usava nas celebrações batistas que conduzia na igreja local. Quando a mesa estava posta, Fear deixava o instrumento na cama do quarto e B.B. King, então chamado pela família pelo nome de batismo, Riley, mexia em suas cordas. Até o dia em que foi surpreendido. “Ele me ensinou três acordes. Acordes que uso até hoje.” Era a sequência básica do blues, sobre a qual repousaria seus solos pelos próximos 80 anos.

B.B. King seguiu indo para a escola após a partida da mãe, mas trabalhou bastante para a mesma família. “Eu ia para a escola depois de ordenhar 20 vacas por dia.” Depois de aprender a dirigir um trator, ainda em Indianola, se tornou um popstar. “Um motorista de trator era como uma estrela na época”, conta, sorrindo. Foi quando passou a ganhar 22 dólares por semana, o que não era pouco, mas que logo seria menos do que passaria a receber tocando nas ruas para o espanto de passantes negros e brancos. “Isso me fez ter outro plano de vida.”

Alguns traços da personalidade do guitarrista ficam evidentes em sua narrativa. Ao contrário do que se idealizou sobre sua imagem, B.B. King nunca foi um militante racial de liderar massas. Ele conta ter tido sempre mais simpatias pelo humanismo de Martin Luther King do que pelo belicismo de Malcom X e revela ter feito muitos shows para “arrecadar dinheiro para tirar pessoas da cadeia.” Seu engajamento era sua própria existência. Mesmo sem discursar nos palcos, sua aura pacifista desarmava os meninos brancos de cabelos compridos ao ponto de fazê-los todos lotarem um clube de blues em São Francisco.

Ao chegar para a apresentação e avistar a fila na porta, ele disse ao empresário: “Acho que estamos no lugar errado”. Mas não, era ali mesmo. Os jovens brancos norte-americanos, depois de ouvirem os ingleses do Who, dos Rolling Stones e dos Beatles falando de B.B. King, e ainda Eric Clapton, Jeff Beck, John Mayall, Animals, Jimmy Page e todos querendo ser B.B. King por ao menos alguns compassos, correram para saber quem era B.B. King. A história não deixa de ser triste: a validação do músico nos Estados Unidos só acontece depois de os brancos ingleses dizerem que ele prestava. A validação dos negros não bastava. Anos antes da noite em São Francisco, na qual B.B. King chorou copiosamente depois de ser apresentado com reverências reais no início do show, ele foi vaiado violentamente na mesma situação. Aquilo o destruiu. Além de ser negro, era um bluesman. E assim, ele conclui: “Se você é um músico de blues e é negro, é como se você fosse negro duas vezes”.

O filme de Nauenberg, apesar de ter suas imagens captadas em 2004, atualiza-se no discurso de King. Um dos primeiros artistas a tocar para plateias mistas nos Estados Unidos, B.B. King sabia o valor de uma história bem contada. Ao receber jornalistas e jovens fãs, valorizava cada palavra por saber exatamente as dores do silêncio. Sua postura, para além das questões raciais embrenhadas em cada passo que dava, é também uma lição aos artistas encastelados. B.B. King tratava quem queria ouvi-lo com gratidão, jamais com desprezo. E a frase que diz ao final do filme Black, White and Blues é um ensinamento sublime: “Antigamente, ninguém queria ouvir o que eu tinha para dizer. Hoje, vocês tomaram um tempo para virem até aqui e conversar comigo. Eu queria agradecer por vocês terem feito isso”. Além de aprovar o filme, o artista pediu que ele fosse exibido no B.B. King Museum, um local em Indianola que tenta pagar uma parte ínfima da conta eterna com seu filho ao celebrar sua trajetória.

A noite em que foi vaiado em uma casa de shows dos Estados Unidos por ser negro se tornou um marco para Dr. King. Ao falar sobre ela, sua voz cai alguns tons. Assim que se recompôs no palco, lembra que olhou para seus músicos e começou a tocar Sweet Sexteen em lágrimas. Um de seus blues mais famosos é um lamento cortante, como em quase todos os blues, por uma mulher que se vai, deixando o amante em pedaços. Mas, naquela noite, uma das estrofes ganhou outro sentido.

King conta que, depois de ser vaiado, os versos a seguir foram cantados para os garotos que desdenharam de sua cor, de seu povo e de sua história: “Você pode me tratar mal, baby / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Você pode me tratar mal / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Mas, dia desses, baby / você vai dar um monte de dinheiro para ouvir alguém chamar meu nome”. As entradas para ver B.B. King, pagas por negros e brancos, poderiam passar dos R$ 1 mil em seus últimos shows.White 

Um dos últimos bluesmen legítimos conhecidos mundialmente, B.B. King se foi em 2015, aos 89 anos, depois de trilhar uma impressionante trajetória. Hoje, só o também guitarrista Buddy Guy, 84 anos, pode lotar casas de shows longe de casa. Homem negro saído da região racista de Indianola, Mississippi, perdeu pai e mãe muito cedo, trabalhou nas lavouras de algodão para sobreviver, viveu sozinho dos 9 aos 14 anos, tocou nas ruas, apanhou por entrar em banheiros de brancos, ousou arranhar as cordas do violão de um reverendo deixado sobre a cama da casa em que vivia, migrou para fazer suas primeiras gravações em Memphis e se tornou uma lenda em vida. B.B. King veio muitas vezes ao Brasil e, ao menos em dez delas, se apresentou na casa de shows Bourbon Street Music Club, em Moema, se tornando o padrinho do estabelecimento. Generoso com jovens estudantes, paciente com jornalistas, recebeu muitos deles em suas vindas e deixou relatos cada vez mais importantes para se entender o legado do blues, a cultura afro-americana mais decisiva e onipresente na formação de todas as outras culturas populares ocidentais de massa, a partir do início do século 20.

Show de BB King no Centro de Convencoes Ulysses Guimaraes em Brasilia, em 2010. Foto: Celso Junior / Estadão

B.B. King, em sua visita de 2004, falou também ao produtor e diretor de cinema e TV Ricardo Nauenberg. O conteúdo com o áudio das entrevistas foi editado, juntamente com imagens de um show e cenas de arquivo das épocas narradas pelo músico, e transformado em um documentário. Dezessete anos depois da vinda do guitarrista, o filme Black, White and Blues pode ser visto a partir de amanhã, dia 1º, até domingo, 4 de julho. de forma gratuita na plataforma ZYX (www.zyx.solutions). Depois, ele permanece disponível ao preço de R$ 10.

As músicas que surgem ao fundo da narração não são de B.B. King, algo que pode causar alguma estranheza inicial, e o guitarrista só aparece falando mesmo, em close, ao final do documentário. Mas, apesar de ele já ter contado muitas das histórias ao lado de David Ritz em sua ótima autobiografia Corpo e Alma do Blues, lançada no Brasil em 1999, o conteúdo é de enorme impacto ao ser narrado pelo próprio músico.

Ele fala de sua infância com bom humor, apesar dos tons que poderiam deixá-la trágica. Conta que, antes da morte da mãe, seu primeiro contato com um instrumento se deu na casa dos pais. Eles recebiam para jantares de domingo o reverendo Archie Fear, que sempre chegava com o mesmo violão que usava nas celebrações batistas que conduzia na igreja local. Quando a mesa estava posta, Fear deixava o instrumento na cama do quarto e B.B. King, então chamado pela família pelo nome de batismo, Riley, mexia em suas cordas. Até o dia em que foi surpreendido. “Ele me ensinou três acordes. Acordes que uso até hoje.” Era a sequência básica do blues, sobre a qual repousaria seus solos pelos próximos 80 anos.

B.B. King seguiu indo para a escola após a partida da mãe, mas trabalhou bastante para a mesma família. “Eu ia para a escola depois de ordenhar 20 vacas por dia.” Depois de aprender a dirigir um trator, ainda em Indianola, se tornou um popstar. “Um motorista de trator era como uma estrela na época”, conta, sorrindo. Foi quando passou a ganhar 22 dólares por semana, o que não era pouco, mas que logo seria menos do que passaria a receber tocando nas ruas para o espanto de passantes negros e brancos. “Isso me fez ter outro plano de vida.”

Alguns traços da personalidade do guitarrista ficam evidentes em sua narrativa. Ao contrário do que se idealizou sobre sua imagem, B.B. King nunca foi um militante racial de liderar massas. Ele conta ter tido sempre mais simpatias pelo humanismo de Martin Luther King do que pelo belicismo de Malcom X e revela ter feito muitos shows para “arrecadar dinheiro para tirar pessoas da cadeia.” Seu engajamento era sua própria existência. Mesmo sem discursar nos palcos, sua aura pacifista desarmava os meninos brancos de cabelos compridos ao ponto de fazê-los todos lotarem um clube de blues em São Francisco.

Ao chegar para a apresentação e avistar a fila na porta, ele disse ao empresário: “Acho que estamos no lugar errado”. Mas não, era ali mesmo. Os jovens brancos norte-americanos, depois de ouvirem os ingleses do Who, dos Rolling Stones e dos Beatles falando de B.B. King, e ainda Eric Clapton, Jeff Beck, John Mayall, Animals, Jimmy Page e todos querendo ser B.B. King por ao menos alguns compassos, correram para saber quem era B.B. King. A história não deixa de ser triste: a validação do músico nos Estados Unidos só acontece depois de os brancos ingleses dizerem que ele prestava. A validação dos negros não bastava. Anos antes da noite em São Francisco, na qual B.B. King chorou copiosamente depois de ser apresentado com reverências reais no início do show, ele foi vaiado violentamente na mesma situação. Aquilo o destruiu. Além de ser negro, era um bluesman. E assim, ele conclui: “Se você é um músico de blues e é negro, é como se você fosse negro duas vezes”.

O filme de Nauenberg, apesar de ter suas imagens captadas em 2004, atualiza-se no discurso de King. Um dos primeiros artistas a tocar para plateias mistas nos Estados Unidos, B.B. King sabia o valor de uma história bem contada. Ao receber jornalistas e jovens fãs, valorizava cada palavra por saber exatamente as dores do silêncio. Sua postura, para além das questões raciais embrenhadas em cada passo que dava, é também uma lição aos artistas encastelados. B.B. King tratava quem queria ouvi-lo com gratidão, jamais com desprezo. E a frase que diz ao final do filme Black, White and Blues é um ensinamento sublime: “Antigamente, ninguém queria ouvir o que eu tinha para dizer. Hoje, vocês tomaram um tempo para virem até aqui e conversar comigo. Eu queria agradecer por vocês terem feito isso”. Além de aprovar o filme, o artista pediu que ele fosse exibido no B.B. King Museum, um local em Indianola que tenta pagar uma parte ínfima da conta eterna com seu filho ao celebrar sua trajetória.

A noite em que foi vaiado em uma casa de shows dos Estados Unidos por ser negro se tornou um marco para Dr. King. Ao falar sobre ela, sua voz cai alguns tons. Assim que se recompôs no palco, lembra que olhou para seus músicos e começou a tocar Sweet Sexteen em lágrimas. Um de seus blues mais famosos é um lamento cortante, como em quase todos os blues, por uma mulher que se vai, deixando o amante em pedaços. Mas, naquela noite, uma das estrofes ganhou outro sentido.

King conta que, depois de ser vaiado, os versos a seguir foram cantados para os garotos que desdenharam de sua cor, de seu povo e de sua história: “Você pode me tratar mal, baby / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Você pode me tratar mal / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Mas, dia desses, baby / você vai dar um monte de dinheiro para ouvir alguém chamar meu nome”. As entradas para ver B.B. King, pagas por negros e brancos, poderiam passar dos R$ 1 mil em seus últimos shows.White 

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