A inteligência artificial mostra, a cada dia, que é possível fazer mais do que se imaginava. Nesta terça-feira, 4, um comercial que trouxe a cantora Elis Regina fazendo um dueto ao lado da filha, Maria Rita, tomou conta das redes sociais. Enquanto a publicidade emocionou alguns, outros passaram a discutir o limite da utilização da voz e da imagem de artistas que já morreram.
O Estadão já havia adiantado a discussão sobre a prática que vem crescendo com o avanço da tecnologia em junho. Nas redes sociais, criadores já mostram que é possível fazer com que qualquer artista cante a música que mais se deseja.
Após o lançamento do comercial com Elis, a internet se dividiu. Enquanto internautas elogiaram a possibilidade de que a cantora pudesse fazer um dueto com Maria Rita – ela tinha apenas quatro anos quando a artista morreu, em 1982 –, outros enxergaram os perigos da tecnologia.
“Eu sou absolutamente contra o uso de qualquer pessoa que já morreu em propaganda de empresa bilionária. Acho um escárnio com a memória da pessoa, que não está ali para aprovar ou não aquilo e, pior, sendo usada de forma comercial”, pontuou um internauta.
“Que coisa mais linda essa campanha”, elogiou outro. “Colocaram a Maria Rita e a Elis Regina para cantarem juntas e eu já comecei o dia chorando”, completou.
No caso de Elis, a inteligência artificial foi usada para recriar sua imagem em vídeo, já que a voz cantando Como nossos pais já estava registrada. Mesmo assim, ela se insere em um fenômeno atual nas redes: os “duetos” de cantores mortos com outros vivos, recriados com tecnologia.
O influenciador Lamerazi, de 29 anos, por exemplo, recria vozes e artistas marcantes do sertanejo em parcerias com cantores ainda em atividade . As postagens, geralmente feitas no TikTok, que mais viralizam são aquelas que trazem a voz de Marília Mendonça. Uma em que a Rainha da Sofrência canta com Ana Castela, por exemplo, soma 1,3 milhão de visualizações.
O usuário do Twitter que prefere se identificar como Jefinho também viralizou com uma criação feita com a voz de Renato Russo. Recentemente, ele havia feito uma brincadeira com uma versão de Batom de Cereja, música da dupla Israel e Rodolffo, cantada pelo vocalista do Legião Urbana.
Apesar de ter feito o experimento em tom de brincadeira e ter colocado vários avisos ao longo do trecho de que a música era feita por IA, a publicação de Jefinho tomou proporções que ele não imaginava. A recriação chegou até Giuliano Manfredini, filho do cantor e responsável pela Legião Urbana Produções, empresa que gerencia o espólio da banda e o material do artista.
Em comunicado enviado ao Estadão, a empresa de Manfredini disse que está avaliando providências jurídicas sobre o caso em conjunto com a gravadora Universal. O trecho da canção já foi retirado do ar.
“Sobre as músicas criadas por inteligência artificial na voz do Renato Russo, nós da Legião Urbana Produções Artísticas tomamos conhecimento do caso e entramos em contato com a gravadora Universal, que nos encaminhou para o departamento jurídico e o mesmo está avaliando que providências são cabíveis.”
Em nota também enviada à reportagem, Jefinho reforçou que a recriação foi feita em tom de brincadeira e sem o objetivo de recriar uma obra musical “de verdade”. Leia na íntegra:
“É uma brincadeira, obviamente. A ideia é justamente imaginar algo com o timbre do Renato e tentando performar parecido com ele, obviamente imaginando algo que ele jamais faria. Foram 30 e poucos segundos, cheio de avisos que era gerado por inteligência artificial, uma experimentação para mostrar o que a IA era capaz. Não creio que alguém realmente tenha levado isso a sério ou até mesmo tenha ‘apreciado’ aquilo como uma apresentação musical ‘de verdade’.”
Criações por inteligência artificial envolvem treinamento de máquina
Lamerazi explica que as canções são feitas através de uma técnica que envolve treinamento de máquina, ou machine learning. O algoritmo do programa que utiliza é alimentado por arquivos de voz.
No caso de Renato Russo, Jefinho comenta que escolheu o cantor pela grande quantidade de material disponibilizada de entrevistas do artista na internet. “O Renato tem muito material de entrevista, e o treinamento da IA fica melhor com fala e música”, diz.
O comercial de Elis, porém, não envolveu o uso da voz da cantora. Ela já imortalizou o clássico Como Nossos Pais, de Belchior, em gravações anteriores. A técnica também utilizou o treinamento de máquina, mas, neste caso, para copiar expressões. A prática é chamada de “deepfake”.
Os publicitários utilizaram uma dublê de corpo para simular os movimentos da artista. Após, o rosto e as expressões dela foram encaixados para que ela parecesse interagir com Maria Rita.
Prática esbarra em direitos autorais
O comercial com Elis teve autorização da família, mas a popularização da inteligência artificial suscita debates sobre direitos autorais. A recriação das vozes e da imagem de artistas esbarra em direitos conexos, uma das facetas do direito autoral, como explica o advogado Daniel Campello.
Segundo Campello, os direitos conexos envolvem um viés moral, já que protegem os cantores de terem as vozes modificadas ou reutilizadas sem autorização expressa. O advogado diz que ainda há o direito patrimonial da gravação, o que também exige uma autorização da produtora fonográfica ou gravadora para que a voz seja usada.
Em relação a artistas que já morreram, o direito patrimonial tem “prazo de validade” e dura entre 50 e 70 anos, a depender do país, após o lançamento do fonograma contendo a voz do artista. Os direitos morais, porém, jamais terminam.
Contudo, para o advogado, a tecnologia não é inimiga dos seres humanos e das criações artísticas. A inteligência artificial pode facilitar processos que demandam uma repetição de tarefas padronizáveis. No caso das músicas, a IA pode ajudar na composição de novas melodias e letras e produção de batidas, por exemplo.
“Não significa que o uso da IA como ferramenta seja algo negativo ou reprovável, muito ao contrário. Entendo que esse novo aspecto da tecnologia já está revolucionando nossa indústria com transformações com alto grau de disrupção”, comenta Campello.
Debater a ética que inclui o uso da tecnologia não é tarefa fácil. Jefinho comenta sobre um comercial da Coca-Cola criada por inteligência artificial e se posiciona contra o uso da IA para fins comerciais. “Aquilo usou o trabalho de outros artistas que não foram remunerados”, diz.
Lamerazi também enxerga a IA como “uma ferramenta potencialmente perigosa”. Ele relata já ter recebido propostas de seguidores para recriar recados com vozes de parentes mortos, por exemplo, e, por esse motivo, sempre tenta colocar limites a suas criações. “Eu fico um pouco pensativo. Porque, e se o ser humano acabar se acostumando com isso, não vencer o período de luto e coisas desse tipo?”, questiona.
Para Campello, a solução para o bom uso da tecnologia é “criar limites para que a criação humana seja sempre privilegiada”. “Criações humanas com alta carga de complexidade e criatividade jamais poderão ser substituídas por IA. Ou alguém crê que um robô pode criar uma obra-prima como Garota de Ipanema, uma das músicas mais conhecidas e regravadas da história da música?”, diz.
Há também uma lacuna de adaptações nas leis em relação às novas tecnologias. “A legislação brasileira não está adaptada sequer ao mundo das plataformas de streaming, muito menos para as questões de inteligência artificial”, aponta Campello.
O advogado comenta que uma reforma na legislação permitiria que o Brasil fizesse até um uso positivo do recurso. “Precisamos adaptar rapidamente nosso ambiente legal para podermos surfar nessa onda de forma positiva e com a proteção devida à criação humana”, diz.
O Estadão entrou em contato com a assessoria da cantora Maria Rita, mas ela preferiu não comentar a escolha do uso da imagem de Elis na peça publicitária.
*Estagiária sob supervisão de Charlise de Morais