Quando o mundo somava quase sete meses em regime de isolamento, em outubro de 2020, o produtor Marco Mazzola conseguiu realizar um dos mais originais projetos online da era pandêmica. A uma população de amantes do jazz, que sofria sinais de abstinência de uma das expressões que mais dependem de presenças físicas para acontecer, convenceu os donos da marca suíça Montreux Jazz Festival e fez o que nem a matriz ousou fazer: uma segunda edição do evento no Rio, sediada em um hotel que garantisse uma bela vista da orla que o mundo se acostumou a ver. Contou com uma base nos Estados Unidos, de onde os artistas que não podiam viajar fariam seus shows, e levou para o Fairmont Copacabana nomes que já estavam no Brasil. Stanley Jordan, no País, se uniu ao guitarrista Diego Figueiredo; o grupo vocal gospel Sing Harlem fez sua homenagem a Milton Nascimento dos Estados Unidos e Milton a respondeu daqui; Letieres Leite compareceu com sua Orkestra Rumpilezz e Toquinho e Yamandú Costa cruzaram seus violões.
O show de Yamandú e Toquinho, feito em 25 de outubro de 2020, mesmo sem grandes planejamentos e depois de apenas dois ensaios, será lançado em áudio nesta sexta, 21. “Não há pretensão alguma em fazer sucesso com isso”, diz Yamandú ao Estadão, de Lisboa, onde vive desde dezembro de 2020. “O que fizemos foi uma grande homenagem ao violão brasileiro, mais do que às nossas carreiras.” Surpreso com a decisão do lançamento, Toquinho também tirou o foco de qualquer cerimonial. “Se soubesse que seria lançado, eu teria ensaiado mais”, disse, rindo.
São dez temas nos quais se revezam os representantes de duas gerações e escolas de violões tão diferentes, e este parece ser um ponto que fica interessante ao vivo. Eles só se encontram mesmo em quatro momentos: Apelo (de Baden Powell e Vinicius de Moraes, de 1966); no choro Odeon (Ernesto Nazareth, de 1909, com letra que Vinicius foi colocar só em 1968); em Tua Imagem (de Canhoto da Paraíba, de 1968); e na música Bachianinha nº 1 (do mestre de Toquinho, Paulinho Nogueira, feita em 1965). Em outros temas, fazem suas performances solo: Toquinho nas caymmianas O Bem do Mar ligado a Saudade da Bahia e em Asa Branca, e Yamandú em A Legrand, feita ao francês Michel Legrand mas inédita em gravações; além de Porro e Sarará.
Por vezes, há um pouco de Yamandú em Toquinho quando se ouve a abertura de O Bem do Mar. Sua mão direita vem mais pesada na intensidade com que age sobre as cordas, tão marcante nas explosões do amigo gaúcho. A voz de seu violão, algo entendido logo no início de suas aulas, ainda menino, com o professor Paulinho Nogueira, e que se tornou uma marca antes mesmo que ele virasse o compositor consagrado por parcerias – Jorge Ben, Chico Buarque, Vinicius –, se faz muito das melodias tocadas ao mesmo tempo em que os acordes que encadeia como um mestre. O violão de Toquinho é das canções, das harmonias, e não dos solos, o que não o torna menor. Mas o clima do espontâneo que se vê em sua passagem por Montreux cobra um preço. Nem todas as frases chegam limpas e os andamentos podem se apressar. Coisas das apostas nas quais mais valem as amizades e o sabor do momento do que o peso da exatidão.
A origem de Yamandú, bem mais ao sul do paulistano Toquinho, vem da confluência de argentinos, gaúchos e mouros. O choro do Sudeste só chegou depois. Sim, ele diz, a colonização árabe em território gaúcho é percebida. “A relação com o cavalo, o assado, temos muito desses resquícios.” E, na música, ele se reconhece agora ainda mais, respirando os ares de Lisboa. Seu violão de personalidade flamenca e cigana parece procurar sempre o espetáculo, algo que o difere da sobriedade de Raphael Rabello, e não se doma por partituras que, aliás, ele não lê. O outro lado de quem mantém uma temperatura sempre elevada em sua performance talvez esteja nos efêmeros tempos na delicadeza e na pouca capacidade de permanência nos campos da contemplação. O violão de Yamandú, como um bailarino espanhol, quer sempre os aplausos depois de um grand finale.
Sua vivência ibérica vai render um primeiro projeto a ser divulgado a partir do próximo dia 12. Caminantes é um álbum gravado em trio, com seu violão de sete cordas, a guitarra portuguesa do lusitano Luis Guerreiro, um virtuoso expoente da música moderna portuguesa que já esteve com a cantora Mariza em grandes salas de concerto do mundo, e o bandoneon do argentino Martin Sued, também de digitações ágeis e frases longas. Um álbum autoral que mostra uma outra matriz racial pouco falada, mas muito formadora da linguagem brasileira não ligada diretamente à África. A música peninsular de Yamandú, Sued e Guerreiro mostra como o fado, o tango e a milonga saem, ao final, de uma mesma mãe.