São mesmo 50 anos? Ou quase 50? Depende do ponto de vista. Em 1967, Gil e Caetano denominavam de Som Universal o que não passava de um rascunho em relação ao que pretendiam com Domingo no Parque e Alegria, Alegria no Festival da TV Record. O batismo definitivo – Tropicália – vingou no início do ano seguinte. Em 2017, festeja-se o que se viu no palco. E o que se viu no palco era Tropicalismo.
Domingo no Parque tal qual se conhece é um caso típico de fonograma que substitui a partitura como registro de música. A versão que eu ouvira cantada por Gil, voz e violão, semanas antes no apartamento de meu vizinho Guilherme Araújo era totalmente diferente daquilo que a plateia aplaudiria no Festival de 67.
Este era o som do fonograma, gravado dias antes do público a conhecer, enquanto a versão demo de voz e violão era o som da partitura. Talvez por isso Gil ainda tivesse dúvida sobre qual inscrever: “Domingo ou o frevo?” indagou-me após cantar as duas. Os que julgam a performance do festival como data do nascimento avaliam primordialmente os dois fonogramas que quando apresentados no Teatro da TV Record representam o berço sonoro do Tropicalismo. Com o arranjo de Rogério Duprat, a original participação dos Mutantes, o contraste entre o berimbau e a guitarra elétrica na linha de frente, os ruídos e o vozerio do parque de diversões, a performance de Gil, foi mesmo uma sensação. Eram os novos elementos de um novo tipo de fonograma.
Quando no palco, a trama dos três personagens que acaba em tragédia foi brilhantemente superada com os eeehs finais de Gil levantando empolgado os braços abertos num gesto festivo que pulverizou a facada mortal da última cena.
Alegria certamente passou por um processo semelhante com a inclusão dos Beat Boys. A gravação em estúdio era o fonograma. No palco, a atitude impassível dos quatro músicos – ressaltada pela postura imperturbável do tecladista Toyo com semblante de Jesus Cristo – era a antítese do agito num grupo de rock, combinando com a tranquilidade da interpretação de Caetano. Caetano suplantou possíveis reações dos tradicionalistas e até dos roqueiristas.
Desse modo, Gil e Caetano ganharam a plateia indócil e heterogênea recebendo aplausos vibrantes em suas apresentações inusitadas que resumiam uma ideia nova na música brasileira. Uma nova estética consagrada à primeira vista, denotando o quanto combinava com o que pensava o grupo de jovens que soube entendê-la mal surgia. É possível que até os experientes jurados tenham se assustado com tal receptividade que provava ter a moçada sabido compreender tão rapidamente as duas grandes novidades do maior festival de todos os tempos.
Isso não estava no programa nem costumava acontecer. Mesmo anos depois, Arrigo Barnabé com Sabor de Veneno e Walter Franco com Cabeça ouviriam vaias inclementes.
Se “a mistura tropicalista notabilizou-se como uma forma sui generis de inserção histórica no processo de revisão cultural”, como afirma o professor Celso Favaretto, o LP Tropicália ou Panis et Circensis representa um dos casos mais expressivos na canção brasileira da criação de “música de montagem”, a expressão da premiada tese do professor Sergio Molina que define “o processo da construção na música popular”.
Com produção de Manuel Barenbein, o mais solicitado nos discos do período, o LP não tinha intervalo entre suas 12 canções tal qual Sgt. Pepper’s dos Beatles. É o que pode aproximá-los de uma suíte. Mais importante porém, sua feitura passou por procedimentos semelhantes, os acréscimos só possíveis com a multiplicação dos canais na gravação em fita.
Recursos acumulados em estúdio aos fonogramas possibilitaram inovações como a superposição de sons exóticos e não musicais, a inversão da rolagem da fita, a alteração de sua velocidade, a modificação do timbre de voz, a adição de sons eletronicamente produzidos por sintetizadores que no seu conjunto resultaram numa nova configuração: incorporava-se ao fonograma sonoridades a mais que a de músicos e cantores.
O Tropicalismo era um projeto ambicioso. Viu-se aos poucos que a estética da canção tropicalista se integrava com as demais manifestações artísticas que, antes mesmo de ir de encontro à repressão política do regime militar como as mais significativas canções de festival, representava uma inquietação existente também no teatro (O Rei da Vela), no cinema (Terra em Transe), na literatura (poesia concreta e ensaios como Kuarup e Panamerica) e nas artes plásticas (instalação de Helio Oiticica no MAM do Rio).
O Tropicalismo desmontou preconceitos e permitiu a coexistência do arcaico com o moderno adotando avanços tecnológicos como na arte construtivista que, para ser aproveitada com prazer, exigia uma decodificação a que muitos músicos do período anterior ainda não tinham se acostumado. Era a razão para a sua rejeição inicial.
Tinha o Tropicalismo um cunho nacionalista que tentava romper de alguma forma com o caráter político em voga nos versos de protesto, velado ou não, contra a ditadura militar. Tal como o de outra obra-prima, Ponteio, a canção vitoriosa de Edu Lobo e Capinam. A nova estética musical causou reação. A favor e contra.
Quando a empresa têxtil Rhodia se aproximou do Tropicalismo para promover seus tecidos, abriu-se um precedente. Reprovou-se o vínculo da moda a um movimento cultural. O perigo da banalização foi duramente criticado por Helio Oiticica, ao constatar que a nova estética musical tinha virado moda ligada ao consumismo internacional. Mas era o Tropicalismo supostamente independente do consumismo? Ou não? Há indícios que estava nas entrelinhas do projeto.
“Parece que com o próximo festival, ou logo depois, deve surgir um novo tipo de música brasileira”, confidenciou-me Gil em 30 de agosto de 1967, precisamente um mês antes da primeira eliminatória do 3.º Festival da TV Record, aquele que consagrou dois novos personagens: as vaias e as guitarras. Não deu outra.***ZUZA HOMEM DE MELLO ÉPESQUISADOR E CRÍTICO MUSICAL