Nella Larsen e Maria Firmina dos Reis ganham status de clássicos da literatura


Homenageada da Flip de 2022, brasileira e norte-americana escreveram sobre a questão racial e se tornaram referências

Por Giovana Proença
Atualização:

Quando Irene Redfield, a protagonista do romance De Passagem, recebe uma carta assinada por Clare Kendry, as memórias de uma conturbada amizade vêm à tona. A vivacidade do Harlem encanta Clare, de modo que ela passa a estreitar cada vez mais os laços com Irene, na tentativa de retomar uma intimidade outrora perdida. O segundo romance da escritora norte-americana Nella Larsen tem como ponto central a relação de amizade entre as duas mulheres, negras de pele clara.

Em meio a discriminação racial em voga nos Estados Unidos, elas “se passam” por brancas para driblar a proibição de acessar determinados ambientes, processo que acaba por apagar parte da identidade das duas personagens. O envelope que contém a carta de Clare surge como uma lembrança de seus caminhos separados, por meio de uma dura humilhação imposta à Irene.

Após o reencontro entre as duas mulheres, na cobertura de um hotel em que não poderiam estar – não fosse o fato de se passarem por brancas –, Clare convida Irene para conhecer o seu marido, John Bellew. O problema reside no fato de ele nutrir simpatia pela supremacia racial, um preconceito do qual se orgulha, e não fazer ideia das origens da esposa.

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A escritora Nella Larsen participou da movimentação literária do Harlem, em Nova York, em meados do século passado Foto: Companhia das Letras

A presença constante de Clare, que aproveita a ausência do marido para frequentar eventos no Harlem, começa a causar incômodos efeitos na rotina familiar de Irene, desconfiada do afeto que o marido, Brian, dispensa à amiga. O ciúme corrói a amizade das duas mulheres e infiltra a narrativa. Mais do que isso, o sentimento potencializa as tensões entre Irene e o marido, uma vez que Brian – orgulhoso de sua cor – deseja se mudar para o Brasil, terra em que acredita que o mito da democracia racial é plenamente atingido.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais negras ao ostracismo, como é o caso de Maria Firmina dos Reis, a homenageada da 20.ª Flip, precursora do romance abolicionista e da literatura afro-brasileira. Em 1917 – pouco mais de apenas uma década antes da publicação de De Passagem, em 1928 – a autora de Úrsula (1859) morre cega e na pobreza, no município de Guimarães, Estado do Maranhão.

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Nos Estados Unidos, o cenário também era desolador. A própria Nella Larsen morre solitária e desprestigiada, em 1964. Após o divórcio – ela foi casada com o físico Elmer Imes, o segundo homem negro a obter um doutorado nos Estados Unidos –, a escritora usou a pensão a que tinha direito para se dedicar ao trabalho literário. Porém, com a morte de Imes, Larsen foi obrigada a retornar ao emprego como enfermeira para se sustentar, o que causou o rompimento com outros nomes proeminentes dos círculos literários e o consequente esquecimento de sua obra.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais

Filha de um casal de imigrantes, a dinamarquesa branca Mary Hanson e o caribenho negro Peter Walker, Larsen experimentou o estatuto dúbio de identidade que ronda grande parte de suas personagens. Após o abandono do pai, ela começa a usar o sobrenome do padrasto, Peter Larsen. Durante a década de 1920, já casada com Elmer Imes, a escritora começa a se aproximar de grandes nomes da Renascença do Harlem, como Langston Hughes e W.E.B Du Bois. Inspirada por essa atmosfera, Larsen lança o romance de estreia Quicksand (1928), com tons autobiográficos e ainda inédito no Brasil.

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Após 90 anos, seu segundo romance chegou ao País pela Harper Collins em 2020, com o título de Identidade, e agora é publicado como De Passagem pela Penguin Companhia, com o estatuto de clássico. Sobre isso, em sua introdução à edição, Bianca Santana – autora pela Fósforo de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo (2022) – relembra a reedição de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, pelo mesmo selo, em 2018.

A escritora Maria Firmina dos Reis, homenageada desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP  Foto: Domínio Público

Ainda que as autoras tenham vivido os primeiros anos do século 20 – Maria Firmina dos Reis morre em 1917, enquanto Larsen, nascida em 1891, falece apenas na década de 1960 –, ambas viveram em contextos diferentes. Além da disparidade entre os dois lados do Atlântico, uma vez que o Brasil ainda dava os primeiros passos para a inserção no mundo moderno pós- Proclamação da República, as produções das duas autoras abrangem distintos domínios literários.

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O trabalho de Maria Firmina dos Reis está localizado no século 19, no Romantismo brasileiro. A autora rompe com a visão do movimento, que priorizou a “cor local” e enredos de desenlaces amorosos, como predominantemente masculino e branco, ainda que a atenção dispensada a ela tenha sido demasiadamente menor do que a que receberam, por exemplo, nomes como José de Alencar. Além de Úrsula, sua produção principal engloba o romance Gupeva (1861) e o conto A Escrava (1887).

As obras de Nella Larsen surgiriam apenas décadas depois, em meio ao Modernismo norte-americano e, em especial, à Renascença do Harlem, quando, na década de 1920, o bairro nova-iorquino se torna o centro cultural de um vanguardista grupo de artistas negros. Engajados nas lutas raciais e de gênero, os escritores da Renascença deram novos contornos à literatura moderna dos Estados Unidos. Dentre os principais nomes do movimento, podemos citar Langston Hughes, James Baldwin e Zora Neale Hurston.

O escritor e agitador cultura Langston Hughes  Foto: Acervo Estadão
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Mais do que o apagamento histórico, Maria Firmina dos Reis e Nella Larsen compartilham o legado cultural de duas mentes pioneiras. A maranhense, educadora e professora de primeiras letras, foi responsável por fundar uma das primeiras escolas mistas e gratuitas do País, o que causou forte controvérsia na época. Como voluntária, Nella Larsen ajudou na primeira mostra de artistas afro-americanos da Biblioteca Pública de Nova York, se tornando, posteriormente, a primeira mulher negra a se formar no programa de ensino da instituição.

Se a chegada de De Passagem ao Brasil com o estatuto de clássico restitui a Nella Larsen o merecido lugar entre os grandes nomes do modernismo norte-americano, a brasileira Maria Firmina dos Reis também tem sido beneficiada por esse processo de resgate histórico. A escolha como autora homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) é a principal dessas iniciativas, que visa dar visibilidade à autora negra que publicou um aclamado livro no século 19, ainda em meio à escravidão.

Apenas mais de um século após a sua publicação, na década de 1970, o romance começou a receber atenção nos círculos literários brasileiros. Em 1975, com o esforço de Horácio de Almeida – bibliógrafo que encontrou um original do livro em 1962 –, uma edição fac-símile de Úrsula é lançada. Do fim da década de 1980 até os anos 2000, surgem três outras edições. Com a progressiva reconsideração do cânone, de modo a incluir autores negros e autoras mulheres, o crescente interesse pelo romance tem incentivado a reedição da obra, como a inclusão no selo Penguin Companhia em 2018 e o lançamento da edição ilustrada da Antofágica, de 2021.

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Capa do livro 'Úrsula', de Maria Firmina dos Reis  Foto: Antofágica

Publicado com o pseudônimo “Uma Maranhense”, Úrsula é a prova do gênio inovador de Maria Firmina dos Reis. Estamos diante de um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina e de uma obra publicada por uma mulher negra no século 19, quando a escravidão se arrastava no País. Pioneiro, ele também foi o primogênito entre os romances abolicionistas do Brasil.

O enredo romântico, centrado nos empecilhos ao amor do casal branco Tancredo e Úrsula, vai além no tratamento de suas personagens negras, pela primeira vez retratadas em sua subjetividade, comparada à das demais personagens da trama. Com a própria voz, as personagens escravizadas de Maria Firmina dos Reis podem afirmar os males da escravidão e aspectos da identidade afro-brasileira, ainda que cerceados pela repressão. Em meio ao forte teor de denúncia, e dentro das possibilidades de sua época, a autora brasileira explora – assim como Larsen – a questão da identidade.

Quando Irene Redfield, a protagonista do romance De Passagem, recebe uma carta assinada por Clare Kendry, as memórias de uma conturbada amizade vêm à tona. A vivacidade do Harlem encanta Clare, de modo que ela passa a estreitar cada vez mais os laços com Irene, na tentativa de retomar uma intimidade outrora perdida. O segundo romance da escritora norte-americana Nella Larsen tem como ponto central a relação de amizade entre as duas mulheres, negras de pele clara.

Em meio a discriminação racial em voga nos Estados Unidos, elas “se passam” por brancas para driblar a proibição de acessar determinados ambientes, processo que acaba por apagar parte da identidade das duas personagens. O envelope que contém a carta de Clare surge como uma lembrança de seus caminhos separados, por meio de uma dura humilhação imposta à Irene.

Após o reencontro entre as duas mulheres, na cobertura de um hotel em que não poderiam estar – não fosse o fato de se passarem por brancas –, Clare convida Irene para conhecer o seu marido, John Bellew. O problema reside no fato de ele nutrir simpatia pela supremacia racial, um preconceito do qual se orgulha, e não fazer ideia das origens da esposa.

A escritora Nella Larsen participou da movimentação literária do Harlem, em Nova York, em meados do século passado Foto: Companhia das Letras

A presença constante de Clare, que aproveita a ausência do marido para frequentar eventos no Harlem, começa a causar incômodos efeitos na rotina familiar de Irene, desconfiada do afeto que o marido, Brian, dispensa à amiga. O ciúme corrói a amizade das duas mulheres e infiltra a narrativa. Mais do que isso, o sentimento potencializa as tensões entre Irene e o marido, uma vez que Brian – orgulhoso de sua cor – deseja se mudar para o Brasil, terra em que acredita que o mito da democracia racial é plenamente atingido.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais negras ao ostracismo, como é o caso de Maria Firmina dos Reis, a homenageada da 20.ª Flip, precursora do romance abolicionista e da literatura afro-brasileira. Em 1917 – pouco mais de apenas uma década antes da publicação de De Passagem, em 1928 – a autora de Úrsula (1859) morre cega e na pobreza, no município de Guimarães, Estado do Maranhão.

Nos Estados Unidos, o cenário também era desolador. A própria Nella Larsen morre solitária e desprestigiada, em 1964. Após o divórcio – ela foi casada com o físico Elmer Imes, o segundo homem negro a obter um doutorado nos Estados Unidos –, a escritora usou a pensão a que tinha direito para se dedicar ao trabalho literário. Porém, com a morte de Imes, Larsen foi obrigada a retornar ao emprego como enfermeira para se sustentar, o que causou o rompimento com outros nomes proeminentes dos círculos literários e o consequente esquecimento de sua obra.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais

Filha de um casal de imigrantes, a dinamarquesa branca Mary Hanson e o caribenho negro Peter Walker, Larsen experimentou o estatuto dúbio de identidade que ronda grande parte de suas personagens. Após o abandono do pai, ela começa a usar o sobrenome do padrasto, Peter Larsen. Durante a década de 1920, já casada com Elmer Imes, a escritora começa a se aproximar de grandes nomes da Renascença do Harlem, como Langston Hughes e W.E.B Du Bois. Inspirada por essa atmosfera, Larsen lança o romance de estreia Quicksand (1928), com tons autobiográficos e ainda inédito no Brasil.

Após 90 anos, seu segundo romance chegou ao País pela Harper Collins em 2020, com o título de Identidade, e agora é publicado como De Passagem pela Penguin Companhia, com o estatuto de clássico. Sobre isso, em sua introdução à edição, Bianca Santana – autora pela Fósforo de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo (2022) – relembra a reedição de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, pelo mesmo selo, em 2018.

A escritora Maria Firmina dos Reis, homenageada desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP  Foto: Domínio Público

Ainda que as autoras tenham vivido os primeiros anos do século 20 – Maria Firmina dos Reis morre em 1917, enquanto Larsen, nascida em 1891, falece apenas na década de 1960 –, ambas viveram em contextos diferentes. Além da disparidade entre os dois lados do Atlântico, uma vez que o Brasil ainda dava os primeiros passos para a inserção no mundo moderno pós- Proclamação da República, as produções das duas autoras abrangem distintos domínios literários.

O trabalho de Maria Firmina dos Reis está localizado no século 19, no Romantismo brasileiro. A autora rompe com a visão do movimento, que priorizou a “cor local” e enredos de desenlaces amorosos, como predominantemente masculino e branco, ainda que a atenção dispensada a ela tenha sido demasiadamente menor do que a que receberam, por exemplo, nomes como José de Alencar. Além de Úrsula, sua produção principal engloba o romance Gupeva (1861) e o conto A Escrava (1887).

As obras de Nella Larsen surgiriam apenas décadas depois, em meio ao Modernismo norte-americano e, em especial, à Renascença do Harlem, quando, na década de 1920, o bairro nova-iorquino se torna o centro cultural de um vanguardista grupo de artistas negros. Engajados nas lutas raciais e de gênero, os escritores da Renascença deram novos contornos à literatura moderna dos Estados Unidos. Dentre os principais nomes do movimento, podemos citar Langston Hughes, James Baldwin e Zora Neale Hurston.

O escritor e agitador cultura Langston Hughes  Foto: Acervo Estadão

Mais do que o apagamento histórico, Maria Firmina dos Reis e Nella Larsen compartilham o legado cultural de duas mentes pioneiras. A maranhense, educadora e professora de primeiras letras, foi responsável por fundar uma das primeiras escolas mistas e gratuitas do País, o que causou forte controvérsia na época. Como voluntária, Nella Larsen ajudou na primeira mostra de artistas afro-americanos da Biblioteca Pública de Nova York, se tornando, posteriormente, a primeira mulher negra a se formar no programa de ensino da instituição.

Se a chegada de De Passagem ao Brasil com o estatuto de clássico restitui a Nella Larsen o merecido lugar entre os grandes nomes do modernismo norte-americano, a brasileira Maria Firmina dos Reis também tem sido beneficiada por esse processo de resgate histórico. A escolha como autora homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) é a principal dessas iniciativas, que visa dar visibilidade à autora negra que publicou um aclamado livro no século 19, ainda em meio à escravidão.

Apenas mais de um século após a sua publicação, na década de 1970, o romance começou a receber atenção nos círculos literários brasileiros. Em 1975, com o esforço de Horácio de Almeida – bibliógrafo que encontrou um original do livro em 1962 –, uma edição fac-símile de Úrsula é lançada. Do fim da década de 1980 até os anos 2000, surgem três outras edições. Com a progressiva reconsideração do cânone, de modo a incluir autores negros e autoras mulheres, o crescente interesse pelo romance tem incentivado a reedição da obra, como a inclusão no selo Penguin Companhia em 2018 e o lançamento da edição ilustrada da Antofágica, de 2021.

Capa do livro 'Úrsula', de Maria Firmina dos Reis  Foto: Antofágica

Publicado com o pseudônimo “Uma Maranhense”, Úrsula é a prova do gênio inovador de Maria Firmina dos Reis. Estamos diante de um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina e de uma obra publicada por uma mulher negra no século 19, quando a escravidão se arrastava no País. Pioneiro, ele também foi o primogênito entre os romances abolicionistas do Brasil.

O enredo romântico, centrado nos empecilhos ao amor do casal branco Tancredo e Úrsula, vai além no tratamento de suas personagens negras, pela primeira vez retratadas em sua subjetividade, comparada à das demais personagens da trama. Com a própria voz, as personagens escravizadas de Maria Firmina dos Reis podem afirmar os males da escravidão e aspectos da identidade afro-brasileira, ainda que cerceados pela repressão. Em meio ao forte teor de denúncia, e dentro das possibilidades de sua época, a autora brasileira explora – assim como Larsen – a questão da identidade.

Quando Irene Redfield, a protagonista do romance De Passagem, recebe uma carta assinada por Clare Kendry, as memórias de uma conturbada amizade vêm à tona. A vivacidade do Harlem encanta Clare, de modo que ela passa a estreitar cada vez mais os laços com Irene, na tentativa de retomar uma intimidade outrora perdida. O segundo romance da escritora norte-americana Nella Larsen tem como ponto central a relação de amizade entre as duas mulheres, negras de pele clara.

Em meio a discriminação racial em voga nos Estados Unidos, elas “se passam” por brancas para driblar a proibição de acessar determinados ambientes, processo que acaba por apagar parte da identidade das duas personagens. O envelope que contém a carta de Clare surge como uma lembrança de seus caminhos separados, por meio de uma dura humilhação imposta à Irene.

Após o reencontro entre as duas mulheres, na cobertura de um hotel em que não poderiam estar – não fosse o fato de se passarem por brancas –, Clare convida Irene para conhecer o seu marido, John Bellew. O problema reside no fato de ele nutrir simpatia pela supremacia racial, um preconceito do qual se orgulha, e não fazer ideia das origens da esposa.

A escritora Nella Larsen participou da movimentação literária do Harlem, em Nova York, em meados do século passado Foto: Companhia das Letras

A presença constante de Clare, que aproveita a ausência do marido para frequentar eventos no Harlem, começa a causar incômodos efeitos na rotina familiar de Irene, desconfiada do afeto que o marido, Brian, dispensa à amiga. O ciúme corrói a amizade das duas mulheres e infiltra a narrativa. Mais do que isso, o sentimento potencializa as tensões entre Irene e o marido, uma vez que Brian – orgulhoso de sua cor – deseja se mudar para o Brasil, terra em que acredita que o mito da democracia racial é plenamente atingido.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais negras ao ostracismo, como é o caso de Maria Firmina dos Reis, a homenageada da 20.ª Flip, precursora do romance abolicionista e da literatura afro-brasileira. Em 1917 – pouco mais de apenas uma década antes da publicação de De Passagem, em 1928 – a autora de Úrsula (1859) morre cega e na pobreza, no município de Guimarães, Estado do Maranhão.

Nos Estados Unidos, o cenário também era desolador. A própria Nella Larsen morre solitária e desprestigiada, em 1964. Após o divórcio – ela foi casada com o físico Elmer Imes, o segundo homem negro a obter um doutorado nos Estados Unidos –, a escritora usou a pensão a que tinha direito para se dedicar ao trabalho literário. Porém, com a morte de Imes, Larsen foi obrigada a retornar ao emprego como enfermeira para se sustentar, o que causou o rompimento com outros nomes proeminentes dos círculos literários e o consequente esquecimento de sua obra.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais

Filha de um casal de imigrantes, a dinamarquesa branca Mary Hanson e o caribenho negro Peter Walker, Larsen experimentou o estatuto dúbio de identidade que ronda grande parte de suas personagens. Após o abandono do pai, ela começa a usar o sobrenome do padrasto, Peter Larsen. Durante a década de 1920, já casada com Elmer Imes, a escritora começa a se aproximar de grandes nomes da Renascença do Harlem, como Langston Hughes e W.E.B Du Bois. Inspirada por essa atmosfera, Larsen lança o romance de estreia Quicksand (1928), com tons autobiográficos e ainda inédito no Brasil.

Após 90 anos, seu segundo romance chegou ao País pela Harper Collins em 2020, com o título de Identidade, e agora é publicado como De Passagem pela Penguin Companhia, com o estatuto de clássico. Sobre isso, em sua introdução à edição, Bianca Santana – autora pela Fósforo de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo (2022) – relembra a reedição de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, pelo mesmo selo, em 2018.

A escritora Maria Firmina dos Reis, homenageada desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP  Foto: Domínio Público

Ainda que as autoras tenham vivido os primeiros anos do século 20 – Maria Firmina dos Reis morre em 1917, enquanto Larsen, nascida em 1891, falece apenas na década de 1960 –, ambas viveram em contextos diferentes. Além da disparidade entre os dois lados do Atlântico, uma vez que o Brasil ainda dava os primeiros passos para a inserção no mundo moderno pós- Proclamação da República, as produções das duas autoras abrangem distintos domínios literários.

O trabalho de Maria Firmina dos Reis está localizado no século 19, no Romantismo brasileiro. A autora rompe com a visão do movimento, que priorizou a “cor local” e enredos de desenlaces amorosos, como predominantemente masculino e branco, ainda que a atenção dispensada a ela tenha sido demasiadamente menor do que a que receberam, por exemplo, nomes como José de Alencar. Além de Úrsula, sua produção principal engloba o romance Gupeva (1861) e o conto A Escrava (1887).

As obras de Nella Larsen surgiriam apenas décadas depois, em meio ao Modernismo norte-americano e, em especial, à Renascença do Harlem, quando, na década de 1920, o bairro nova-iorquino se torna o centro cultural de um vanguardista grupo de artistas negros. Engajados nas lutas raciais e de gênero, os escritores da Renascença deram novos contornos à literatura moderna dos Estados Unidos. Dentre os principais nomes do movimento, podemos citar Langston Hughes, James Baldwin e Zora Neale Hurston.

O escritor e agitador cultura Langston Hughes  Foto: Acervo Estadão

Mais do que o apagamento histórico, Maria Firmina dos Reis e Nella Larsen compartilham o legado cultural de duas mentes pioneiras. A maranhense, educadora e professora de primeiras letras, foi responsável por fundar uma das primeiras escolas mistas e gratuitas do País, o que causou forte controvérsia na época. Como voluntária, Nella Larsen ajudou na primeira mostra de artistas afro-americanos da Biblioteca Pública de Nova York, se tornando, posteriormente, a primeira mulher negra a se formar no programa de ensino da instituição.

Se a chegada de De Passagem ao Brasil com o estatuto de clássico restitui a Nella Larsen o merecido lugar entre os grandes nomes do modernismo norte-americano, a brasileira Maria Firmina dos Reis também tem sido beneficiada por esse processo de resgate histórico. A escolha como autora homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) é a principal dessas iniciativas, que visa dar visibilidade à autora negra que publicou um aclamado livro no século 19, ainda em meio à escravidão.

Apenas mais de um século após a sua publicação, na década de 1970, o romance começou a receber atenção nos círculos literários brasileiros. Em 1975, com o esforço de Horácio de Almeida – bibliógrafo que encontrou um original do livro em 1962 –, uma edição fac-símile de Úrsula é lançada. Do fim da década de 1980 até os anos 2000, surgem três outras edições. Com a progressiva reconsideração do cânone, de modo a incluir autores negros e autoras mulheres, o crescente interesse pelo romance tem incentivado a reedição da obra, como a inclusão no selo Penguin Companhia em 2018 e o lançamento da edição ilustrada da Antofágica, de 2021.

Capa do livro 'Úrsula', de Maria Firmina dos Reis  Foto: Antofágica

Publicado com o pseudônimo “Uma Maranhense”, Úrsula é a prova do gênio inovador de Maria Firmina dos Reis. Estamos diante de um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina e de uma obra publicada por uma mulher negra no século 19, quando a escravidão se arrastava no País. Pioneiro, ele também foi o primogênito entre os romances abolicionistas do Brasil.

O enredo romântico, centrado nos empecilhos ao amor do casal branco Tancredo e Úrsula, vai além no tratamento de suas personagens negras, pela primeira vez retratadas em sua subjetividade, comparada à das demais personagens da trama. Com a própria voz, as personagens escravizadas de Maria Firmina dos Reis podem afirmar os males da escravidão e aspectos da identidade afro-brasileira, ainda que cerceados pela repressão. Em meio ao forte teor de denúncia, e dentro das possibilidades de sua época, a autora brasileira explora – assim como Larsen – a questão da identidade.

Quando Irene Redfield, a protagonista do romance De Passagem, recebe uma carta assinada por Clare Kendry, as memórias de uma conturbada amizade vêm à tona. A vivacidade do Harlem encanta Clare, de modo que ela passa a estreitar cada vez mais os laços com Irene, na tentativa de retomar uma intimidade outrora perdida. O segundo romance da escritora norte-americana Nella Larsen tem como ponto central a relação de amizade entre as duas mulheres, negras de pele clara.

Em meio a discriminação racial em voga nos Estados Unidos, elas “se passam” por brancas para driblar a proibição de acessar determinados ambientes, processo que acaba por apagar parte da identidade das duas personagens. O envelope que contém a carta de Clare surge como uma lembrança de seus caminhos separados, por meio de uma dura humilhação imposta à Irene.

Após o reencontro entre as duas mulheres, na cobertura de um hotel em que não poderiam estar – não fosse o fato de se passarem por brancas –, Clare convida Irene para conhecer o seu marido, John Bellew. O problema reside no fato de ele nutrir simpatia pela supremacia racial, um preconceito do qual se orgulha, e não fazer ideia das origens da esposa.

A escritora Nella Larsen participou da movimentação literária do Harlem, em Nova York, em meados do século passado Foto: Companhia das Letras

A presença constante de Clare, que aproveita a ausência do marido para frequentar eventos no Harlem, começa a causar incômodos efeitos na rotina familiar de Irene, desconfiada do afeto que o marido, Brian, dispensa à amiga. O ciúme corrói a amizade das duas mulheres e infiltra a narrativa. Mais do que isso, o sentimento potencializa as tensões entre Irene e o marido, uma vez que Brian – orgulhoso de sua cor – deseja se mudar para o Brasil, terra em que acredita que o mito da democracia racial é plenamente atingido.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais negras ao ostracismo, como é o caso de Maria Firmina dos Reis, a homenageada da 20.ª Flip, precursora do romance abolicionista e da literatura afro-brasileira. Em 1917 – pouco mais de apenas uma década antes da publicação de De Passagem, em 1928 – a autora de Úrsula (1859) morre cega e na pobreza, no município de Guimarães, Estado do Maranhão.

Nos Estados Unidos, o cenário também era desolador. A própria Nella Larsen morre solitária e desprestigiada, em 1964. Após o divórcio – ela foi casada com o físico Elmer Imes, o segundo homem negro a obter um doutorado nos Estados Unidos –, a escritora usou a pensão a que tinha direito para se dedicar ao trabalho literário. Porém, com a morte de Imes, Larsen foi obrigada a retornar ao emprego como enfermeira para se sustentar, o que causou o rompimento com outros nomes proeminentes dos círculos literários e o consequente esquecimento de sua obra.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais

Filha de um casal de imigrantes, a dinamarquesa branca Mary Hanson e o caribenho negro Peter Walker, Larsen experimentou o estatuto dúbio de identidade que ronda grande parte de suas personagens. Após o abandono do pai, ela começa a usar o sobrenome do padrasto, Peter Larsen. Durante a década de 1920, já casada com Elmer Imes, a escritora começa a se aproximar de grandes nomes da Renascença do Harlem, como Langston Hughes e W.E.B Du Bois. Inspirada por essa atmosfera, Larsen lança o romance de estreia Quicksand (1928), com tons autobiográficos e ainda inédito no Brasil.

Após 90 anos, seu segundo romance chegou ao País pela Harper Collins em 2020, com o título de Identidade, e agora é publicado como De Passagem pela Penguin Companhia, com o estatuto de clássico. Sobre isso, em sua introdução à edição, Bianca Santana – autora pela Fósforo de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo (2022) – relembra a reedição de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, pelo mesmo selo, em 2018.

A escritora Maria Firmina dos Reis, homenageada desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP  Foto: Domínio Público

Ainda que as autoras tenham vivido os primeiros anos do século 20 – Maria Firmina dos Reis morre em 1917, enquanto Larsen, nascida em 1891, falece apenas na década de 1960 –, ambas viveram em contextos diferentes. Além da disparidade entre os dois lados do Atlântico, uma vez que o Brasil ainda dava os primeiros passos para a inserção no mundo moderno pós- Proclamação da República, as produções das duas autoras abrangem distintos domínios literários.

O trabalho de Maria Firmina dos Reis está localizado no século 19, no Romantismo brasileiro. A autora rompe com a visão do movimento, que priorizou a “cor local” e enredos de desenlaces amorosos, como predominantemente masculino e branco, ainda que a atenção dispensada a ela tenha sido demasiadamente menor do que a que receberam, por exemplo, nomes como José de Alencar. Além de Úrsula, sua produção principal engloba o romance Gupeva (1861) e o conto A Escrava (1887).

As obras de Nella Larsen surgiriam apenas décadas depois, em meio ao Modernismo norte-americano e, em especial, à Renascença do Harlem, quando, na década de 1920, o bairro nova-iorquino se torna o centro cultural de um vanguardista grupo de artistas negros. Engajados nas lutas raciais e de gênero, os escritores da Renascença deram novos contornos à literatura moderna dos Estados Unidos. Dentre os principais nomes do movimento, podemos citar Langston Hughes, James Baldwin e Zora Neale Hurston.

O escritor e agitador cultura Langston Hughes  Foto: Acervo Estadão

Mais do que o apagamento histórico, Maria Firmina dos Reis e Nella Larsen compartilham o legado cultural de duas mentes pioneiras. A maranhense, educadora e professora de primeiras letras, foi responsável por fundar uma das primeiras escolas mistas e gratuitas do País, o que causou forte controvérsia na época. Como voluntária, Nella Larsen ajudou na primeira mostra de artistas afro-americanos da Biblioteca Pública de Nova York, se tornando, posteriormente, a primeira mulher negra a se formar no programa de ensino da instituição.

Se a chegada de De Passagem ao Brasil com o estatuto de clássico restitui a Nella Larsen o merecido lugar entre os grandes nomes do modernismo norte-americano, a brasileira Maria Firmina dos Reis também tem sido beneficiada por esse processo de resgate histórico. A escolha como autora homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) é a principal dessas iniciativas, que visa dar visibilidade à autora negra que publicou um aclamado livro no século 19, ainda em meio à escravidão.

Apenas mais de um século após a sua publicação, na década de 1970, o romance começou a receber atenção nos círculos literários brasileiros. Em 1975, com o esforço de Horácio de Almeida – bibliógrafo que encontrou um original do livro em 1962 –, uma edição fac-símile de Úrsula é lançada. Do fim da década de 1980 até os anos 2000, surgem três outras edições. Com a progressiva reconsideração do cânone, de modo a incluir autores negros e autoras mulheres, o crescente interesse pelo romance tem incentivado a reedição da obra, como a inclusão no selo Penguin Companhia em 2018 e o lançamento da edição ilustrada da Antofágica, de 2021.

Capa do livro 'Úrsula', de Maria Firmina dos Reis  Foto: Antofágica

Publicado com o pseudônimo “Uma Maranhense”, Úrsula é a prova do gênio inovador de Maria Firmina dos Reis. Estamos diante de um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina e de uma obra publicada por uma mulher negra no século 19, quando a escravidão se arrastava no País. Pioneiro, ele também foi o primogênito entre os romances abolicionistas do Brasil.

O enredo romântico, centrado nos empecilhos ao amor do casal branco Tancredo e Úrsula, vai além no tratamento de suas personagens negras, pela primeira vez retratadas em sua subjetividade, comparada à das demais personagens da trama. Com a própria voz, as personagens escravizadas de Maria Firmina dos Reis podem afirmar os males da escravidão e aspectos da identidade afro-brasileira, ainda que cerceados pela repressão. Em meio ao forte teor de denúncia, e dentro das possibilidades de sua época, a autora brasileira explora – assim como Larsen – a questão da identidade.

Quando Irene Redfield, a protagonista do romance De Passagem, recebe uma carta assinada por Clare Kendry, as memórias de uma conturbada amizade vêm à tona. A vivacidade do Harlem encanta Clare, de modo que ela passa a estreitar cada vez mais os laços com Irene, na tentativa de retomar uma intimidade outrora perdida. O segundo romance da escritora norte-americana Nella Larsen tem como ponto central a relação de amizade entre as duas mulheres, negras de pele clara.

Em meio a discriminação racial em voga nos Estados Unidos, elas “se passam” por brancas para driblar a proibição de acessar determinados ambientes, processo que acaba por apagar parte da identidade das duas personagens. O envelope que contém a carta de Clare surge como uma lembrança de seus caminhos separados, por meio de uma dura humilhação imposta à Irene.

Após o reencontro entre as duas mulheres, na cobertura de um hotel em que não poderiam estar – não fosse o fato de se passarem por brancas –, Clare convida Irene para conhecer o seu marido, John Bellew. O problema reside no fato de ele nutrir simpatia pela supremacia racial, um preconceito do qual se orgulha, e não fazer ideia das origens da esposa.

A escritora Nella Larsen participou da movimentação literária do Harlem, em Nova York, em meados do século passado Foto: Companhia das Letras

A presença constante de Clare, que aproveita a ausência do marido para frequentar eventos no Harlem, começa a causar incômodos efeitos na rotina familiar de Irene, desconfiada do afeto que o marido, Brian, dispensa à amiga. O ciúme corrói a amizade das duas mulheres e infiltra a narrativa. Mais do que isso, o sentimento potencializa as tensões entre Irene e o marido, uma vez que Brian – orgulhoso de sua cor – deseja se mudar para o Brasil, terra em que acredita que o mito da democracia racial é plenamente atingido.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais negras ao ostracismo, como é o caso de Maria Firmina dos Reis, a homenageada da 20.ª Flip, precursora do romance abolicionista e da literatura afro-brasileira. Em 1917 – pouco mais de apenas uma década antes da publicação de De Passagem, em 1928 – a autora de Úrsula (1859) morre cega e na pobreza, no município de Guimarães, Estado do Maranhão.

Nos Estados Unidos, o cenário também era desolador. A própria Nella Larsen morre solitária e desprestigiada, em 1964. Após o divórcio – ela foi casada com o físico Elmer Imes, o segundo homem negro a obter um doutorado nos Estados Unidos –, a escritora usou a pensão a que tinha direito para se dedicar ao trabalho literário. Porém, com a morte de Imes, Larsen foi obrigada a retornar ao emprego como enfermeira para se sustentar, o que causou o rompimento com outros nomes proeminentes dos círculos literários e o consequente esquecimento de sua obra.

Na busca por uma fuga da segregação norte-americana, Brian é seduzido pela promessa de um Brasil livre de preconceitos raciais. Mas, infelizmente, para além da brutalidade do racismo brasileiro, este é também o país que relega suas grandes figuras culturais

Filha de um casal de imigrantes, a dinamarquesa branca Mary Hanson e o caribenho negro Peter Walker, Larsen experimentou o estatuto dúbio de identidade que ronda grande parte de suas personagens. Após o abandono do pai, ela começa a usar o sobrenome do padrasto, Peter Larsen. Durante a década de 1920, já casada com Elmer Imes, a escritora começa a se aproximar de grandes nomes da Renascença do Harlem, como Langston Hughes e W.E.B Du Bois. Inspirada por essa atmosfera, Larsen lança o romance de estreia Quicksand (1928), com tons autobiográficos e ainda inédito no Brasil.

Após 90 anos, seu segundo romance chegou ao País pela Harper Collins em 2020, com o título de Identidade, e agora é publicado como De Passagem pela Penguin Companhia, com o estatuto de clássico. Sobre isso, em sua introdução à edição, Bianca Santana – autora pela Fósforo de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo (2022) – relembra a reedição de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, pelo mesmo selo, em 2018.

A escritora Maria Firmina dos Reis, homenageada desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP  Foto: Domínio Público

Ainda que as autoras tenham vivido os primeiros anos do século 20 – Maria Firmina dos Reis morre em 1917, enquanto Larsen, nascida em 1891, falece apenas na década de 1960 –, ambas viveram em contextos diferentes. Além da disparidade entre os dois lados do Atlântico, uma vez que o Brasil ainda dava os primeiros passos para a inserção no mundo moderno pós- Proclamação da República, as produções das duas autoras abrangem distintos domínios literários.

O trabalho de Maria Firmina dos Reis está localizado no século 19, no Romantismo brasileiro. A autora rompe com a visão do movimento, que priorizou a “cor local” e enredos de desenlaces amorosos, como predominantemente masculino e branco, ainda que a atenção dispensada a ela tenha sido demasiadamente menor do que a que receberam, por exemplo, nomes como José de Alencar. Além de Úrsula, sua produção principal engloba o romance Gupeva (1861) e o conto A Escrava (1887).

As obras de Nella Larsen surgiriam apenas décadas depois, em meio ao Modernismo norte-americano e, em especial, à Renascença do Harlem, quando, na década de 1920, o bairro nova-iorquino se torna o centro cultural de um vanguardista grupo de artistas negros. Engajados nas lutas raciais e de gênero, os escritores da Renascença deram novos contornos à literatura moderna dos Estados Unidos. Dentre os principais nomes do movimento, podemos citar Langston Hughes, James Baldwin e Zora Neale Hurston.

O escritor e agitador cultura Langston Hughes  Foto: Acervo Estadão

Mais do que o apagamento histórico, Maria Firmina dos Reis e Nella Larsen compartilham o legado cultural de duas mentes pioneiras. A maranhense, educadora e professora de primeiras letras, foi responsável por fundar uma das primeiras escolas mistas e gratuitas do País, o que causou forte controvérsia na época. Como voluntária, Nella Larsen ajudou na primeira mostra de artistas afro-americanos da Biblioteca Pública de Nova York, se tornando, posteriormente, a primeira mulher negra a se formar no programa de ensino da instituição.

Se a chegada de De Passagem ao Brasil com o estatuto de clássico restitui a Nella Larsen o merecido lugar entre os grandes nomes do modernismo norte-americano, a brasileira Maria Firmina dos Reis também tem sido beneficiada por esse processo de resgate histórico. A escolha como autora homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) é a principal dessas iniciativas, que visa dar visibilidade à autora negra que publicou um aclamado livro no século 19, ainda em meio à escravidão.

Apenas mais de um século após a sua publicação, na década de 1970, o romance começou a receber atenção nos círculos literários brasileiros. Em 1975, com o esforço de Horácio de Almeida – bibliógrafo que encontrou um original do livro em 1962 –, uma edição fac-símile de Úrsula é lançada. Do fim da década de 1980 até os anos 2000, surgem três outras edições. Com a progressiva reconsideração do cânone, de modo a incluir autores negros e autoras mulheres, o crescente interesse pelo romance tem incentivado a reedição da obra, como a inclusão no selo Penguin Companhia em 2018 e o lançamento da edição ilustrada da Antofágica, de 2021.

Capa do livro 'Úrsula', de Maria Firmina dos Reis  Foto: Antofágica

Publicado com o pseudônimo “Uma Maranhense”, Úrsula é a prova do gênio inovador de Maria Firmina dos Reis. Estamos diante de um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina e de uma obra publicada por uma mulher negra no século 19, quando a escravidão se arrastava no País. Pioneiro, ele também foi o primogênito entre os romances abolicionistas do Brasil.

O enredo romântico, centrado nos empecilhos ao amor do casal branco Tancredo e Úrsula, vai além no tratamento de suas personagens negras, pela primeira vez retratadas em sua subjetividade, comparada à das demais personagens da trama. Com a própria voz, as personagens escravizadas de Maria Firmina dos Reis podem afirmar os males da escravidão e aspectos da identidade afro-brasileira, ainda que cerceados pela repressão. Em meio ao forte teor de denúncia, e dentro das possibilidades de sua época, a autora brasileira explora – assim como Larsen – a questão da identidade.

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