No baú do YouTube, cineastas consagrados participam de brincadeira cinéfila


Nomes como Guillermo del Toro, Edgar Wright, Barry Jenkins e Bong Joon-ho escolhem seus filmes favoritos da Criterion Collection em vídeos curtos

Por Luiz Nazário

Um dos programas mais fascinantes para um cinéfilo fazer na quarentena é assistir aos Closet Picks da Criterion Collection no YouTube. Trata-se de uma brincadeira culta que é um misto de teatro da crueldade, programa de auditório da TV do tipo “leve tudo o que conseguir agarrar”, listas improvisadas dos melhores filmes de todos os tempos (segundo cada ator e diretor) e ensaio de psicanálise vertical dos homens e mulheres do cinema. 

'Os Olhos Sem Rosto' 1960), filme de Georges Franju Foto: The Criterion Collection

As regras do jogo não são muito claras. Quantos DVDs o cinéfilo pode levar? Quantos minutos ele pode ficar no closet fazendo suas escolhas, os seus picks? A maioria parece acatar a suposta regra de que podem escolher cinco ou seis de seus filmes favoritos “ao vivo” num prazo médio de cinco minutos. Outros – como o filósofo cinéfilo Slavoj Zizek – quebram a regra e escolhem seus filmes antes da gravação: passam uns 40 minutos fazendo seus picks e depois dedicam os 5 minutos gravados aos comentários dos filmes. 

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Há quem seja modesto e pegue apenas dois ou três filmes, como o ator Alec Baldwin, que se encontrava de passagem por Nova York atuando numa peça da Broadway; ou o cineasta alemão Volker Schlöndorff, que conta já estar de retorno à sua casa com uma mala pequena. 

Outros se entregam à gula cinéfila e enchem sem qualquer pudor suas sacolas, como o diretor sul-coreano

Bong Joon-ho

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, o cineasta negro

Barry Jenkins

, os independentes irmãos cineastas Josh e Benny Safdie – geralmente artistas jovens e ambiciosos, que ainda não possuem um grande acervo. O diretor mexicano

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Guillermo del Toro

, por exemplo, foi modesto: levou apenas meia dúzia de DVDs, pois já havia adquirido toda o acervo da Criterion... 

O jovem cineasta argentino Matías Piñeiro – que encheu sua sacola até a borda – sentiu-se num programa de auditório de seu país, no qual o convidado tem apenas cinco minutos para levar o que puder de um supermercado: “Estou certo que um programa desse tipo deve ter aqui também”, apostou. Há em todo mundo, pois assisti criança a programas assim e até hoje os brasileiros podem ver a atração requentada em Comprar é Bom, Levar é Melhor no

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Domingo Legal

do SBT. Ou seja, o

Closet Picks

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da Criterion Collection é a versão intelectual do clássico da fantasia televisiva de terror psicológico do consumismo.

Um dos cinéfilos mais desesperados – e com o qual eu mais me identifico – é o extraordinário cineasta marginal canadense Guy Maddin, que vai jogando para dentro de sua sacola todo DVD que vê pela frente fechado no Closet dizendo “Bag!” (Sacola!). O seu foi o primeiro das dezenas de

Closet Picks

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que vi ao longo dos anos, e o mais engraçado de todos para mim até hoje. Não canso de ver e rever.

Enquanto escolhem os DVDs e Blurays Criterion de seus filmes prediletos, que os marcaram de uma forma ou de outra, ou que desejam presentear alguém especial, os cineastas e atores recordam pequenos eventos e histórias pessoais encantadoras pelo simples fato desses cinéfilos serem quem são. 

O jovem cineasta britânico Edgar Wright ao ver o DVD de

Os Olhos sem Rosto (Les Yeux sans Visage

, 1960), de Georges Franju, contou que seu pai sempre lhe falava do filme mais horripilante que vira em toda sua vida: um filme francês, em preto e branco, sobre um cirurgião que retirava os rostos de jovens sequestradas para transplantá-los no da filha desfigurada num acidente de carro, em cenas de puro horror. Só não conseguia lembrar o título. 

Cinco anos atrás, ao ver o filme de Franju num cinema, Wright descobriu ser aquele o tão espantoso filme mencionado por seu pai. Tudo se encaixava. Telefonou então triunfante para ele dizendo: “Pai, descobri o nome daquele seu filme. Ele se chama

Os Olhos sem Rosto

”. Mas o pai respondeu: “Não... O título do filme não é esse, não...”. Agora ele poderia presentear o pai com o DVD para provar que aquele era o título do filme, sim.

Outra pequena história maravilhosa é contada por Philip Kaufman ao tocar no Box Jean Renoir da Criterion: “Certa vez, num cinema de Los Angeles, cheguei um pouco atrasado para a estreia de um filme, e me sentei, afobado, ao lado de um senhor alto. O filme já começava quando outro senhor atrasado disse para a pessoa ao lado: “Olá, Fritz”. E esse respondeu: “Olá, Jean”. Então eu percebi, de um golpe, que estava sentado ao lado de Jean Renoir e de Fritz Lang!”

Ter nas mãos o DVD de uma obra-prima do cinema é como tocar com os dedos algumas de nossas memórias mais preciosas, trazendo novamente à tona, juntamente com essas memórias, as emoções decantadas que permanecem vivas no fundo de nossas almas, de quando vivemos o momento mágico e irrepetível de ver os filmes que marcaram nossas vidas na tela escura do cinema. 

Levar para casa o DVD do filme amado traz ao cinéfilo a ilusão tão necessária à sua esperança de que ele pode de alguma forma preservar vivas as emoções que experimentou ao vê-lo pela primeira vez, ainda que de forma espúria e solitária, antes que elas desapareçam para sempre, “como lágrimas na chuva”. 

É o que explica a emoção autêntica que vemos nesses jovens e veteranos cinéfilos caindo na armadilha do Closet da Criterion Collection, que parece pedir a crianças agitadas que se comportem como adultos diante de uma montanha de doces deliciosos que lhes são oferecidos, podendo retirar dela e levar consigo para casa apenas meia dúzia dessas guloseimas.

*LUIZ NAZARIO É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA DO CINEMA NA UFMG E AUTOR DE ‘O CINEMA ERRANTE’ (PERSPECTIVA)

 

Um dos programas mais fascinantes para um cinéfilo fazer na quarentena é assistir aos Closet Picks da Criterion Collection no YouTube. Trata-se de uma brincadeira culta que é um misto de teatro da crueldade, programa de auditório da TV do tipo “leve tudo o que conseguir agarrar”, listas improvisadas dos melhores filmes de todos os tempos (segundo cada ator e diretor) e ensaio de psicanálise vertical dos homens e mulheres do cinema. 

'Os Olhos Sem Rosto' 1960), filme de Georges Franju Foto: The Criterion Collection

As regras do jogo não são muito claras. Quantos DVDs o cinéfilo pode levar? Quantos minutos ele pode ficar no closet fazendo suas escolhas, os seus picks? A maioria parece acatar a suposta regra de que podem escolher cinco ou seis de seus filmes favoritos “ao vivo” num prazo médio de cinco minutos. Outros – como o filósofo cinéfilo Slavoj Zizek – quebram a regra e escolhem seus filmes antes da gravação: passam uns 40 minutos fazendo seus picks e depois dedicam os 5 minutos gravados aos comentários dos filmes. 

Há quem seja modesto e pegue apenas dois ou três filmes, como o ator Alec Baldwin, que se encontrava de passagem por Nova York atuando numa peça da Broadway; ou o cineasta alemão Volker Schlöndorff, que conta já estar de retorno à sua casa com uma mala pequena. 

Outros se entregam à gula cinéfila e enchem sem qualquer pudor suas sacolas, como o diretor sul-coreano

Bong Joon-ho

, o cineasta negro

Barry Jenkins

, os independentes irmãos cineastas Josh e Benny Safdie – geralmente artistas jovens e ambiciosos, que ainda não possuem um grande acervo. O diretor mexicano

Guillermo del Toro

, por exemplo, foi modesto: levou apenas meia dúzia de DVDs, pois já havia adquirido toda o acervo da Criterion... 

O jovem cineasta argentino Matías Piñeiro – que encheu sua sacola até a borda – sentiu-se num programa de auditório de seu país, no qual o convidado tem apenas cinco minutos para levar o que puder de um supermercado: “Estou certo que um programa desse tipo deve ter aqui também”, apostou. Há em todo mundo, pois assisti criança a programas assim e até hoje os brasileiros podem ver a atração requentada em Comprar é Bom, Levar é Melhor no

Domingo Legal

do SBT. Ou seja, o

Closet Picks

da Criterion Collection é a versão intelectual do clássico da fantasia televisiva de terror psicológico do consumismo.

Um dos cinéfilos mais desesperados – e com o qual eu mais me identifico – é o extraordinário cineasta marginal canadense Guy Maddin, que vai jogando para dentro de sua sacola todo DVD que vê pela frente fechado no Closet dizendo “Bag!” (Sacola!). O seu foi o primeiro das dezenas de

Closet Picks

que vi ao longo dos anos, e o mais engraçado de todos para mim até hoje. Não canso de ver e rever.

Enquanto escolhem os DVDs e Blurays Criterion de seus filmes prediletos, que os marcaram de uma forma ou de outra, ou que desejam presentear alguém especial, os cineastas e atores recordam pequenos eventos e histórias pessoais encantadoras pelo simples fato desses cinéfilos serem quem são. 

O jovem cineasta britânico Edgar Wright ao ver o DVD de

Os Olhos sem Rosto (Les Yeux sans Visage

, 1960), de Georges Franju, contou que seu pai sempre lhe falava do filme mais horripilante que vira em toda sua vida: um filme francês, em preto e branco, sobre um cirurgião que retirava os rostos de jovens sequestradas para transplantá-los no da filha desfigurada num acidente de carro, em cenas de puro horror. Só não conseguia lembrar o título. 

Cinco anos atrás, ao ver o filme de Franju num cinema, Wright descobriu ser aquele o tão espantoso filme mencionado por seu pai. Tudo se encaixava. Telefonou então triunfante para ele dizendo: “Pai, descobri o nome daquele seu filme. Ele se chama

Os Olhos sem Rosto

”. Mas o pai respondeu: “Não... O título do filme não é esse, não...”. Agora ele poderia presentear o pai com o DVD para provar que aquele era o título do filme, sim.

Outra pequena história maravilhosa é contada por Philip Kaufman ao tocar no Box Jean Renoir da Criterion: “Certa vez, num cinema de Los Angeles, cheguei um pouco atrasado para a estreia de um filme, e me sentei, afobado, ao lado de um senhor alto. O filme já começava quando outro senhor atrasado disse para a pessoa ao lado: “Olá, Fritz”. E esse respondeu: “Olá, Jean”. Então eu percebi, de um golpe, que estava sentado ao lado de Jean Renoir e de Fritz Lang!”

Ter nas mãos o DVD de uma obra-prima do cinema é como tocar com os dedos algumas de nossas memórias mais preciosas, trazendo novamente à tona, juntamente com essas memórias, as emoções decantadas que permanecem vivas no fundo de nossas almas, de quando vivemos o momento mágico e irrepetível de ver os filmes que marcaram nossas vidas na tela escura do cinema. 

Levar para casa o DVD do filme amado traz ao cinéfilo a ilusão tão necessária à sua esperança de que ele pode de alguma forma preservar vivas as emoções que experimentou ao vê-lo pela primeira vez, ainda que de forma espúria e solitária, antes que elas desapareçam para sempre, “como lágrimas na chuva”. 

É o que explica a emoção autêntica que vemos nesses jovens e veteranos cinéfilos caindo na armadilha do Closet da Criterion Collection, que parece pedir a crianças agitadas que se comportem como adultos diante de uma montanha de doces deliciosos que lhes são oferecidos, podendo retirar dela e levar consigo para casa apenas meia dúzia dessas guloseimas.

*LUIZ NAZARIO É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA DO CINEMA NA UFMG E AUTOR DE ‘O CINEMA ERRANTE’ (PERSPECTIVA)

 

Um dos programas mais fascinantes para um cinéfilo fazer na quarentena é assistir aos Closet Picks da Criterion Collection no YouTube. Trata-se de uma brincadeira culta que é um misto de teatro da crueldade, programa de auditório da TV do tipo “leve tudo o que conseguir agarrar”, listas improvisadas dos melhores filmes de todos os tempos (segundo cada ator e diretor) e ensaio de psicanálise vertical dos homens e mulheres do cinema. 

'Os Olhos Sem Rosto' 1960), filme de Georges Franju Foto: The Criterion Collection

As regras do jogo não são muito claras. Quantos DVDs o cinéfilo pode levar? Quantos minutos ele pode ficar no closet fazendo suas escolhas, os seus picks? A maioria parece acatar a suposta regra de que podem escolher cinco ou seis de seus filmes favoritos “ao vivo” num prazo médio de cinco minutos. Outros – como o filósofo cinéfilo Slavoj Zizek – quebram a regra e escolhem seus filmes antes da gravação: passam uns 40 minutos fazendo seus picks e depois dedicam os 5 minutos gravados aos comentários dos filmes. 

Há quem seja modesto e pegue apenas dois ou três filmes, como o ator Alec Baldwin, que se encontrava de passagem por Nova York atuando numa peça da Broadway; ou o cineasta alemão Volker Schlöndorff, que conta já estar de retorno à sua casa com uma mala pequena. 

Outros se entregam à gula cinéfila e enchem sem qualquer pudor suas sacolas, como o diretor sul-coreano

Bong Joon-ho

, o cineasta negro

Barry Jenkins

, os independentes irmãos cineastas Josh e Benny Safdie – geralmente artistas jovens e ambiciosos, que ainda não possuem um grande acervo. O diretor mexicano

Guillermo del Toro

, por exemplo, foi modesto: levou apenas meia dúzia de DVDs, pois já havia adquirido toda o acervo da Criterion... 

O jovem cineasta argentino Matías Piñeiro – que encheu sua sacola até a borda – sentiu-se num programa de auditório de seu país, no qual o convidado tem apenas cinco minutos para levar o que puder de um supermercado: “Estou certo que um programa desse tipo deve ter aqui também”, apostou. Há em todo mundo, pois assisti criança a programas assim e até hoje os brasileiros podem ver a atração requentada em Comprar é Bom, Levar é Melhor no

Domingo Legal

do SBT. Ou seja, o

Closet Picks

da Criterion Collection é a versão intelectual do clássico da fantasia televisiva de terror psicológico do consumismo.

Um dos cinéfilos mais desesperados – e com o qual eu mais me identifico – é o extraordinário cineasta marginal canadense Guy Maddin, que vai jogando para dentro de sua sacola todo DVD que vê pela frente fechado no Closet dizendo “Bag!” (Sacola!). O seu foi o primeiro das dezenas de

Closet Picks

que vi ao longo dos anos, e o mais engraçado de todos para mim até hoje. Não canso de ver e rever.

Enquanto escolhem os DVDs e Blurays Criterion de seus filmes prediletos, que os marcaram de uma forma ou de outra, ou que desejam presentear alguém especial, os cineastas e atores recordam pequenos eventos e histórias pessoais encantadoras pelo simples fato desses cinéfilos serem quem são. 

O jovem cineasta britânico Edgar Wright ao ver o DVD de

Os Olhos sem Rosto (Les Yeux sans Visage

, 1960), de Georges Franju, contou que seu pai sempre lhe falava do filme mais horripilante que vira em toda sua vida: um filme francês, em preto e branco, sobre um cirurgião que retirava os rostos de jovens sequestradas para transplantá-los no da filha desfigurada num acidente de carro, em cenas de puro horror. Só não conseguia lembrar o título. 

Cinco anos atrás, ao ver o filme de Franju num cinema, Wright descobriu ser aquele o tão espantoso filme mencionado por seu pai. Tudo se encaixava. Telefonou então triunfante para ele dizendo: “Pai, descobri o nome daquele seu filme. Ele se chama

Os Olhos sem Rosto

”. Mas o pai respondeu: “Não... O título do filme não é esse, não...”. Agora ele poderia presentear o pai com o DVD para provar que aquele era o título do filme, sim.

Outra pequena história maravilhosa é contada por Philip Kaufman ao tocar no Box Jean Renoir da Criterion: “Certa vez, num cinema de Los Angeles, cheguei um pouco atrasado para a estreia de um filme, e me sentei, afobado, ao lado de um senhor alto. O filme já começava quando outro senhor atrasado disse para a pessoa ao lado: “Olá, Fritz”. E esse respondeu: “Olá, Jean”. Então eu percebi, de um golpe, que estava sentado ao lado de Jean Renoir e de Fritz Lang!”

Ter nas mãos o DVD de uma obra-prima do cinema é como tocar com os dedos algumas de nossas memórias mais preciosas, trazendo novamente à tona, juntamente com essas memórias, as emoções decantadas que permanecem vivas no fundo de nossas almas, de quando vivemos o momento mágico e irrepetível de ver os filmes que marcaram nossas vidas na tela escura do cinema. 

Levar para casa o DVD do filme amado traz ao cinéfilo a ilusão tão necessária à sua esperança de que ele pode de alguma forma preservar vivas as emoções que experimentou ao vê-lo pela primeira vez, ainda que de forma espúria e solitária, antes que elas desapareçam para sempre, “como lágrimas na chuva”. 

É o que explica a emoção autêntica que vemos nesses jovens e veteranos cinéfilos caindo na armadilha do Closet da Criterion Collection, que parece pedir a crianças agitadas que se comportem como adultos diante de uma montanha de doces deliciosos que lhes são oferecidos, podendo retirar dela e levar consigo para casa apenas meia dúzia dessas guloseimas.

*LUIZ NAZARIO É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA DO CINEMA NA UFMG E AUTOR DE ‘O CINEMA ERRANTE’ (PERSPECTIVA)

 

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