Com o Armistício de Compiègne, em 11 de novembro de 1918, encerrou-se a 1.ª Guerra Mundial. Como Dalton Trumbo mostra em Johnny Vai à Guerra (Biblioteca Azul), esse conflito começou “como um festival de verão”: “Milhões e milhões saudavam das calçadas enquanto altezas imperiais, eminências, marechais de campo e outros tolos semelhantes desfilavam pelas capitais da Europa à frente de suas reluzentes legiões.” Não tardou, porém, para que a banalização da morte com bombas, aviões e metralhadoras chocasse quem estava acostumado às batalhas romantizadas com espadas e baionetas. No centenário do fim da guerra que iria acabar com todas as guerras, o leitor brasileiro poderá ter contato com livros novos e reedições que narram essa tragédia humana, alguns de uma perspectiva histórica e outros trazendo o ponto de vista das trincheiras.
Ernest Hemingway foi motorista de ambulância – vivência que inspirou Adeus às Armas –, mas foi ferido após um ataque de morteiro no front italiano e voltou para casa; E. M. Forster serviu a Cruz Vermelha no Egito, entrevistando feridos para obter informações sobre desaparecidos; T. E. Lawrence foi um dos líderes da Revolta Árabe contra o Império Otomano, com feitos militares que lhe renderam a alcunha de Lawrence da Arábia. Além da participação na contenda, esses escritores têm outro ponto em comum: acotovelam-se entre os fãs de Soldados Rasos, do australiano Frederic Manning (1882-1935) lançado no Brasil pela primeira vez pela Carambaia.
Durante e após a guerra, surgiu uma safra de obras saídas diretamente das trincheiras, começando por Under Fire, publicado por Henri Barbusse em 1916, que não se abstinha de explicitar o horror e a violência física do conflito. Com o termo “shell shock”, cunhado na época para descrever o transtorno de estresse pós-traumático dos soldados que retornavam da guerra, as experiências dos sobreviventes ganharam as páginas dos livros nos anos subsequentes.
Três Soldados, de John dos Passos, Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, e a série Memoirs, de Siegfried Sassoon, são alguns exemplos. Viagem ao Fim da Noite, de Louis-Ferdinand Céline, que na 2.ª Guerra Mundial apoiaria Hitler, é ainda hoje um de seus livros mais contundentes. O mais celebrado livro dessa cepa, no entanto, foi mesmo Soldados Rasos, na época lançado de maneira anônima – mais tarde, sua autoria foi “desmascarada” por T. E. Lawrence, que reconheceu a prosa de Manning.
A obra narra a história do soldado raso Bourne, quase um alter ego do autor. Mesmo sendo filho do ex-prefeito de Sydney e tendo trânsito entre nomes como Ezra Pound e W.B. Yeats, Manning foi integrado ao 7.º Batalhão Real de Infantaria Leve de Shropshire e, em 1916, lutou às margens do Rio Somme, na França, onde J.R.R. Tolkien, também combateu – aliás, o cineasta Peter Jackson, que adaptou O Senhor dos Anéis, dirige They Shall Not Grow Old, documentário com imagens restauradas da 1.ª Guerra Mundial que vai ao ar pela BBC nesse domingo, no centenário do armistício.
Embora as cenas de ação descritas em Soldados Rasos transmitam uma veracidade crua somente alcançável pelo contato direto de Manning com a carnificina, o mais interessante é quando ele transporta o leitor para o interior da cabeça do soldado, para o “conflito moral e espiritual, quase sobre-humano em sua agonia, dentro dele”. Esses dramas silenciosos são mais impactantes do que qualquer violência física. “Desde o momento em que tinha se jogado com o escocês no buraco de bomba, alguma coisa mudara dentro dele; o conflito que tumultuava seus pensamentos aparentemente tinha ido embora; sua mente parecia tê-lo abandonado, contraindo-se e enrijecendo-se dentro dele; o medo permanecera, um temor implacável e inquieto, mas que também, como se tivesse sido malhado e forjado até um ponto de sensibilidade requintado, se tornara indistinguível do ódio.”
No entanto, Soldados Rasos não é um simples libelo ou manifesto antiguerra. Seu mérito é salientar que a batalha não era feita de generais, mas de anônimos que morriam sem compreender exatamente o motivo de seus sacrifícios. Quando Bourne transita entre os homens e ouve suas lamúrias, dá voz às mais distintas opiniões em uma polifonia. Um sargento, por exemplo, questiona os subordinados: “O que importa se for morto? Um dia você vai ter de morrer. Você tem a chance de fazer alguma coisa nessa vida, e algumas vezes isso é tudo. Alguns falam sobre a guerra ser um maldito desperdício; mas não estou muito certo disso.” Uma camponesa sentia “que a guerra parecia tão natural e inevitável quanto uma enchente ou um terremoto.” Já um soldado raso reclama sobre seu superior: “Ele nos fala de liberdade, de lutar por nossa pátria, por nosso futuro, e assim por diante, mas o que eu quero saber é por que lutamos…”
Cada capítulo começa com uma epígrafe de Shakespeare, e, assim como o Bardo sempre contrapõe o desejo individual de seus personagens à pressão social das instituições, Manning explicita o descompasso entre a vontade de sobreviver de um soldado e a demanda insaciável da guerra por vítimas. É esse conflito entre o anseio particular e a obrigação militar que assola o protagonista Joe de Johnny Vai à Guerra, de Dalton Trumbo. “Você está sendo nobre e depois de ser morto a coisa pela qual você trocou a vida não vai lhe servir pra nada”, pensa ele, deitado numa cama de hospital sem seus braços e pernas, sem visão, audição ou fala.
Abdicando das vírgulas em prol de uma prosa frenética, Trumbo verbaliza essa desarmonia entre indivíduo e sociedade no fluxo de consciência de Joe: “Essa não era uma guerra para você. Você não tinha nada a ver com isso. O que é que lhe importa tornar o mundo um lugar seguro para a democracia? Tudo o que você queria Joe era viver. Você nasceu e cresceu na boa e saudável terra do Colorado e tinha tanto a ver com a Alemanha ou a Inglaterra ou a França ou mesmo com Washington D. C. como com o homem na lua.”
A mecanização da morte é ilustrada com ironia fina por Trumbo ao citar o discurso de um professor de Joe antes da guerra: “O avião disse o sr. Hargraves iria reduzir as distâncias entre as nações e povos. O avião seria um grandioso instrumento para fazer as pessoas compreenderem umas às outras e amarem umas às outras. O avião disse o sr. Hargraves estava anunciando uma nova era de paz e prosperidade e entendimento mútuo.” Na verdade, o avião foi uma ferramenta de morte e destruição na Grande Guerra, percebe Joe, cujo corpo vai sendo tragado em uma lenta agonia. O livro deu origem ao filme homônimo de 1971, dirigido pelo próprio Trumbo.
Assim como Frederic Manning e Dalton Trumbo, o húngaro Andreas Latzko mantém sua narrativa ao rés do chão no livro Homens em Guerra, publicado em 1927 e lançado no Brasil pela Carambaia em 2015. Diferente da literatura de guerra que vigorava até o século 19, de Stendhal a Tolstoi, retratando os salões da nobreza, os generais e as intrigas políticas e palacianas, Latzko dá voz aos maltrapilhos que de fato fazem a guerra acontecer. Os seis contos que integram Homens em Guerra abordam o cotidiano dos soldados e a manipulação de informações do front que chegam aos civis, mas têm um enfoque no drama dos feridos e no retorno para casa dos desvalidos que não se sentem pertencentes à sociedade depois da carnificina.
Outros lançamentos abordam a guerra por ângulos que não são o dos combatentes. Três vezes indicada ao Man Booker Prize, Sarah Waters ambientou seu livro mais recente, Os Hóspedes (Rocco), nos anos 1920, com uma protagonista que ainda lamenta a morte de seus irmãos no conflito, e mostra as consequências para quem esteve indiretamente ligado ao evento nos anos que o seguiram. Já os historiadores Daniel Schönpflug e Niall Ferguson também têm livros chegando às prateleiras no centenário do armistício: respectivamente, o inédito A Era do Cometa (Todavia) e O Horror da Guerra, reeditado pelo selo Crítica, da Planeta.
Passados cem anos do confronto que mudou o jeito de se fazer guerra para sempre, o mundo ainda tem o que refletir com o período, especialmente após tantos conflitos que aconteceram e ainda ocorrem desde então. “Ninguém além dos mortos sabe se vale mesmo a pena morrer por todas essas coisas”, escreve Trumbo. “Alguém lhe deu um tapinha no ombro e disse venha comigo garoto você vai para a guerra. E você foi. Mas por quê?”, reflete Joe em seu leito. A pergunta que não quer calar nos silencia há um século.