Só os dogmáticos não veriam a reversão da utopia em distopia e da revolução em Estado policial e escravidão após a leitura de Arquipélago Gulag, obra-prima do escritor russo Alexander Soljenitsyn (1918-2008), premiado com o Nobel de Literatura em 1970. A sigla Gulag refere-se à Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias, um eufemismo para a criminalidade estatal que, durante o auge da repressão sob o punho de Josef Stalin (1878-1953), sequestrou e prendeu, assassinou, deportou e escravizou milhões de inocentes na União Soviética. O arquipélago Gulag, nesse sentido, diz respeito a um verdadeiro sistema de articulação entre múltiplos campos de trabalhos forçados espraiados pela Sibéria e órgãos de espionagem e repressão – na sociedade soviética acossada pelo stalinismo, as arbitrariedades se capilarizavam da onipresença da polícia política até as delações cotidianas feitas por vizinhos e professores, amantes e amigos.
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Os sobreviventes cujas cartas municiaram a obra de Soljenitsyn relatam que os carrascos siberianos coagiam os prisioneiros a trabalhar a -40ºC. Quando o General Inverno fustigava os condenados a -45ºC, a compaixão dos verdugos suspendia os trabalhos em prol do respeito aos direitos humanos. Não à toa, Soljenitsyn sentencia que, em meio à pátria do Gulag, “quem diz lei diz crime”. É assim que, para a repressão stalinista, tudo o que é sagrado é profanado. Eis o que Soljenitsyn nos revela sobre o niilismo soviético: “Nada existe de sagrado na busca do domicílio! Quando prenderam o maquinista ferroviário Vitkónski, encontrava-se no quarto uma criança que acabara de morrer. Os ‘juristas’ não se furtaram a revistar o corpo da criança. Eles dão safanões nos doentes de cama e tiram as ligaduras que lhes cobrem as feridas. (...) Um encanador desligava o rádio do seu quarto sempre que transmitiam intermináveis cartas a Stalin. Um vizinho denunciou-o (onde estará agora esse vizinho?) como elemento socialmente perigoso: oito anos de prisão. (...) As prisões políticas no nosso país singularizaram-se pelo fato de serem detidas pessoas em nada culpadas e, por isso mesmo, despreparadas para oferecer resistência”.
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Se quisermos refletir, sem dogmatismo, sobre as tragédias históricas – ou pior, sobre a história como tragédia – que deportaram a utopia da sociedade soviética, deveremos nos lembrar de uma admoestação de Soljenitsyn: “Aquele que recorda o passado perde um olho! E, no entanto, o provérbio acrescenta: aquele que o esquece perde os dois!” Sendo assim, como esquecer que a pujança do capitalismo ocidental se assentou, historicamente, sobre o dorso da escravidão? Como esquecer que o ouro extraído com o sangue e o suor negros das Minas Gerais acabou financiando, com a mediação colonial de Portugal e Inglaterra, a eclosão da Revolução Industrial? (Aqueles que conhecem os descaminhos da história – ou pior, a história como descaminho – não deixam de admirar a e de sentir calafrios diante da beleza de Ouro Preto, cidade elevada a patrimônio cultural da humanidade. Desde seu nome, Ouro Preto funde a beleza à culpa, o belo ao bélico.)
Ademais, os ataques atuais à democracia mundo afora, aliados ao radical desenvolvimento tecnológico, nos permitem pensar que os organismos de espionagem e repressão da finada União Soviética já se tornaram anacrônicos. Com a ubiquidade dos satélites, drones e algoritmos para rastrear conversas online e offline, o direito à privacidade transforma-se em um fóssil relegado a futuros arqueólogos. Nesse sentido, eis o que nos diz o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã (2015), obra que pode ser interpretada como uma versão atualíssima do Arquipélago Gulag: “Hoje, nos Estados Unidos, há mais gente lendo livros digitais do que impressos. Dispositivos como o Kindle são capazes de coletar dados de seus usuários enquanto eles estão lendo o livro. O seu Kindle pode monitorar quais partes do livro você lê depressa ou devagar; em que página ou frase você abandonou a obra. Se o Kindle tiver um upgrade para reconhecimento facial e sensores biométricos, pode saber como cada frase influencia seu batimento cardíaco e sua pressão sanguínea. O que o faz rir, o que o deixa triste e o que lhe provoca raiva. Logo os livros estarão lendo você enquanto você os lê. E, considerando a possibilidade de você esquecer rapidamente a maior parte do que lê, o Kindle jamais esquecerá nada a seu respeito”.
Diante da colonização da mente para muito além da submissão do corpo, as instâncias atuais de poder nos fazem sentir a nostalgia do Gulag. Afinal, como resistiremos à dominação que transforma as sentinelas dos antigos campos de concentração em arame farpado ao redor de nossa imaginação?
*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com estágio doutoral na Northwestern University (EUA)