E a 14.ª Mostra de Tiradentes teve ontem à noite um programa especial formado por três dos títulos mais atraentes da programação. Dois integram a mostra Aurora, menina dos olhos de Tiradentes, voltada à experimentação e formada por filmes de novos realizadores - Os Residentes, de Tiago Mata Machado, e Santos Dumont: Pré-Cineasta?, de Carlos Adriano. Entre ambos, passou Os Monstros, dos cearenses Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti e Pedro Diógenes, vencedores de 2010, com o admirável Estrada para Ythaca.O filme do mineiro Tiago Mata Machado já havia provocado uma discussão tola em Brasília. Seria a obra de um êmulo de Jean-Luc Godard nos anos 1960, uma espécie de vanguarda à retaguarda, mas a leitura é de quem não tem capacidade de analisar o que há denso - e essa densidade nem Godard tem, na maioria das vezes - na discussão dos problemas do casal moderno. Os Residentes está indo a Berlim, para o Forum.Carlos Adriano, o Godard brasileiro, radicaliza na experimentação em seu documentário que parte da descoberta e restauração de um carretel de fotografias reproduzidas de um filme mutoscópico de 1901, em Londres, quando Santos Dumont mostrou os planos de seu dirigível para o honorável C.S. Rolls. Embora Carlos Adriano colha depoimentos de especialistas, seu filme está longe de possuir estrutura convencional. O que lhe interessa ao autor é a articulação poética em torno da investigação de linguagem. Há um momento deslumbrante (um videoclipe que anima as imagens centenárias), mas o grau de elaboração esforça-se em tornar árduo o que era prazeroso em, por exemplo, Remanescências, do próprio Carlos Adriano.Na terça à noite, a mostra Aurora exibiu Remissões do Rio Negro, de Erlan Souza e Fernanda Bizarria. O filme trata das missões salesianas e do seu papel no processo de colonização dos índios na região amazônica. O personagem central é o padre Casimiro Beksta, que se volta sobre o material que colheu, há mais de 40 anos. Há um agradecimento final a Jorge Bodanzky, mas ele está aqui em Tiradentes e não tem opinião muito lisonjeira - por mais crítico que o filme seja aos salesianos, não aborda a denúncia de abusos sexuais, que levou os religiosos a serem réus no Tribunal Bertrand Russell. Fernanda diz que o objetivo nunca foi a denúncia pela denúncia e que lhe pareceu leviano fazer acusações que ela não conseguiria aprofundar (nem com os próprios acusadores). O filme contrapõe passado e presente, discute a repressão da Igreja e a linguagem. O padre e os índios falam mau português. Não é mera coincidência. O padre permanece, tanto tempo depois, um estrangeiro. Os índios são estrangeiros na própria terra. Uma difícil tentativa de comunhão, no desfecho, torna Remissões comovente. É um belo filme.