O tão distante mundo dos heróis está vivo: a poesia atribuída a Homero (séc. 8 a.C.)., que o presentifica, vem sendo renovada, ao longo do tempo, por sucessivas traduções. Deixando de lado as versões em prosa e as adaptações, contamos, hoje, com quatro traduções integrais em verso da Ilíada e cinco da Odisseia realizadas por brasileiros: Manoel Odorico Mendes (1799-1864) traduziu ambos os poemas em versos decassílabos; Carlos Alberto Nunes (1897-1990), ambos no metro original; Haroldo de Campos (1929-2003), a Ilíada em dodecassílabos; Donaldo Schüler, a Odisseia em versos livres; Trajano Vieira, a Odisseia em dodecassílabos; Christian Werner, os dois poemas em versos livres.
Recentemente lançada pela editora Ubu, a Ilíada traduzida por Werner vem associar-se à sua Odisseia, de 2014, da qual também se realiza agora uma edição revista. Ambos os tomos – que contêm textos de apresentação das epopeias, bem como da tradução – podem ser adquiridos em conjunto, acondicionados numa caixa.
O trabalho de Werner resulta de persistente estudo da poesia homérica, desenvolvido durante sua atuação como professor de língua e literatura gregas na USP. Como era de se esperar, sua tradução é refletida e orientada por questões reiteradamente discutidas no campo dos estudos clássicos, como a natureza oral da composição homérica e o uso de expressões formulares, as quais, como observa, seriam um “meio expressivo intrínseco a uma forma tradicional de comunicação”, constituindo não “apenas um meio de expressão, mas de performance”.
A antiga tradição da performance oral é, assim, um dos aspectos norteadores da tradução de Werner, que considera, para seus propósitos, a definição de fórmula como “um grupo de palavras repetido na mesma posição de um verso, ou um verso inteiro que reaparece em contextos que, em última instância, são similares”. O tradutor busca na manutenção das fórmulas o meio de trazer o mundo épico aos leitores de hoje, que teriam a oportunidade de “experimentar um distanciamento significativo de seu tempo, lugar e linguagem cotidiana por meio de uma combinação particular de familiaridade e estranheza”.
Esse seria um modo, portanto, de contribuir para a eterna revivescência da poesia que é, ela mesma, “a permanência do mundo dos heróis”: “a poesia congela o momento da morte de um guerreiro cujo nome, sem ela, desapareceria”. O que resta a guerreiros como o troiano Heitor e o grego Aquiles, destinados à morte violenta, “é participar de um poema no qual essa violência é, de alguma forma, transformada em beleza”.
Como observa o também tradutor Trajano Vieira, professor de língua e literatura gregas na Unicamp, em seu prefácio à tradução da Ilíada por Haroldo de Campos (2003), Aquiles, quando apresentado – surpreendentemente – por Homero como aedo no canto 9 do poema, no qual canta e toca lira, “percebe que há equivalência entre a eternidade da poesia e a do guerreiro”. Para Vieira, “ambos, herói e poeta, trabalham para superar a transitoriedade. Daí a insistência homérica em afirmar, a todo instante, o caráter transtemporal dos feitos heroico e poético”.
Ao escolher o modo de recriar a poesia homérica, o tradutor expressa suas convicções sobre o que a torna “transtemporal”, e sua recriação perseguirá, portanto, o seu próprio caminho de permanência. No caso das traduções de Werner, busca-se, segundo ele, conferir-lhes as características principais de “clareza, fluência e poeticidade”. O tradutor considera que a estranheza a ser necessariamente propiciada pelo texto – pois quem o lê “precisa sentir que está entrando em um mundo muito diferente do seu”, já que a “linguagem homérica também era especial para os gregos” – não deve impedir que o leitor, uma vez familiarizado com a dicção empregada, “entre no mundo que está sendo recriado”. A “linguagem especial” utilizada na tradução caracteriza-se, principalmente, pelo uso de adjetivos compostos por justaposição, para reprodução dos epítetos (definidores de atributos de um herói ou uma divindade), como “treme-terra”, “caro-a-Ares”, “alvos-braços”, “doma-cavalo”. Tal expediente, diga-se, já fora usado, de maneira não uniforme como neste caso, por Haroldo de Campos (“treme-terra”, por exemplo, é epíteto de Poseidon na Ilíada haroldiana). Esse modo de formação difere das construções adjetivais que caracterizam a tradução de Odorico Mendes, por vezes considerada difícil, mas cujas concisão e inventividade contribuíram para a qualificação do tradutor como referência na história da recriação poética no país, após a revisão de sua obra empreendida por Campos.
Quanto à poeticidade, Werner responde ao metro fixo do original – o hexâmetro datílico – com a proposta de criação de “certo ritmo discursivo” por meio da utilização de fórmulas e da decorrente distribuição de sintagmas no verso. Se é possível reconhecer alguma rítmica, em sentido amplo, presente no discurso, constata-se, também, a aproximação com a prosa e o distanciamento de um ritmo propriamente versificatório e da musicalidade a ele associada, tão perceptíveis na poesia grega. De certo modo, a proposição opõe-se a soluções como a de Carlos Alberto Nunes, que privilegiou a correspondência ao ritmo do verso grego. Também não se vale, muito, da sonoridade das palavras e das oportunidades de associação entre som e sentido exploradas nas traduções anteriores. Entendo que uma tradução deva ser apreciada, centralmente, considerando-se os objetivos a que se propõe: no caso desta, certamente a importância dada ao quesito “fluência” é determinante para o resultado obtido pela versificação livre.
Se há eficiência na concepção das expressões formulares, há também momentos que parecem acomodar-se a soluções menos criativas, caso desta expressão relativa ao mar, cuja qualidade sonoro-melódica foi destacada por Ezra Pound: no verso 34 do Canto 1 da Ilíada, Werner vale-se, para “polyphloísboio thalásses”, da solução antes adotada por Carlos Alberto Nunes: “mar ressoante”. Para tal expressão – mencione-se, ilustrativamente – Odorico usou “fluctissonantes praias” e Campos, “políssonas praias”.
Os propósitos centrados na leitura fluente e na “reprodução do sentido do verso original no verso em vernáculo” não impedem, contudo, sequências esteticamente felizes como a desta fala de Agamêmnon a Nestor (Ilíada, 2, 370-374): “De novo vences os filhos de aqueus no discurso, ancião. / Oxalá, por Zeus pai, Atena e Apolo,/ tivesse eu dez conselheiros aqueus desse porte:/ então rápido se vergaria a cidade do senhor Príamo,/conquistada e pilhada por nossas mãos./Dores deu-me, porém, Zeus, o Cronida porta-égide/ que me lança em brigas e disputas infrutíferas./ Pois eu e Aquiles, por causa de uma jovem, pelejamos/com palavras confrontantes.”Ou a desta fala de Odisseu a Alcínoo, rei dos feácios (Odisseia, 13, 38-43): “Poderoso Alcínoo, insigne entre todos os povos,/conduzi-me, incólume, após libarem, e alegrai-vos./Pois já se completou o que meu caro ânimo queria,/condução e caros dons: que esses os deuses celestes/me tornem afortunados; em casa, a impecável consorte,/após retornar, eu encontre com os meus, ilesos.”
Assim como Odisseu, o polytropon – “Do varão me narra, Musa, do muitas-vias”, na forma adotada por Werner para o início da Odisseia –, a tradução propicia, para escolha de quem nela se embrenha, caminhos múltiplos. As recriações ora oferecidas ao leitor percorrem um trajeto com princípios, meios e fins definidos. Pelas possibilidades, além da fruição literária, de sua utilização didática como suporte à leitura do original – devido a suas características –, é lamentável que a edição não tenha enfrentado o desafio de ser bilíngue; fica a sugestão para chances futuras.*MARCELO TÁPIA É POETA E ENSAÍSTA, DOUTOR EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA PELA USP