Livro dá nova pista sobre o caso da judia Anne Frank


‘The Betrayal of Anne Frank’ investiga a famosa história da dona dos diários aclamados na literatura

Por Alexandra Jacobs

O título do novo e importante livro de Rosemary SullivanThe Betrayal of Anne Frank [A traição de Anne Frank] ressoa para muito além de seu significado primário. Sullivan narra a investigação de um caso arquivado, o mistério não resolvido desde o verão de 1944: quem alertou as autoridades sobre o esconderijo de Frank, sua família e outros quatro judeus, aquele espaço oculto acima de um armazém de pectina e especiarias na Amsterdã ocupada pelos nazistas? A denúncia resultou na sua prisão e deportação para campos de concentração. Duas investigações oficiais, iniciadas em 1947 e 1963, não conseguiram descobrir a identidade do informante, e o assunto ocupou vários biógrafos desde então. Sullivan escreve com absoluta dedicação e rigor, trazendo à tona um suspeito até então obscuro.

Mas Frank, que morreu de tifo em Bergen-Belsen, aos 15 anos, dias depois da morte de sua irmã, Margot, foi traída de muitas maneiras. Alguns diriam que foi traída, em primeiro lugar, por ter seus diários publicados, no ano de 1947, por seu próprio pai, Otto Frank, proprietário do armazém na Prinsengracht 263 e único sobrevivente do grupo. Ele cortou passagens que foram restauradas em edições posteriores. (Mais recentemente, temas sexuais leves e rebeldias de Anne contra sua mãe, Edith, animaram leituras em comunidades escolares que antes descartavam a obra por ser “muito deprimente”).

História de Anne Frank é contada no documentário. Foto: Netflix 
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Ainda assim, Anne Frank queria fervorosamente ser escritora profissional e revisara seus diários com uma possível publicação em mente. Mais questionáveis do que qualquer variação em seu texto são os spinoffs que resultaram de seu sucesso global: peças, filmes, musicais, uma adaptação em quadrinhos, um livro infantil narrado do ponto de vista de um gato, uma série do YouTube que a reimagina com uma câmera de vídeo em vez de uma caneta, cartões postais, sacolas de algodão – a franquia Anne Frank. Muitas vezes ela foi idealizada como símbolo do indomável espírito humano, em vez de contextualizada como uma vítima de genocídio que merece justiça.

Sullivan, poeta e premiada autora de livros como Stalin’s Daughter e Villa Air-Bel, sobre um esconderijo em Marselha durante a Segunda Guerra Mundial, está bastante qualificada para trazer os leitores de volta à realidade. Ela conta com a ajuda do cineasta Thijs Bayens e do jornalista e pesquisador Pieter van Twisk, que Sullivan descreve como alguém que tem “a acidez de todos os bibliófilos”. Em 2016, Bayens e van Twisk, ambos holandeses, contrataram Vince Pankoke, um agente do FBI aposentado que mora na Flórida e “ainda parece estar vivendo disfarçado, um sujeito manso e anônimo de camisa de linho”. Eles montaram uma equipe internacional de criminologistas para casos arquivados: cientistas comportamentais, forenses, sociais e de dados; psicólogos; um especialista em caligrafia; um rabino; e muitos outros colaboradores, entre eles um jovem estudante que se perguntou, em um dos poucos momentos mais leves da narrativa: “O que é uma lista telefônica?”. E eles adorariam ouvir qualquer informação que você possa ter.

A equipe usou técnicas modernas de big data e um programa de inteligência artificial desenvolvido pela Microsoft, bem como relatórios antigos encadernados em couro. Conduziu dezenas de entrevistas, vasculhou arquivos públicos e privados e guardou os recibos – geralmente recibos reais, graças ao registro diligente dos caçadores de recompensas alemães. Mesmo que tenha a forma de uma série policial, The Betrayal of Anne Frank vibra com história, calor humano e indignação. Ao longo de oito décadas e quase quatrocentas páginas, vai da perpetração de um crime obscuro e insidioso até nobre jornada de investigação com transparência algorítmica.

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Bayens e companhia ficaram chocados ao descobrir o que Sullivan descreve secamente como um “grau de acrimônia entre as várias partes interessadas no legado de Anne Frank”. Seu livro também parece despertar o desgosto da Fundação Anne Frank da Basileia, Suíça – uma das duas organizações de caridade fundadas por Otto Frank – que há muito protege agressivamente sua parte dos complicados direitos autorais internacionais dos diários e não quis cooperar com a equipe de investigação; um executivo chegou a berrar durante uma reunião inicial, dizendo que os investigadores não podiam usar o nome de Anne. A outra organização, a Fundação Anne Frank de Amsterdã, que transformou o Prinsengracht 263 em um museu movimentado, foi muito mais útil, escreve Sullivan.

Aqui vão os nomes de possíveis informantes, segundo várias teorias: Willem van Maaren, um gerente de armazém “suspeitamente curioso”; Lena Hartog, a esposa supostamente fofoqueira de seu assistente; Job Jansen, um ex-funcionário que chamou Otto Frank de traidor por ousar insinuar durante um encontro casual na calçada que o Terceiro Reich poderia perder a guerra; e um “sujeito obscuro” e “oportunista arrogante” chamado Anton Ahlers. Outros candidatos: uma “V-Frau” judia chamada Ans van Dijk – “v” significava vertrouwens, a palavra holandesa para “confiança” – que entregava outros judeus para evitar ser deportada; e Nelly Voskuijl, irmã de uma mulher que ajudara a esconder os Frank, que andava com os inimigos e sofria de desmaios súbitos.

Pelo menos um historiador sugeriu que não houve informante nenhum, que a polícia foi ao armazém para procurar cartões de racionamento falsificados ou violações trabalhistas e encontrou o anexo secreto escondido atrás de uma estante de livros, talvez percebendo as marcas que o móvel tinha deixado no chão. Sullivan aventa todas essas possibilidades como uma Agatha Christie com Zoom e máquina do tempo. Um misto de mundanidade e terror se faz muito presente nos detalhes – como o que acontecia quando a empresa de mudanças dirigida por Abraham Puls vinha buscar os pertences dos deportados. Os vizinhos, boquiabertos, chamavam a cena de gepulst (algo como “ser pulsado”).

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No fim, a equipe segue a trilha até Arnold van den Bergh, um próspero notário judeu holandês apontado em uma carta anônima para Otto Frank a qual foi descoberta na investigação de 1963 e recebe novo escrutínio forense nestas páginas. O argumento que os investigadores defendem para culpar van den Bergh é convincente, ainda que não conclusivo. “Realmente acredito a investigação e interpretação do passado não é um exercício finito”, escreve Pankoke no posfácio.

Felizmente, depois do posfácio vem um glossário. A banalidade do mal que Hannah Arendt identificou provocativamente em Adolf Eichmann é substituída nestas páginas pela burocracia do mal, que muitas vezes é também “a burocracia do absurdo”, como Sullivan observa: uma sopa de letrinhas de agências que ajudaram os mais vis crimes contra a humanidade se tornarem pseudolegais e sistemáticos. Os nomes e termos vão se acumulando e a mente chega a se confundir. Mas os fatos da vida devastadoramente abreviada de Frank exigem a atenção. Aqui, seu famoso diário não é uma obra literária para ser explorada à vontade, mas o Anexo A de uma montanha de evidências condenatórias.

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The Betrayal of Anne Frank: A Cold Case Investigation

Rosemary Sullivan

Harper/HarperCollins Publishers - 383 páginas - US $29.99

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Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O título do novo e importante livro de Rosemary SullivanThe Betrayal of Anne Frank [A traição de Anne Frank] ressoa para muito além de seu significado primário. Sullivan narra a investigação de um caso arquivado, o mistério não resolvido desde o verão de 1944: quem alertou as autoridades sobre o esconderijo de Frank, sua família e outros quatro judeus, aquele espaço oculto acima de um armazém de pectina e especiarias na Amsterdã ocupada pelos nazistas? A denúncia resultou na sua prisão e deportação para campos de concentração. Duas investigações oficiais, iniciadas em 1947 e 1963, não conseguiram descobrir a identidade do informante, e o assunto ocupou vários biógrafos desde então. Sullivan escreve com absoluta dedicação e rigor, trazendo à tona um suspeito até então obscuro.

Mas Frank, que morreu de tifo em Bergen-Belsen, aos 15 anos, dias depois da morte de sua irmã, Margot, foi traída de muitas maneiras. Alguns diriam que foi traída, em primeiro lugar, por ter seus diários publicados, no ano de 1947, por seu próprio pai, Otto Frank, proprietário do armazém na Prinsengracht 263 e único sobrevivente do grupo. Ele cortou passagens que foram restauradas em edições posteriores. (Mais recentemente, temas sexuais leves e rebeldias de Anne contra sua mãe, Edith, animaram leituras em comunidades escolares que antes descartavam a obra por ser “muito deprimente”).

História de Anne Frank é contada no documentário. Foto: Netflix 

Ainda assim, Anne Frank queria fervorosamente ser escritora profissional e revisara seus diários com uma possível publicação em mente. Mais questionáveis do que qualquer variação em seu texto são os spinoffs que resultaram de seu sucesso global: peças, filmes, musicais, uma adaptação em quadrinhos, um livro infantil narrado do ponto de vista de um gato, uma série do YouTube que a reimagina com uma câmera de vídeo em vez de uma caneta, cartões postais, sacolas de algodão – a franquia Anne Frank. Muitas vezes ela foi idealizada como símbolo do indomável espírito humano, em vez de contextualizada como uma vítima de genocídio que merece justiça.

Sullivan, poeta e premiada autora de livros como Stalin’s Daughter e Villa Air-Bel, sobre um esconderijo em Marselha durante a Segunda Guerra Mundial, está bastante qualificada para trazer os leitores de volta à realidade. Ela conta com a ajuda do cineasta Thijs Bayens e do jornalista e pesquisador Pieter van Twisk, que Sullivan descreve como alguém que tem “a acidez de todos os bibliófilos”. Em 2016, Bayens e van Twisk, ambos holandeses, contrataram Vince Pankoke, um agente do FBI aposentado que mora na Flórida e “ainda parece estar vivendo disfarçado, um sujeito manso e anônimo de camisa de linho”. Eles montaram uma equipe internacional de criminologistas para casos arquivados: cientistas comportamentais, forenses, sociais e de dados; psicólogos; um especialista em caligrafia; um rabino; e muitos outros colaboradores, entre eles um jovem estudante que se perguntou, em um dos poucos momentos mais leves da narrativa: “O que é uma lista telefônica?”. E eles adorariam ouvir qualquer informação que você possa ter.

A equipe usou técnicas modernas de big data e um programa de inteligência artificial desenvolvido pela Microsoft, bem como relatórios antigos encadernados em couro. Conduziu dezenas de entrevistas, vasculhou arquivos públicos e privados e guardou os recibos – geralmente recibos reais, graças ao registro diligente dos caçadores de recompensas alemães. Mesmo que tenha a forma de uma série policial, The Betrayal of Anne Frank vibra com história, calor humano e indignação. Ao longo de oito décadas e quase quatrocentas páginas, vai da perpetração de um crime obscuro e insidioso até nobre jornada de investigação com transparência algorítmica.

Bayens e companhia ficaram chocados ao descobrir o que Sullivan descreve secamente como um “grau de acrimônia entre as várias partes interessadas no legado de Anne Frank”. Seu livro também parece despertar o desgosto da Fundação Anne Frank da Basileia, Suíça – uma das duas organizações de caridade fundadas por Otto Frank – que há muito protege agressivamente sua parte dos complicados direitos autorais internacionais dos diários e não quis cooperar com a equipe de investigação; um executivo chegou a berrar durante uma reunião inicial, dizendo que os investigadores não podiam usar o nome de Anne. A outra organização, a Fundação Anne Frank de Amsterdã, que transformou o Prinsengracht 263 em um museu movimentado, foi muito mais útil, escreve Sullivan.

Aqui vão os nomes de possíveis informantes, segundo várias teorias: Willem van Maaren, um gerente de armazém “suspeitamente curioso”; Lena Hartog, a esposa supostamente fofoqueira de seu assistente; Job Jansen, um ex-funcionário que chamou Otto Frank de traidor por ousar insinuar durante um encontro casual na calçada que o Terceiro Reich poderia perder a guerra; e um “sujeito obscuro” e “oportunista arrogante” chamado Anton Ahlers. Outros candidatos: uma “V-Frau” judia chamada Ans van Dijk – “v” significava vertrouwens, a palavra holandesa para “confiança” – que entregava outros judeus para evitar ser deportada; e Nelly Voskuijl, irmã de uma mulher que ajudara a esconder os Frank, que andava com os inimigos e sofria de desmaios súbitos.

Pelo menos um historiador sugeriu que não houve informante nenhum, que a polícia foi ao armazém para procurar cartões de racionamento falsificados ou violações trabalhistas e encontrou o anexo secreto escondido atrás de uma estante de livros, talvez percebendo as marcas que o móvel tinha deixado no chão. Sullivan aventa todas essas possibilidades como uma Agatha Christie com Zoom e máquina do tempo. Um misto de mundanidade e terror se faz muito presente nos detalhes – como o que acontecia quando a empresa de mudanças dirigida por Abraham Puls vinha buscar os pertences dos deportados. Os vizinhos, boquiabertos, chamavam a cena de gepulst (algo como “ser pulsado”).

No fim, a equipe segue a trilha até Arnold van den Bergh, um próspero notário judeu holandês apontado em uma carta anônima para Otto Frank a qual foi descoberta na investigação de 1963 e recebe novo escrutínio forense nestas páginas. O argumento que os investigadores defendem para culpar van den Bergh é convincente, ainda que não conclusivo. “Realmente acredito a investigação e interpretação do passado não é um exercício finito”, escreve Pankoke no posfácio.

Felizmente, depois do posfácio vem um glossário. A banalidade do mal que Hannah Arendt identificou provocativamente em Adolf Eichmann é substituída nestas páginas pela burocracia do mal, que muitas vezes é também “a burocracia do absurdo”, como Sullivan observa: uma sopa de letrinhas de agências que ajudaram os mais vis crimes contra a humanidade se tornarem pseudolegais e sistemáticos. Os nomes e termos vão se acumulando e a mente chega a se confundir. Mas os fatos da vida devastadoramente abreviada de Frank exigem a atenção. Aqui, seu famoso diário não é uma obra literária para ser explorada à vontade, mas o Anexo A de uma montanha de evidências condenatórias.

Serviço 

The Betrayal of Anne Frank: A Cold Case Investigation

Rosemary Sullivan

Harper/HarperCollins Publishers - 383 páginas - US $29.99

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O título do novo e importante livro de Rosemary SullivanThe Betrayal of Anne Frank [A traição de Anne Frank] ressoa para muito além de seu significado primário. Sullivan narra a investigação de um caso arquivado, o mistério não resolvido desde o verão de 1944: quem alertou as autoridades sobre o esconderijo de Frank, sua família e outros quatro judeus, aquele espaço oculto acima de um armazém de pectina e especiarias na Amsterdã ocupada pelos nazistas? A denúncia resultou na sua prisão e deportação para campos de concentração. Duas investigações oficiais, iniciadas em 1947 e 1963, não conseguiram descobrir a identidade do informante, e o assunto ocupou vários biógrafos desde então. Sullivan escreve com absoluta dedicação e rigor, trazendo à tona um suspeito até então obscuro.

Mas Frank, que morreu de tifo em Bergen-Belsen, aos 15 anos, dias depois da morte de sua irmã, Margot, foi traída de muitas maneiras. Alguns diriam que foi traída, em primeiro lugar, por ter seus diários publicados, no ano de 1947, por seu próprio pai, Otto Frank, proprietário do armazém na Prinsengracht 263 e único sobrevivente do grupo. Ele cortou passagens que foram restauradas em edições posteriores. (Mais recentemente, temas sexuais leves e rebeldias de Anne contra sua mãe, Edith, animaram leituras em comunidades escolares que antes descartavam a obra por ser “muito deprimente”).

História de Anne Frank é contada no documentário. Foto: Netflix 

Ainda assim, Anne Frank queria fervorosamente ser escritora profissional e revisara seus diários com uma possível publicação em mente. Mais questionáveis do que qualquer variação em seu texto são os spinoffs que resultaram de seu sucesso global: peças, filmes, musicais, uma adaptação em quadrinhos, um livro infantil narrado do ponto de vista de um gato, uma série do YouTube que a reimagina com uma câmera de vídeo em vez de uma caneta, cartões postais, sacolas de algodão – a franquia Anne Frank. Muitas vezes ela foi idealizada como símbolo do indomável espírito humano, em vez de contextualizada como uma vítima de genocídio que merece justiça.

Sullivan, poeta e premiada autora de livros como Stalin’s Daughter e Villa Air-Bel, sobre um esconderijo em Marselha durante a Segunda Guerra Mundial, está bastante qualificada para trazer os leitores de volta à realidade. Ela conta com a ajuda do cineasta Thijs Bayens e do jornalista e pesquisador Pieter van Twisk, que Sullivan descreve como alguém que tem “a acidez de todos os bibliófilos”. Em 2016, Bayens e van Twisk, ambos holandeses, contrataram Vince Pankoke, um agente do FBI aposentado que mora na Flórida e “ainda parece estar vivendo disfarçado, um sujeito manso e anônimo de camisa de linho”. Eles montaram uma equipe internacional de criminologistas para casos arquivados: cientistas comportamentais, forenses, sociais e de dados; psicólogos; um especialista em caligrafia; um rabino; e muitos outros colaboradores, entre eles um jovem estudante que se perguntou, em um dos poucos momentos mais leves da narrativa: “O que é uma lista telefônica?”. E eles adorariam ouvir qualquer informação que você possa ter.

A equipe usou técnicas modernas de big data e um programa de inteligência artificial desenvolvido pela Microsoft, bem como relatórios antigos encadernados em couro. Conduziu dezenas de entrevistas, vasculhou arquivos públicos e privados e guardou os recibos – geralmente recibos reais, graças ao registro diligente dos caçadores de recompensas alemães. Mesmo que tenha a forma de uma série policial, The Betrayal of Anne Frank vibra com história, calor humano e indignação. Ao longo de oito décadas e quase quatrocentas páginas, vai da perpetração de um crime obscuro e insidioso até nobre jornada de investigação com transparência algorítmica.

Bayens e companhia ficaram chocados ao descobrir o que Sullivan descreve secamente como um “grau de acrimônia entre as várias partes interessadas no legado de Anne Frank”. Seu livro também parece despertar o desgosto da Fundação Anne Frank da Basileia, Suíça – uma das duas organizações de caridade fundadas por Otto Frank – que há muito protege agressivamente sua parte dos complicados direitos autorais internacionais dos diários e não quis cooperar com a equipe de investigação; um executivo chegou a berrar durante uma reunião inicial, dizendo que os investigadores não podiam usar o nome de Anne. A outra organização, a Fundação Anne Frank de Amsterdã, que transformou o Prinsengracht 263 em um museu movimentado, foi muito mais útil, escreve Sullivan.

Aqui vão os nomes de possíveis informantes, segundo várias teorias: Willem van Maaren, um gerente de armazém “suspeitamente curioso”; Lena Hartog, a esposa supostamente fofoqueira de seu assistente; Job Jansen, um ex-funcionário que chamou Otto Frank de traidor por ousar insinuar durante um encontro casual na calçada que o Terceiro Reich poderia perder a guerra; e um “sujeito obscuro” e “oportunista arrogante” chamado Anton Ahlers. Outros candidatos: uma “V-Frau” judia chamada Ans van Dijk – “v” significava vertrouwens, a palavra holandesa para “confiança” – que entregava outros judeus para evitar ser deportada; e Nelly Voskuijl, irmã de uma mulher que ajudara a esconder os Frank, que andava com os inimigos e sofria de desmaios súbitos.

Pelo menos um historiador sugeriu que não houve informante nenhum, que a polícia foi ao armazém para procurar cartões de racionamento falsificados ou violações trabalhistas e encontrou o anexo secreto escondido atrás de uma estante de livros, talvez percebendo as marcas que o móvel tinha deixado no chão. Sullivan aventa todas essas possibilidades como uma Agatha Christie com Zoom e máquina do tempo. Um misto de mundanidade e terror se faz muito presente nos detalhes – como o que acontecia quando a empresa de mudanças dirigida por Abraham Puls vinha buscar os pertences dos deportados. Os vizinhos, boquiabertos, chamavam a cena de gepulst (algo como “ser pulsado”).

No fim, a equipe segue a trilha até Arnold van den Bergh, um próspero notário judeu holandês apontado em uma carta anônima para Otto Frank a qual foi descoberta na investigação de 1963 e recebe novo escrutínio forense nestas páginas. O argumento que os investigadores defendem para culpar van den Bergh é convincente, ainda que não conclusivo. “Realmente acredito a investigação e interpretação do passado não é um exercício finito”, escreve Pankoke no posfácio.

Felizmente, depois do posfácio vem um glossário. A banalidade do mal que Hannah Arendt identificou provocativamente em Adolf Eichmann é substituída nestas páginas pela burocracia do mal, que muitas vezes é também “a burocracia do absurdo”, como Sullivan observa: uma sopa de letrinhas de agências que ajudaram os mais vis crimes contra a humanidade se tornarem pseudolegais e sistemáticos. Os nomes e termos vão se acumulando e a mente chega a se confundir. Mas os fatos da vida devastadoramente abreviada de Frank exigem a atenção. Aqui, seu famoso diário não é uma obra literária para ser explorada à vontade, mas o Anexo A de uma montanha de evidências condenatórias.

Serviço 

The Betrayal of Anne Frank: A Cold Case Investigation

Rosemary Sullivan

Harper/HarperCollins Publishers - 383 páginas - US $29.99

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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