Thomas Pynchon é uma daquelas criaturas famosas por odiarem a fama – ou ao menos a exposição. Mas, ao contrário de outros VIP contemporâneos, a notoriedade dele não se alimenta apenas de si mesma: aos 80 anos, está entronizado no panteão literário dos EUA.
Só existem dez imagens disponíveis de Pynchon, inclusive um vídeo furtivo de 1997 da CNN, que gerou esta alfinetada do autor: "'Recluso' é um termo criado pela mídia para gente que não gosta de falar com repórteres." Ele serviu a Marinha, frequentou a Universidade de Cornell (onde teve aulas com Vladimir Nabokov), trabalhou na Boeing e escreveu o romance O Leilão do Lote 49 no México, emborcando himalaias de café, cigarros e x-burgers. Em 1974 o Pulitzer recusou-se a premiar aquela obra, considerando-a “ilegível”. Em compensação, o livro embolsou o National Book Award, para cuja cerimônia Pynchon enviou um humorista, o “professor” Irwin Corey (um “professor Raimundo” americano), que proferiu um discurso maluquete de agradecimento. Se brasileiro, a persona de Pynchon talvez fosse uma combinação de, digamos, Raul Seixas com Jânio Quadros.
O Último Grito é o mais recente romance de Pynchon ( saiu nos EUA em 2013). Contexto: o mundo virtual e o 11 de setembro. Auschwitz só despontou na ficção americana 14 anos depois da libertação dos campos de extermínio nazistas – e numa obrinha mixuruca: Eva, de Meyer Levin. Se Adorno tinha perorado que era impossível poetizar o Holocausto, o scholar belga Kristiaan Versluys decretou que a aniquilação das Torres Gêmeas pertencia ao “indizível”. Bem, desde 2001 já proliferaram mais de 150 ficções sobre os atentados, assinadas por colunáveis como Don DeLillo, Julia Glass, William Gibson e Art Spielgman.
A protagonista de O Último Grito é Maxine Tarnow,uma investigadora de fraudes. Ela fuça nos meandros informáticos da empresa tentacular de Gabriel Ice, um plutocrata das startups. Como sempre na Pynchonlândia, aqui não escasseia fabulação: peripécias gorgolejam e personagens saem pelo ladrão. Todos os cacoetes do autor batem ponto: arabescos conceituais abstrusos, manhattanites soltando a franga, vernáculo a dar com um pau, nomes estrambólicos, coincidências reincidentes.
E a mãe de todos os pynchonismos: a teoria da conspiração. Quando um personagem pergunta: “Parece paranoia demais para você?”, o outro ronrona: “Paranoia é o alho na cozinha da vida. Nunca é demais.” É verdade que o universo digital (com seus perfis fakes, hackers, algoritmos abelhudos) parece quase um plágio das obsessões mais arcanas de Pynchon. Por isso mesmo a literatura dele corresponde a uma espécie de Suma Teológica das teorias da conspiração, uma miscelânea de gêneros que fazem uma viagem de circum-navegação na maionese: policial, ficção-cientifica, espionagem, refletindo a própria porosidade estrutural da paranoia. Afinal, qualquer mentecapto pode urdir uma teoria da conspiração. (Eu também tenho uma: Einstein foi assassinado pelo Máfia, porque ele sabia demais.)
O Último Grito tem todo um rodízio de guloseimas literárias. Os diálogos são vapt-vupt (e 70% do texto), salpicados de gírias apetitosas (esplendidamente traduzidas). O narrador sardônico esgrime estocadas de discurso indireto livre (quando a narrativa na terceira pessoa sugere que aquele momento visceral brota do personagem, e não do narrador). E o autor confia tanto em seu taco que a história toda (quase 600 páginas) é narrada no presente simples, mais aconselhável para circunstâncias febris, quando nem o narrador sabe como a cena irá acabar.
Mas nem tudo é “vintage”. A representação da tecnologia é sempre o que caduca mais depressa nos “últimos gritos”. Os mirabolantes programas informáticos de 2001 (que Pynchon cita embevecidamente) hoje já são fósseis cavernícolas. Pior: de um autor deste pedigree, espera-se (pelo menos eu espero) uma espiadinha incisiva (ainda que com o rabo do olho) na prismática condição humana. Ora, aqui o que fica é algo como uma metafísica hodierna num thriller pop, segundo um geek.
O próprio 11/9 é tratado de modo quase pueril, sem uma migalha de “pathos” que o tema talvez exija. Sem falar na ignóbil hipótese do dedinho do Mossad (ou da própria Casa Branca) nos atentados (o que corresponde ao negacionismo neonazista, de que o Holocausto nunca existiu).
O problema talvez seja a corda-bamba da farsa pynchonesca. Se a tragédia nos dá a bela ilusão da grandeza humana, e a comédia nos revela, afável ou brutalmente, a insignificância de tudo, a farsa – ficando em cima do muro e tentando ser carne e peixe – volta e meia cai do cavalo, na caricatura e na irrelevância. Gabriel Ice é mais um Dick Vigarista do que o Satã de Milton ou o Mefistófeles de Marlowe/Goethe/Thomas Mann.E tudo – de um traque ao Big Bang – se afigura maquiavelicamente maquinado pelas insidiosas, ainda que melífluas, “forças ocultas” (dá-lhe, Jânio Quadros), por vezes tão bobinhas quanto um esconde-esconde.
Daí a ubiquidade embaraçosa das coincidências em O Último Grito. A ficção implica uma permuta constante entre, por um lado, a fixação de uma estrutura, de um padrão e de um fechamento, e, por outro, a imitação da aleatoriedade, das incongruências e do imponderável da existência. As coincidências, que nos espantam na vida real com simetrias que não esperávamos, na ficção são uma trapaça que compromete a verossimilhança. Consequentemente, esta imponente máquina narrativa – em que a engrenagem delirante da conspiração pretende tudo açambarcar – parece apenas ter um parafuso a menos.
*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios)
O Último Grito Autor: Thomas PynchonTradução: Paulo Henriques BrittoEditora: Companhia das Letras 584 páginas R$ 79,90