O amor entre a judia Hannah Arendt e o nazista Martin Heidegger


Livro narra o contraditório relacionamento entre os dois filósofos

Talvez na ânsia de penetrar na intimidade da mente de Hannah Arendt, que formulou as mais consagradas teorias sobre o totalitarismo, a cientista política alemã Antonia Grunenberg lançou-se à tarefa de conhecer a fundo o coração de sua genial conterrânea. Essa investigação traz Arendt – e a filosofia – para o mundo das paixões mundanas, tendo como centro um dos aspectos mais espinhosos e mal compreendidos da biografia da pensadora judia: sua relação amorosa com o filósofo Martin Heidegger, o mais importante intelectual a aderir ao nazismo. Assim, o livro Hannah Arendt e Martin Heidegger: História de um Amor (Perspectiva), revela até onde se pode ir quando se manifesta, nas palavras de Antonia Grunenberg, a “fascinação pelo pensamento filosófico”.

Arendt foi aluna de Heidegger em 1924 na Universidade de Marburg. Ele tinha 35 anos, era casado e pai de dois filhos, enquanto ela era 17 anos mais nova. Foi uma paixão fulminante, a julgar pelo que emerge das cartas trocadas entre os dois e deles com amigos, correspondência em que se baseia grande parte do livro. Segundo a autora, “ambos sabiam que não deveria existir” a relação, “mas que também não podia não existir”.

A atriz Lesley Yates dá vida a Hannah Arendt e o ator Craig Mathers interpreta Martin Heidegger na ópera 'The Banality of Love' Foto: JOCHEN QUAST/THEATER REGENSBURGG
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Heidegger não teve apenas Arendt como amante. E essas aventuras extraconjugais lhe eram necessárias para alimentar sua filosofia. “Em Heidegger, o pensamento se dava a partir de um estado de excitação intelectual” e “da excitação surgiam (…) duas coisas: o pensamento extático e uma disposição erótica” – razão pela qual, “quando as duas coisas se juntavam, ele se metia em problemas”.

Heidegger tinha amantes não apenas para satisfação sexual. Havia também uma ligação intelectual, pois, além de estímulo erótico, elas eram suas “parceiras de diálogo”. Quando teve de se explicar à mulher seu comportamento libertino, o filósofo saiu-se com essa: “Minha natureza é mais complexa que a sua”. Ele precisava da “pulsão erótica proporcionada pelas amantes para criar”. Prometeu à mulher que se manteria fiel a ela, ainda que em estado de “promiscuidade continuada”.

Arendt, contudo, não foi uma amante qualquer. Enquanto ela desarrumou a vida de Heidegger, foi importante, talvez fundamental, para que ele pudesse ter mais clareza em seu pensamento. Apesar disso, conforme mostra a autora, os melhores anos de Heidegger como acadêmico foram aqueles em que ela estava ausente. Quando ela, como judia e intelectual, sofreu as consequências nefastas da ascensão do nazismo, ele subiu na carreira.

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Já a importância de Heidegger para Arendt é bem mais difícil de dimensionar. Ele era, segundo Antonia Grunenberg, “o homem com quem ela havia aprendido a pensar e a amar”. Nada menos. Os estudantes ficavam “hipnotizados” por aquele professor de filosofia, por quem se “ficava fascinado antes mesmo de entendê-lo”. Arendt, na época, não escondia seu entusiasmo com Heidegger: “Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar”.

Os alunos de Heidegger se tornaram, quase todos, brilhantes pensadores eles mesmos, depois de vivenciar com aquele professor o que qualificavam como “a experiência de um despertar”. Um ex-aluno chegou a dizer que, em suas aulas, “tinha-se a sensação de estar assistindo ao ato originário do pensar”. Assim, é uma grosseira simplificação qualificar Heidegger como carrasco, e seus alunos como vítimas. A relação entre eles e deles com seu tempo é muito mais complexa, como mostra o livro em ricos detalhes.

A admiração dos alunos com seu mestre jamais arrefeceu, mas houve notável decepção com o caminho que o filósofo resolveu seguir. Eles esperavam que, depois de ter ficado clara a essência totalitária do nazismo, o professor dedicasse ao menos algumas palavras de distanciamento e repúdio a Hitler, o que nunca aconteceu. Diante disso, muitos deles, particularmente os judeus, se perguntavam como puderam seguir, entre tantos mestres, um que jamais se importou verdadeiramente com a natureza genocida e antissemita do nazismo. Havia, portanto, um misto de veneração e repulsa.

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A relação de Heidegger com o nazismo também não é simples. O filósofo almejava a “vida autêntica”, isto é, a realização de seus pensamentos. Não estava interessado em debates ou em pluralidade, e sim no aparecimento de líderes espirituais capazes de guiar o povo e lhes definir uma identidade. O ser de Heidegger surge da rejeição absoluta do mundo compartilhado, e isso inclui a história. É o “absolutismo intelectual” – daí se compreende o entusiasmo do filósofo com o nazismo.

Para Heidegger, o nazismo estava encarregado de cumprir uma tarefa que havia sido dada pelos antigos. Para isso, o movimento liderado por Hitler teria que ser educado, e essa missão caberia a Heidegger – ele só esperava ser chamado. A convocação afinal veio em abril de 1933, pouco tempo depois da chegada de Hitler ao poder, quando Heidegger foi nomeado reitor da Universidade de Friburgo. No discurso de posse, disse que “a ciência e o destino alemão precisam, mediante a vontade essencial, chegarem juntos ao poder”. 

Sobre o fato de Hitler ser inculto e, portanto, incapaz de governar a Alemanha, Heidegger respondeu: “Ele tem mãos maravilhosas, e é isso o que importa”. Para ele, Hitler era “genuíno”.

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A realidade da natureza do regime, no entanto, rapidamente se impôs, e Heidegger em pouco tempo deixou a reitoria, não só pela desilusão com o nazismo, mas por perceber que havia muitos grupos na universidade contra ele. Mais tarde, ao tocar no assunto, o filósofo agiu como muitos outros alemães: disse que havia sido crítico do nazismo e, por isso, punido. Ou seja, apresentou-se não como o entusiasmado militante nazista que foi, mas como uma vítima. Como escreveria sarcasticamente Hannah Arendt na revista Jewish Frontier em 1945, “a única forma de identificar um antinazista na Alemanha é quando os nazistas o enforcam”. Ou seja, Heidegger era apenas mais um entre os “cavalheiros da alta sociedade” germânica que “demonstraram de maneira irrefutável sua incapacidade de julgar as organizações políticas modernas”. São, no dizer de Arendt, “corresponsáveis irresponsáveis” – porque só pode ser responsabilizado aquele que tem consciência de que está cometendo um crime. Heidegger, como tantos outros, dizia desconhecer o aspecto genocida do nazismo.

O fato, contudo, é que Heidegger atingiu o posto de principal filósofo alemão, enquanto Arendt foi marginalizada e perseguida. Ou seja, havia caminhos alternativos ao totalitarismo, e Arendt trilhou um deles – enquanto Heidegger, cujos melhores alunos eram judeus, desfrutava das benesses políticas de seu alinhamento com o nazismo. A maior parte dos amigos não-judeus de Arendt adaptou-se ao novo regime, o que foi um choque para ela, já que o nazismo fazia do anti-intelectualismo um de seus fundamentos.

A coragem de Arendt, que fica claríssima quando comparada à tibieza de Heidegger e de tantos outros frente ao nazismo, é coerente com o perfil rebelde que Antonia Grunenberg descreve. De menina indisciplinada na escola, Arendt tornou-se uma das mais aguerridas protagonistas da resistência intelectual contra os ataques sistemáticos à razão empreendidos pelos líderes políticos nas sociedades de massa, muitas vezes com a inacreditável cumplicidade do meio acadêmico.

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Essa disposição de Arendt possivelmente deriva de sua constatação de que o antissemitismo, que ela sentiu desde a infância, impedia qualquer fantasia acerca da possibilidade de assimilação dos judeus. Em 1943, com apenas fragmentos de informação, Arendt concluiu que os judeus estavam sendo vítimas de genocídio, o que só ficaria realmente claro dois anos depois, já no fim da Segunda Guerra. Arendt era, no dizer de Grunenberg, “prática e sóbria”, o que a impedia de se iludir acerca de sua época e do perigo que os judeus, inclusive os perfeitamente assimilados e os que se deixavam enganar sobre seu poder, corriam.

Essa realidade reforçou sua identidade judaica, que se via duplamente marginal – como judia e mulher. Como demonstra Celso Lafer em Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder, ela se ressentia da condição de mulher excepcional, exatamente como os judeus excepcionais do século 20. 

Ela se ligou ao multifacetado movimento sionista alemão, mas negava que fosse sionista de fato – o que apreciava, na prática, era o feroz embate intelectual no seio do movimento. Arendt defendia que o sionismo deixasse de lado o debate teológico, rígido e interditado por princípio, e focasse nas questões políticas, mais abertas às controvérsias. Graças a essa disposição à polêmica, colheu inimigos entre os judeus, inclusive seus amigos. “Para quem confundia crença com dimensão política”, escreve Grunenberg, “a forma de expressão dessa mulher soava como pura provocação.”

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“Eu não faço parte de nenhum grupo”, afirmou Arendt, como a dizer que sua identidade judaica era puramente intelectual. Assim, foi considerada pária mesmo entre judeus, sobretudo em Israel, que ainda hoje a repudia violentamente por suas críticas a respeito do julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961. Não poucos judeus a consideram uma antissemita, uma “self-hating Jew”, uma judia que odeia sua condição, porque ousou questionar o papel dos judeus no processo da própria destruição durante o Holocausto. Na visão de Arendt, o colapso moral promovido pelos nazistas atingiu igualmente as vítimas, particularmente os líderes das comunidades judaicas que, em lugar de organizar qualquer forma de resistência ou pelo menos dificultar o trabalho dos genocidas, tratou de colaborar com o algoz, pelas mais variadas razões, das mais nobres às mais corruptas. A tese é esposada por gente insuspeita, como Primo Levi, o sobrevivente do Holocausto que melhor entendeu a mecânica do mal nos campos de extermínio, mas apenas Arendt foi estigmatizada por opiniões contundentes. A própria Arendt mais tarde temperaria suas conclusões sobre os líderes judeus, mas jamais recuou da essência de sua visão, que a tantos incomoda – que o mal não é exclusividade dos psicopatas.

Hannah Arendt também foi repudiada pela esquerda quando enxergou semelhanças entre nazismo e o stalinismo, um dos aspectos mais controvertidos de sua grande obra, Origens do Totalitarismo. O livro colocou Arendt definitivamente entre os grandes pensadores do século 20, mas colaborou igualmente para estigmatizá-la entre parte da intelectualidade europeia e norte-americana. Na obra de Antonia Grunenberg, fica claro que, enquanto Martin Heidegger fugiu o quanto pôde da política, Hannah Arendt foi “violentamente arremessada para ela”, tornando-se em alguns momentos quase uma refugiada intelectual, execrada por aqueles que preferem as certezas de sua ideologia às dúvidas suscitadas pelo pensamento genuinamente livre. 

HANNAH ARENDT E MARTIN HEIDEGGER: HISTÓRIA DE UM AMOR AUTORA: ANTONIA GRUNEMBERG TRADUÇÃO: LUIS MARCOS SANDER E RAINER PATRIOTA EDITORA: PERSPECTIVA 416 PÁGINAS R$ 79,90 *JORNALISTA E HISTORIADOR, AUTOR DO LIVRO ‘NAZISTAS ENTRE NÓS’ (EDITORA CONTEXTO)

Talvez na ânsia de penetrar na intimidade da mente de Hannah Arendt, que formulou as mais consagradas teorias sobre o totalitarismo, a cientista política alemã Antonia Grunenberg lançou-se à tarefa de conhecer a fundo o coração de sua genial conterrânea. Essa investigação traz Arendt – e a filosofia – para o mundo das paixões mundanas, tendo como centro um dos aspectos mais espinhosos e mal compreendidos da biografia da pensadora judia: sua relação amorosa com o filósofo Martin Heidegger, o mais importante intelectual a aderir ao nazismo. Assim, o livro Hannah Arendt e Martin Heidegger: História de um Amor (Perspectiva), revela até onde se pode ir quando se manifesta, nas palavras de Antonia Grunenberg, a “fascinação pelo pensamento filosófico”.

Arendt foi aluna de Heidegger em 1924 na Universidade de Marburg. Ele tinha 35 anos, era casado e pai de dois filhos, enquanto ela era 17 anos mais nova. Foi uma paixão fulminante, a julgar pelo que emerge das cartas trocadas entre os dois e deles com amigos, correspondência em que se baseia grande parte do livro. Segundo a autora, “ambos sabiam que não deveria existir” a relação, “mas que também não podia não existir”.

A atriz Lesley Yates dá vida a Hannah Arendt e o ator Craig Mathers interpreta Martin Heidegger na ópera 'The Banality of Love' Foto: JOCHEN QUAST/THEATER REGENSBURGG

Heidegger não teve apenas Arendt como amante. E essas aventuras extraconjugais lhe eram necessárias para alimentar sua filosofia. “Em Heidegger, o pensamento se dava a partir de um estado de excitação intelectual” e “da excitação surgiam (…) duas coisas: o pensamento extático e uma disposição erótica” – razão pela qual, “quando as duas coisas se juntavam, ele se metia em problemas”.

Heidegger tinha amantes não apenas para satisfação sexual. Havia também uma ligação intelectual, pois, além de estímulo erótico, elas eram suas “parceiras de diálogo”. Quando teve de se explicar à mulher seu comportamento libertino, o filósofo saiu-se com essa: “Minha natureza é mais complexa que a sua”. Ele precisava da “pulsão erótica proporcionada pelas amantes para criar”. Prometeu à mulher que se manteria fiel a ela, ainda que em estado de “promiscuidade continuada”.

Arendt, contudo, não foi uma amante qualquer. Enquanto ela desarrumou a vida de Heidegger, foi importante, talvez fundamental, para que ele pudesse ter mais clareza em seu pensamento. Apesar disso, conforme mostra a autora, os melhores anos de Heidegger como acadêmico foram aqueles em que ela estava ausente. Quando ela, como judia e intelectual, sofreu as consequências nefastas da ascensão do nazismo, ele subiu na carreira.

Já a importância de Heidegger para Arendt é bem mais difícil de dimensionar. Ele era, segundo Antonia Grunenberg, “o homem com quem ela havia aprendido a pensar e a amar”. Nada menos. Os estudantes ficavam “hipnotizados” por aquele professor de filosofia, por quem se “ficava fascinado antes mesmo de entendê-lo”. Arendt, na época, não escondia seu entusiasmo com Heidegger: “Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar”.

Os alunos de Heidegger se tornaram, quase todos, brilhantes pensadores eles mesmos, depois de vivenciar com aquele professor o que qualificavam como “a experiência de um despertar”. Um ex-aluno chegou a dizer que, em suas aulas, “tinha-se a sensação de estar assistindo ao ato originário do pensar”. Assim, é uma grosseira simplificação qualificar Heidegger como carrasco, e seus alunos como vítimas. A relação entre eles e deles com seu tempo é muito mais complexa, como mostra o livro em ricos detalhes.

A admiração dos alunos com seu mestre jamais arrefeceu, mas houve notável decepção com o caminho que o filósofo resolveu seguir. Eles esperavam que, depois de ter ficado clara a essência totalitária do nazismo, o professor dedicasse ao menos algumas palavras de distanciamento e repúdio a Hitler, o que nunca aconteceu. Diante disso, muitos deles, particularmente os judeus, se perguntavam como puderam seguir, entre tantos mestres, um que jamais se importou verdadeiramente com a natureza genocida e antissemita do nazismo. Havia, portanto, um misto de veneração e repulsa.

A relação de Heidegger com o nazismo também não é simples. O filósofo almejava a “vida autêntica”, isto é, a realização de seus pensamentos. Não estava interessado em debates ou em pluralidade, e sim no aparecimento de líderes espirituais capazes de guiar o povo e lhes definir uma identidade. O ser de Heidegger surge da rejeição absoluta do mundo compartilhado, e isso inclui a história. É o “absolutismo intelectual” – daí se compreende o entusiasmo do filósofo com o nazismo.

Para Heidegger, o nazismo estava encarregado de cumprir uma tarefa que havia sido dada pelos antigos. Para isso, o movimento liderado por Hitler teria que ser educado, e essa missão caberia a Heidegger – ele só esperava ser chamado. A convocação afinal veio em abril de 1933, pouco tempo depois da chegada de Hitler ao poder, quando Heidegger foi nomeado reitor da Universidade de Friburgo. No discurso de posse, disse que “a ciência e o destino alemão precisam, mediante a vontade essencial, chegarem juntos ao poder”. 

Sobre o fato de Hitler ser inculto e, portanto, incapaz de governar a Alemanha, Heidegger respondeu: “Ele tem mãos maravilhosas, e é isso o que importa”. Para ele, Hitler era “genuíno”.

A realidade da natureza do regime, no entanto, rapidamente se impôs, e Heidegger em pouco tempo deixou a reitoria, não só pela desilusão com o nazismo, mas por perceber que havia muitos grupos na universidade contra ele. Mais tarde, ao tocar no assunto, o filósofo agiu como muitos outros alemães: disse que havia sido crítico do nazismo e, por isso, punido. Ou seja, apresentou-se não como o entusiasmado militante nazista que foi, mas como uma vítima. Como escreveria sarcasticamente Hannah Arendt na revista Jewish Frontier em 1945, “a única forma de identificar um antinazista na Alemanha é quando os nazistas o enforcam”. Ou seja, Heidegger era apenas mais um entre os “cavalheiros da alta sociedade” germânica que “demonstraram de maneira irrefutável sua incapacidade de julgar as organizações políticas modernas”. São, no dizer de Arendt, “corresponsáveis irresponsáveis” – porque só pode ser responsabilizado aquele que tem consciência de que está cometendo um crime. Heidegger, como tantos outros, dizia desconhecer o aspecto genocida do nazismo.

O fato, contudo, é que Heidegger atingiu o posto de principal filósofo alemão, enquanto Arendt foi marginalizada e perseguida. Ou seja, havia caminhos alternativos ao totalitarismo, e Arendt trilhou um deles – enquanto Heidegger, cujos melhores alunos eram judeus, desfrutava das benesses políticas de seu alinhamento com o nazismo. A maior parte dos amigos não-judeus de Arendt adaptou-se ao novo regime, o que foi um choque para ela, já que o nazismo fazia do anti-intelectualismo um de seus fundamentos.

A coragem de Arendt, que fica claríssima quando comparada à tibieza de Heidegger e de tantos outros frente ao nazismo, é coerente com o perfil rebelde que Antonia Grunenberg descreve. De menina indisciplinada na escola, Arendt tornou-se uma das mais aguerridas protagonistas da resistência intelectual contra os ataques sistemáticos à razão empreendidos pelos líderes políticos nas sociedades de massa, muitas vezes com a inacreditável cumplicidade do meio acadêmico.

Essa disposição de Arendt possivelmente deriva de sua constatação de que o antissemitismo, que ela sentiu desde a infância, impedia qualquer fantasia acerca da possibilidade de assimilação dos judeus. Em 1943, com apenas fragmentos de informação, Arendt concluiu que os judeus estavam sendo vítimas de genocídio, o que só ficaria realmente claro dois anos depois, já no fim da Segunda Guerra. Arendt era, no dizer de Grunenberg, “prática e sóbria”, o que a impedia de se iludir acerca de sua época e do perigo que os judeus, inclusive os perfeitamente assimilados e os que se deixavam enganar sobre seu poder, corriam.

Essa realidade reforçou sua identidade judaica, que se via duplamente marginal – como judia e mulher. Como demonstra Celso Lafer em Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder, ela se ressentia da condição de mulher excepcional, exatamente como os judeus excepcionais do século 20. 

Ela se ligou ao multifacetado movimento sionista alemão, mas negava que fosse sionista de fato – o que apreciava, na prática, era o feroz embate intelectual no seio do movimento. Arendt defendia que o sionismo deixasse de lado o debate teológico, rígido e interditado por princípio, e focasse nas questões políticas, mais abertas às controvérsias. Graças a essa disposição à polêmica, colheu inimigos entre os judeus, inclusive seus amigos. “Para quem confundia crença com dimensão política”, escreve Grunenberg, “a forma de expressão dessa mulher soava como pura provocação.”

“Eu não faço parte de nenhum grupo”, afirmou Arendt, como a dizer que sua identidade judaica era puramente intelectual. Assim, foi considerada pária mesmo entre judeus, sobretudo em Israel, que ainda hoje a repudia violentamente por suas críticas a respeito do julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961. Não poucos judeus a consideram uma antissemita, uma “self-hating Jew”, uma judia que odeia sua condição, porque ousou questionar o papel dos judeus no processo da própria destruição durante o Holocausto. Na visão de Arendt, o colapso moral promovido pelos nazistas atingiu igualmente as vítimas, particularmente os líderes das comunidades judaicas que, em lugar de organizar qualquer forma de resistência ou pelo menos dificultar o trabalho dos genocidas, tratou de colaborar com o algoz, pelas mais variadas razões, das mais nobres às mais corruptas. A tese é esposada por gente insuspeita, como Primo Levi, o sobrevivente do Holocausto que melhor entendeu a mecânica do mal nos campos de extermínio, mas apenas Arendt foi estigmatizada por opiniões contundentes. A própria Arendt mais tarde temperaria suas conclusões sobre os líderes judeus, mas jamais recuou da essência de sua visão, que a tantos incomoda – que o mal não é exclusividade dos psicopatas.

Hannah Arendt também foi repudiada pela esquerda quando enxergou semelhanças entre nazismo e o stalinismo, um dos aspectos mais controvertidos de sua grande obra, Origens do Totalitarismo. O livro colocou Arendt definitivamente entre os grandes pensadores do século 20, mas colaborou igualmente para estigmatizá-la entre parte da intelectualidade europeia e norte-americana. Na obra de Antonia Grunenberg, fica claro que, enquanto Martin Heidegger fugiu o quanto pôde da política, Hannah Arendt foi “violentamente arremessada para ela”, tornando-se em alguns momentos quase uma refugiada intelectual, execrada por aqueles que preferem as certezas de sua ideologia às dúvidas suscitadas pelo pensamento genuinamente livre. 

HANNAH ARENDT E MARTIN HEIDEGGER: HISTÓRIA DE UM AMOR AUTORA: ANTONIA GRUNEMBERG TRADUÇÃO: LUIS MARCOS SANDER E RAINER PATRIOTA EDITORA: PERSPECTIVA 416 PÁGINAS R$ 79,90 *JORNALISTA E HISTORIADOR, AUTOR DO LIVRO ‘NAZISTAS ENTRE NÓS’ (EDITORA CONTEXTO)

Talvez na ânsia de penetrar na intimidade da mente de Hannah Arendt, que formulou as mais consagradas teorias sobre o totalitarismo, a cientista política alemã Antonia Grunenberg lançou-se à tarefa de conhecer a fundo o coração de sua genial conterrânea. Essa investigação traz Arendt – e a filosofia – para o mundo das paixões mundanas, tendo como centro um dos aspectos mais espinhosos e mal compreendidos da biografia da pensadora judia: sua relação amorosa com o filósofo Martin Heidegger, o mais importante intelectual a aderir ao nazismo. Assim, o livro Hannah Arendt e Martin Heidegger: História de um Amor (Perspectiva), revela até onde se pode ir quando se manifesta, nas palavras de Antonia Grunenberg, a “fascinação pelo pensamento filosófico”.

Arendt foi aluna de Heidegger em 1924 na Universidade de Marburg. Ele tinha 35 anos, era casado e pai de dois filhos, enquanto ela era 17 anos mais nova. Foi uma paixão fulminante, a julgar pelo que emerge das cartas trocadas entre os dois e deles com amigos, correspondência em que se baseia grande parte do livro. Segundo a autora, “ambos sabiam que não deveria existir” a relação, “mas que também não podia não existir”.

A atriz Lesley Yates dá vida a Hannah Arendt e o ator Craig Mathers interpreta Martin Heidegger na ópera 'The Banality of Love' Foto: JOCHEN QUAST/THEATER REGENSBURGG

Heidegger não teve apenas Arendt como amante. E essas aventuras extraconjugais lhe eram necessárias para alimentar sua filosofia. “Em Heidegger, o pensamento se dava a partir de um estado de excitação intelectual” e “da excitação surgiam (…) duas coisas: o pensamento extático e uma disposição erótica” – razão pela qual, “quando as duas coisas se juntavam, ele se metia em problemas”.

Heidegger tinha amantes não apenas para satisfação sexual. Havia também uma ligação intelectual, pois, além de estímulo erótico, elas eram suas “parceiras de diálogo”. Quando teve de se explicar à mulher seu comportamento libertino, o filósofo saiu-se com essa: “Minha natureza é mais complexa que a sua”. Ele precisava da “pulsão erótica proporcionada pelas amantes para criar”. Prometeu à mulher que se manteria fiel a ela, ainda que em estado de “promiscuidade continuada”.

Arendt, contudo, não foi uma amante qualquer. Enquanto ela desarrumou a vida de Heidegger, foi importante, talvez fundamental, para que ele pudesse ter mais clareza em seu pensamento. Apesar disso, conforme mostra a autora, os melhores anos de Heidegger como acadêmico foram aqueles em que ela estava ausente. Quando ela, como judia e intelectual, sofreu as consequências nefastas da ascensão do nazismo, ele subiu na carreira.

Já a importância de Heidegger para Arendt é bem mais difícil de dimensionar. Ele era, segundo Antonia Grunenberg, “o homem com quem ela havia aprendido a pensar e a amar”. Nada menos. Os estudantes ficavam “hipnotizados” por aquele professor de filosofia, por quem se “ficava fascinado antes mesmo de entendê-lo”. Arendt, na época, não escondia seu entusiasmo com Heidegger: “Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar”.

Os alunos de Heidegger se tornaram, quase todos, brilhantes pensadores eles mesmos, depois de vivenciar com aquele professor o que qualificavam como “a experiência de um despertar”. Um ex-aluno chegou a dizer que, em suas aulas, “tinha-se a sensação de estar assistindo ao ato originário do pensar”. Assim, é uma grosseira simplificação qualificar Heidegger como carrasco, e seus alunos como vítimas. A relação entre eles e deles com seu tempo é muito mais complexa, como mostra o livro em ricos detalhes.

A admiração dos alunos com seu mestre jamais arrefeceu, mas houve notável decepção com o caminho que o filósofo resolveu seguir. Eles esperavam que, depois de ter ficado clara a essência totalitária do nazismo, o professor dedicasse ao menos algumas palavras de distanciamento e repúdio a Hitler, o que nunca aconteceu. Diante disso, muitos deles, particularmente os judeus, se perguntavam como puderam seguir, entre tantos mestres, um que jamais se importou verdadeiramente com a natureza genocida e antissemita do nazismo. Havia, portanto, um misto de veneração e repulsa.

A relação de Heidegger com o nazismo também não é simples. O filósofo almejava a “vida autêntica”, isto é, a realização de seus pensamentos. Não estava interessado em debates ou em pluralidade, e sim no aparecimento de líderes espirituais capazes de guiar o povo e lhes definir uma identidade. O ser de Heidegger surge da rejeição absoluta do mundo compartilhado, e isso inclui a história. É o “absolutismo intelectual” – daí se compreende o entusiasmo do filósofo com o nazismo.

Para Heidegger, o nazismo estava encarregado de cumprir uma tarefa que havia sido dada pelos antigos. Para isso, o movimento liderado por Hitler teria que ser educado, e essa missão caberia a Heidegger – ele só esperava ser chamado. A convocação afinal veio em abril de 1933, pouco tempo depois da chegada de Hitler ao poder, quando Heidegger foi nomeado reitor da Universidade de Friburgo. No discurso de posse, disse que “a ciência e o destino alemão precisam, mediante a vontade essencial, chegarem juntos ao poder”. 

Sobre o fato de Hitler ser inculto e, portanto, incapaz de governar a Alemanha, Heidegger respondeu: “Ele tem mãos maravilhosas, e é isso o que importa”. Para ele, Hitler era “genuíno”.

A realidade da natureza do regime, no entanto, rapidamente se impôs, e Heidegger em pouco tempo deixou a reitoria, não só pela desilusão com o nazismo, mas por perceber que havia muitos grupos na universidade contra ele. Mais tarde, ao tocar no assunto, o filósofo agiu como muitos outros alemães: disse que havia sido crítico do nazismo e, por isso, punido. Ou seja, apresentou-se não como o entusiasmado militante nazista que foi, mas como uma vítima. Como escreveria sarcasticamente Hannah Arendt na revista Jewish Frontier em 1945, “a única forma de identificar um antinazista na Alemanha é quando os nazistas o enforcam”. Ou seja, Heidegger era apenas mais um entre os “cavalheiros da alta sociedade” germânica que “demonstraram de maneira irrefutável sua incapacidade de julgar as organizações políticas modernas”. São, no dizer de Arendt, “corresponsáveis irresponsáveis” – porque só pode ser responsabilizado aquele que tem consciência de que está cometendo um crime. Heidegger, como tantos outros, dizia desconhecer o aspecto genocida do nazismo.

O fato, contudo, é que Heidegger atingiu o posto de principal filósofo alemão, enquanto Arendt foi marginalizada e perseguida. Ou seja, havia caminhos alternativos ao totalitarismo, e Arendt trilhou um deles – enquanto Heidegger, cujos melhores alunos eram judeus, desfrutava das benesses políticas de seu alinhamento com o nazismo. A maior parte dos amigos não-judeus de Arendt adaptou-se ao novo regime, o que foi um choque para ela, já que o nazismo fazia do anti-intelectualismo um de seus fundamentos.

A coragem de Arendt, que fica claríssima quando comparada à tibieza de Heidegger e de tantos outros frente ao nazismo, é coerente com o perfil rebelde que Antonia Grunenberg descreve. De menina indisciplinada na escola, Arendt tornou-se uma das mais aguerridas protagonistas da resistência intelectual contra os ataques sistemáticos à razão empreendidos pelos líderes políticos nas sociedades de massa, muitas vezes com a inacreditável cumplicidade do meio acadêmico.

Essa disposição de Arendt possivelmente deriva de sua constatação de que o antissemitismo, que ela sentiu desde a infância, impedia qualquer fantasia acerca da possibilidade de assimilação dos judeus. Em 1943, com apenas fragmentos de informação, Arendt concluiu que os judeus estavam sendo vítimas de genocídio, o que só ficaria realmente claro dois anos depois, já no fim da Segunda Guerra. Arendt era, no dizer de Grunenberg, “prática e sóbria”, o que a impedia de se iludir acerca de sua época e do perigo que os judeus, inclusive os perfeitamente assimilados e os que se deixavam enganar sobre seu poder, corriam.

Essa realidade reforçou sua identidade judaica, que se via duplamente marginal – como judia e mulher. Como demonstra Celso Lafer em Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder, ela se ressentia da condição de mulher excepcional, exatamente como os judeus excepcionais do século 20. 

Ela se ligou ao multifacetado movimento sionista alemão, mas negava que fosse sionista de fato – o que apreciava, na prática, era o feroz embate intelectual no seio do movimento. Arendt defendia que o sionismo deixasse de lado o debate teológico, rígido e interditado por princípio, e focasse nas questões políticas, mais abertas às controvérsias. Graças a essa disposição à polêmica, colheu inimigos entre os judeus, inclusive seus amigos. “Para quem confundia crença com dimensão política”, escreve Grunenberg, “a forma de expressão dessa mulher soava como pura provocação.”

“Eu não faço parte de nenhum grupo”, afirmou Arendt, como a dizer que sua identidade judaica era puramente intelectual. Assim, foi considerada pária mesmo entre judeus, sobretudo em Israel, que ainda hoje a repudia violentamente por suas críticas a respeito do julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961. Não poucos judeus a consideram uma antissemita, uma “self-hating Jew”, uma judia que odeia sua condição, porque ousou questionar o papel dos judeus no processo da própria destruição durante o Holocausto. Na visão de Arendt, o colapso moral promovido pelos nazistas atingiu igualmente as vítimas, particularmente os líderes das comunidades judaicas que, em lugar de organizar qualquer forma de resistência ou pelo menos dificultar o trabalho dos genocidas, tratou de colaborar com o algoz, pelas mais variadas razões, das mais nobres às mais corruptas. A tese é esposada por gente insuspeita, como Primo Levi, o sobrevivente do Holocausto que melhor entendeu a mecânica do mal nos campos de extermínio, mas apenas Arendt foi estigmatizada por opiniões contundentes. A própria Arendt mais tarde temperaria suas conclusões sobre os líderes judeus, mas jamais recuou da essência de sua visão, que a tantos incomoda – que o mal não é exclusividade dos psicopatas.

Hannah Arendt também foi repudiada pela esquerda quando enxergou semelhanças entre nazismo e o stalinismo, um dos aspectos mais controvertidos de sua grande obra, Origens do Totalitarismo. O livro colocou Arendt definitivamente entre os grandes pensadores do século 20, mas colaborou igualmente para estigmatizá-la entre parte da intelectualidade europeia e norte-americana. Na obra de Antonia Grunenberg, fica claro que, enquanto Martin Heidegger fugiu o quanto pôde da política, Hannah Arendt foi “violentamente arremessada para ela”, tornando-se em alguns momentos quase uma refugiada intelectual, execrada por aqueles que preferem as certezas de sua ideologia às dúvidas suscitadas pelo pensamento genuinamente livre. 

HANNAH ARENDT E MARTIN HEIDEGGER: HISTÓRIA DE UM AMOR AUTORA: ANTONIA GRUNEMBERG TRADUÇÃO: LUIS MARCOS SANDER E RAINER PATRIOTA EDITORA: PERSPECTIVA 416 PÁGINAS R$ 79,90 *JORNALISTA E HISTORIADOR, AUTOR DO LIVRO ‘NAZISTAS ENTRE NÓS’ (EDITORA CONTEXTO)

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