'O artista se tornou figura da liberdade', diz filósofo Didi-Huberman


Em entrevista, pensador francês avalia importância da psicanálise na arte e o papel do artista na promoção da liberdade

Por Daniel Augusto
Atualização:
O cineasta Daniel Augusto (D) e o filósofo francêsGeorges Didi-Huberman (E) em seu apartamento, em Paris Foto: Rodrigo Menck/Grifa Filmes

“Hoje, a liberdade e a autoridade do artista são fetiches, coisas que escondem a ausência de liberdade de todos os outros”, disse-me o filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman. Autor de dezenas de livros e professor universitário, ele é um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a arte, cujas reflexões abrangem desde o estatuto da criação e da recepção em geral até a obra particular de diversos artistas. No seu apartamento em Paris, ele me recebeu para a série de entrevistas Incertezas Críticas, produzida pela Grifa Filmes e em exibição no Canal Curta, onde falou de psicanálise, história da arte, do excesso e da falta de liberdade na arte, entre outros assuntos.

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INCERTEZAS CRÍTICAS - Trecho da entrevista com Georges Didi-Huberman, dia 25 de maio, às 23h30.

Qual é a importância da psicanálise em sua obra? A psicanálise é importante para mim, mas não para fazer uma psicobiografia do pintor. A tradicional história da arte reflete em termos de consciência: Donatello viu um sarcófago romano, imitou-o, temos o Renascimento. Isso chama-se tradição: uma coisa que se transmite de maneira consciente. O que Freud estabeleceu é a existência do inconsciente, que funciona de outra maneira. Há um historiador da arte que levou isso a sério, Aby Warburg, que formulou um conceito diferente, da transmissão de formas, não somente no nível da tradição consciente, mas também num nível subterrâneo. Portanto, sempre há dois níveis, que se contradizem um ao outro.

Qual a consequência de se observar arte nesses dois níveis? A psicanálise é interessante para se ver onde, nas maiores belezas, há coisas terríveis. Há o desejo, a morte, a crueldade, o mal, a doença. É o avesso, a outra face da moeda. Você tem, por exemplo, dois modos de ver Botticelli: ou você vê a primavera, a Vênus, tudo isso é muito lindo; ou vai um pouco mais longe e lembra que o nascimento da deusa é uma história aterrorizante. O sexo de um deus que foi cortado e cai no mar, com sangue e esperma. 

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Como a psicanálise ajuda a pensar a relação entre as imagens e a política?  Não se pode ir muito longe numa reflexão sobre a política das imagens sem colocar em jogo a questão psíquica. Pensadores como Marcuse, Adorno ou Benjamin sempre associaram essas duas coisas. É preciso sempre ver o desejo em ação. Quando há desejo, há memória; quando há memória, há recalque; quando há recalque, há conflito; quando há conflito, há sintoma. O mundo das imagens é um enorme campo de batalha subterrâneo. Por cima, vemos a beleza, que é muito importante. Mas, na verdade, a beleza não é nada repousante. 

A arte é livre no capitalismo atual? Hoje, o artista se tornou a própria figura da liberdade. De uma certa maneira, é ainda mais livre que o patrão. Não tem horários marcados, faz o que quer. Falo, evidentemente, de um artista reconhecido. Ele chega num museu, diz que quer uma parede vermelha e se manda imediatamente pintar. É uma figura de liberdade e de autoridade, mas no interior do funcionamento capitalista, e aí a coisa começa a se complicar. Pasolini fazia uma reflexão a Andy Warhol: “Você foi tão longe na vanguarda que entrou no território do seu inimigo. Esqueceu a linha de conflito. O que significa sua liberdade para você, o artista Warhol, enquanto tudo ao seu redor está privado de liberdade? Para que serve ser o único livre? Não serve para nada”. Portanto, a liberdade e a autoridade do artista hoje, infelizmente, são fetiches, coisas que escondem a ausência de liberdade de todos os outros. Isso não está certo. Felizmente, acontece de artistas se darem conta disso e procurarem estratégias para falar da falta de liberdade dos demais. 

Vivemos uma situação trágica para a arte? Um pensador “radical” hoje tenderia a dizer que essa situação da arte, separada do pensamento e da poesia, é trágica, e então algo morreu. Eu falo exatamente o contrário. No âmbito da cultura, nada está morto. Sempre há sobrevivências. É nessa direção que devemos ir. Não sabemos lhes enxergar, mas elas existem. Uma vez, no Rio de Janeiro, eu fui visitar o Parque Lage. Estava emocionado porque o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, que adoro, foi filmado lá. Estava andando pelo parque, no qual há árvores com raízes que vão para todos os lugares. Naquele momento, refleti sobre o que quer dizer ser radical. Os filósofos “radicais” são pessoas como Badiou. O que eles fazem? Eles pensam que a raiz é um bastão em linha reta na terra. Quando eles são radicais, vão até a raiz. Mas é algo unilateral, uma coisa só. No entanto, quando você anda no Parque Lage, é possível notar que as raízes são iguais ao que Warburg descreveu: coisas que passam por baixo, por cima, aqui, lá, em toda parte. Então, se você cortar uma, nem tudo morre. Não se pode desesperar. A filosofia desesperada, “radical”, que diz que tudo morreu, não é verdade. Sempre há um desvio, uma raiz que vai aguentar o tranco e persistir.

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*É cineasta, diretor da série 'Incertezas Críticas', exibida pelo Canal Curta

Entrevista com Georges Didi-Huberman No Canal Curta, quinta-feira, 25, às 23h30

O cineasta Daniel Augusto (D) e o filósofo francêsGeorges Didi-Huberman (E) em seu apartamento, em Paris Foto: Rodrigo Menck/Grifa Filmes

“Hoje, a liberdade e a autoridade do artista são fetiches, coisas que escondem a ausência de liberdade de todos os outros”, disse-me o filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman. Autor de dezenas de livros e professor universitário, ele é um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a arte, cujas reflexões abrangem desde o estatuto da criação e da recepção em geral até a obra particular de diversos artistas. No seu apartamento em Paris, ele me recebeu para a série de entrevistas Incertezas Críticas, produzida pela Grifa Filmes e em exibição no Canal Curta, onde falou de psicanálise, história da arte, do excesso e da falta de liberdade na arte, entre outros assuntos.

INCERTEZAS CRÍTICAS - Trecho da entrevista com Georges Didi-Huberman, dia 25 de maio, às 23h30.

Qual é a importância da psicanálise em sua obra? A psicanálise é importante para mim, mas não para fazer uma psicobiografia do pintor. A tradicional história da arte reflete em termos de consciência: Donatello viu um sarcófago romano, imitou-o, temos o Renascimento. Isso chama-se tradição: uma coisa que se transmite de maneira consciente. O que Freud estabeleceu é a existência do inconsciente, que funciona de outra maneira. Há um historiador da arte que levou isso a sério, Aby Warburg, que formulou um conceito diferente, da transmissão de formas, não somente no nível da tradição consciente, mas também num nível subterrâneo. Portanto, sempre há dois níveis, que se contradizem um ao outro.

Qual a consequência de se observar arte nesses dois níveis? A psicanálise é interessante para se ver onde, nas maiores belezas, há coisas terríveis. Há o desejo, a morte, a crueldade, o mal, a doença. É o avesso, a outra face da moeda. Você tem, por exemplo, dois modos de ver Botticelli: ou você vê a primavera, a Vênus, tudo isso é muito lindo; ou vai um pouco mais longe e lembra que o nascimento da deusa é uma história aterrorizante. O sexo de um deus que foi cortado e cai no mar, com sangue e esperma. 

Como a psicanálise ajuda a pensar a relação entre as imagens e a política?  Não se pode ir muito longe numa reflexão sobre a política das imagens sem colocar em jogo a questão psíquica. Pensadores como Marcuse, Adorno ou Benjamin sempre associaram essas duas coisas. É preciso sempre ver o desejo em ação. Quando há desejo, há memória; quando há memória, há recalque; quando há recalque, há conflito; quando há conflito, há sintoma. O mundo das imagens é um enorme campo de batalha subterrâneo. Por cima, vemos a beleza, que é muito importante. Mas, na verdade, a beleza não é nada repousante. 

A arte é livre no capitalismo atual? Hoje, o artista se tornou a própria figura da liberdade. De uma certa maneira, é ainda mais livre que o patrão. Não tem horários marcados, faz o que quer. Falo, evidentemente, de um artista reconhecido. Ele chega num museu, diz que quer uma parede vermelha e se manda imediatamente pintar. É uma figura de liberdade e de autoridade, mas no interior do funcionamento capitalista, e aí a coisa começa a se complicar. Pasolini fazia uma reflexão a Andy Warhol: “Você foi tão longe na vanguarda que entrou no território do seu inimigo. Esqueceu a linha de conflito. O que significa sua liberdade para você, o artista Warhol, enquanto tudo ao seu redor está privado de liberdade? Para que serve ser o único livre? Não serve para nada”. Portanto, a liberdade e a autoridade do artista hoje, infelizmente, são fetiches, coisas que escondem a ausência de liberdade de todos os outros. Isso não está certo. Felizmente, acontece de artistas se darem conta disso e procurarem estratégias para falar da falta de liberdade dos demais. 

Vivemos uma situação trágica para a arte? Um pensador “radical” hoje tenderia a dizer que essa situação da arte, separada do pensamento e da poesia, é trágica, e então algo morreu. Eu falo exatamente o contrário. No âmbito da cultura, nada está morto. Sempre há sobrevivências. É nessa direção que devemos ir. Não sabemos lhes enxergar, mas elas existem. Uma vez, no Rio de Janeiro, eu fui visitar o Parque Lage. Estava emocionado porque o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, que adoro, foi filmado lá. Estava andando pelo parque, no qual há árvores com raízes que vão para todos os lugares. Naquele momento, refleti sobre o que quer dizer ser radical. Os filósofos “radicais” são pessoas como Badiou. O que eles fazem? Eles pensam que a raiz é um bastão em linha reta na terra. Quando eles são radicais, vão até a raiz. Mas é algo unilateral, uma coisa só. No entanto, quando você anda no Parque Lage, é possível notar que as raízes são iguais ao que Warburg descreveu: coisas que passam por baixo, por cima, aqui, lá, em toda parte. Então, se você cortar uma, nem tudo morre. Não se pode desesperar. A filosofia desesperada, “radical”, que diz que tudo morreu, não é verdade. Sempre há um desvio, uma raiz que vai aguentar o tranco e persistir.

*É cineasta, diretor da série 'Incertezas Críticas', exibida pelo Canal Curta

Entrevista com Georges Didi-Huberman No Canal Curta, quinta-feira, 25, às 23h30

O cineasta Daniel Augusto (D) e o filósofo francêsGeorges Didi-Huberman (E) em seu apartamento, em Paris Foto: Rodrigo Menck/Grifa Filmes

“Hoje, a liberdade e a autoridade do artista são fetiches, coisas que escondem a ausência de liberdade de todos os outros”, disse-me o filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman. Autor de dezenas de livros e professor universitário, ele é um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a arte, cujas reflexões abrangem desde o estatuto da criação e da recepção em geral até a obra particular de diversos artistas. No seu apartamento em Paris, ele me recebeu para a série de entrevistas Incertezas Críticas, produzida pela Grifa Filmes e em exibição no Canal Curta, onde falou de psicanálise, história da arte, do excesso e da falta de liberdade na arte, entre outros assuntos.

INCERTEZAS CRÍTICAS - Trecho da entrevista com Georges Didi-Huberman, dia 25 de maio, às 23h30.

Qual é a importância da psicanálise em sua obra? A psicanálise é importante para mim, mas não para fazer uma psicobiografia do pintor. A tradicional história da arte reflete em termos de consciência: Donatello viu um sarcófago romano, imitou-o, temos o Renascimento. Isso chama-se tradição: uma coisa que se transmite de maneira consciente. O que Freud estabeleceu é a existência do inconsciente, que funciona de outra maneira. Há um historiador da arte que levou isso a sério, Aby Warburg, que formulou um conceito diferente, da transmissão de formas, não somente no nível da tradição consciente, mas também num nível subterrâneo. Portanto, sempre há dois níveis, que se contradizem um ao outro.

Qual a consequência de se observar arte nesses dois níveis? A psicanálise é interessante para se ver onde, nas maiores belezas, há coisas terríveis. Há o desejo, a morte, a crueldade, o mal, a doença. É o avesso, a outra face da moeda. Você tem, por exemplo, dois modos de ver Botticelli: ou você vê a primavera, a Vênus, tudo isso é muito lindo; ou vai um pouco mais longe e lembra que o nascimento da deusa é uma história aterrorizante. O sexo de um deus que foi cortado e cai no mar, com sangue e esperma. 

Como a psicanálise ajuda a pensar a relação entre as imagens e a política?  Não se pode ir muito longe numa reflexão sobre a política das imagens sem colocar em jogo a questão psíquica. Pensadores como Marcuse, Adorno ou Benjamin sempre associaram essas duas coisas. É preciso sempre ver o desejo em ação. Quando há desejo, há memória; quando há memória, há recalque; quando há recalque, há conflito; quando há conflito, há sintoma. O mundo das imagens é um enorme campo de batalha subterrâneo. Por cima, vemos a beleza, que é muito importante. Mas, na verdade, a beleza não é nada repousante. 

A arte é livre no capitalismo atual? Hoje, o artista se tornou a própria figura da liberdade. De uma certa maneira, é ainda mais livre que o patrão. Não tem horários marcados, faz o que quer. Falo, evidentemente, de um artista reconhecido. Ele chega num museu, diz que quer uma parede vermelha e se manda imediatamente pintar. É uma figura de liberdade e de autoridade, mas no interior do funcionamento capitalista, e aí a coisa começa a se complicar. Pasolini fazia uma reflexão a Andy Warhol: “Você foi tão longe na vanguarda que entrou no território do seu inimigo. Esqueceu a linha de conflito. O que significa sua liberdade para você, o artista Warhol, enquanto tudo ao seu redor está privado de liberdade? Para que serve ser o único livre? Não serve para nada”. Portanto, a liberdade e a autoridade do artista hoje, infelizmente, são fetiches, coisas que escondem a ausência de liberdade de todos os outros. Isso não está certo. Felizmente, acontece de artistas se darem conta disso e procurarem estratégias para falar da falta de liberdade dos demais. 

Vivemos uma situação trágica para a arte? Um pensador “radical” hoje tenderia a dizer que essa situação da arte, separada do pensamento e da poesia, é trágica, e então algo morreu. Eu falo exatamente o contrário. No âmbito da cultura, nada está morto. Sempre há sobrevivências. É nessa direção que devemos ir. Não sabemos lhes enxergar, mas elas existem. Uma vez, no Rio de Janeiro, eu fui visitar o Parque Lage. Estava emocionado porque o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, que adoro, foi filmado lá. Estava andando pelo parque, no qual há árvores com raízes que vão para todos os lugares. Naquele momento, refleti sobre o que quer dizer ser radical. Os filósofos “radicais” são pessoas como Badiou. O que eles fazem? Eles pensam que a raiz é um bastão em linha reta na terra. Quando eles são radicais, vão até a raiz. Mas é algo unilateral, uma coisa só. No entanto, quando você anda no Parque Lage, é possível notar que as raízes são iguais ao que Warburg descreveu: coisas que passam por baixo, por cima, aqui, lá, em toda parte. Então, se você cortar uma, nem tudo morre. Não se pode desesperar. A filosofia desesperada, “radical”, que diz que tudo morreu, não é verdade. Sempre há um desvio, uma raiz que vai aguentar o tranco e persistir.

*É cineasta, diretor da série 'Incertezas Críticas', exibida pelo Canal Curta

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