O chefe índio: Franco Montoro e o líder político que não existe mais


No centenário de nascimento de Franco Montoro, fica a memória do líder que via a democracia não como slogan, mas como valor fundamental

Por Luiz Carlos Bresser-Pereira
Atualização:

Pierre Clastres, o notável antropólogo francês que escreveu um ensaio clássico sobre os índios das Américas, nos diz que do chefe índio se exigiam três qualidades: ele devia ser forte, para liderar sua tribo na guerra; generoso, porque suas mulheres deviam ajudar os demais; e saber falar, porque todas as tardes ele devia sentar-se ao lado de seus liderados e falar longamente sobre as tradições e os valores de sua tribo – coisas que todos sabiam ou deviam saber mas que era importante repetir.

André Franco Montoro (1916-1999), cujo centenário estamos comemorando neste mês, foi o líder político mais próximo desse chefe índio ideal. Ele era forte e corajoso, sem jamais ser autoritário, era muito generoso, e tinha uma imensa capacidade de sempre afirmar e reafirmar os valores fundamentais que as sociedades verdadeiramente democráticas devem ter.

Em um momento dramático da história do Brasil, em que a falta de líderes políticos dotados de espírito republicano e grandeza é mais sentida, lembrar de Montoro é lembrar do mais notável homem público que conheci, apenas comparável em grandeza a Mário Covas. Montoro era um professor de Direito, Covas, um engenheiro – eram homens muito diferentes –, mas ambos tinham muito mais do que a simples honestidade; eles eram dotados de uma integridade básica, de uma fidelidade a suas ideias e a suas convicções, que, na vida política, faz uma imensa diferença.

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  Foto: AE

Quando eu afirmo que a política é a mais nobre das profissões, as pessoas surpreendem-se – e com razão – porque veem hoje, contristadas, uma classe política onde a corrupção e a falta de espírito público são impressionantes. Mas nós sabemos quão importante é o papel dos políticos nas nossas vidas. Eles não salvam vidas, como fazem os médicos, mas tomam decisões que afetam positiva ou negativamente nossos valores políticos maiores: a segurança, a liberdade individual, o bem-estar econômico, a justiça social e a proteção do meio ambiente.

Montoro sabia bem a importância da política – e por isso se candidatou e foi eleito para todos os cargos políticos exceto o da presidência da República. Como grande governador do Estado de São Paulo, como o líder que lançou na Praça da Sé a campanha das “Diretas já” em janeiro de 1984, ele poderia ter sido o candidato que seria eleito no final desse ano, mas era um homem essencialmente generoso, para o qual o bem comum estava acima de qualquer coisa, e preferiu não disputar com Tancredo Neves, então governador de Minas, porque sabia que para o Colégio Eleitoral ele não seria um candidato tão tranquilo como era Tancredo.

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Montoro, como todo político, visava o poder, mas jamais o poder a qualquer preço. Para ele a ação política estava sempre clara e diretamente subordinada aos seus princípios políticos – aos princípios de um republicanismo católico progressista que rejeitava tanto o comunismo como o liberalismo. Rejeitava o comunismo porque ele era intrinsecamente um democrata, e rejeitava o liberalismo pela mesma razão – afinal o liberalismo sempre foi avesso à democracia, aceitando-a a partir de um certo momento na história como mal menor.

A liberdade, para Montoro, não era a liberdade negativa dos liberais, mas a liberdade republicana do cidadão que a usa para defender o interesse público, ou – na linguagem do catolicismo progressista do qual ele fazia parte – o bem comum. Era a liberdade positiva do cidadão que não é apenas portador de direitos, mas igualmente portador de obrigações para com os seus semelhantes, ou, na linguagem republicana, para com a res publica.

Montoro foi sempre um político muito popular, mas não fazia concessões indevidas ao povo para ser eleito. E também não se subordinava às elites econômicas. Por isso nunca gozou da plena confiança delas. Ele acreditava – às vezes com uma certa saudável ingenuidade – que cabia ao governo intermediar entre as elites e o povo. E adotava como critério para essa intermediação os princípios do direito natural, que, como jurista e professor de Direito, ele ensinou, e, como político, ele aplicou.

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Para Montoro – ou o Dr. André, como o chamávamos –, o poder era um meio para alcançar o bem comum. E a democracia não era um slogan, mas um valor fundamental. Para ele, o poder só tinha legitimidade se fosse baseado no povo, e a qualidade da democracia seria tanto maior quanto mais participativa fosse.

Eu iniciei minha vida pública trabalhando com ele, no primeiro governo democrático de São Paulo, entre 1983 e 1986. Foi uma honra e uma alegria trabalhar com André Franco Montoro. Às vezes ele me parecia idealista demais, mas o idealismo do nosso chefe índio era um idealismo realista, pé no chão. Era um idealismo que faz imensa falta hoje.

Pierre Clastres, o notável antropólogo francês que escreveu um ensaio clássico sobre os índios das Américas, nos diz que do chefe índio se exigiam três qualidades: ele devia ser forte, para liderar sua tribo na guerra; generoso, porque suas mulheres deviam ajudar os demais; e saber falar, porque todas as tardes ele devia sentar-se ao lado de seus liderados e falar longamente sobre as tradições e os valores de sua tribo – coisas que todos sabiam ou deviam saber mas que era importante repetir.

André Franco Montoro (1916-1999), cujo centenário estamos comemorando neste mês, foi o líder político mais próximo desse chefe índio ideal. Ele era forte e corajoso, sem jamais ser autoritário, era muito generoso, e tinha uma imensa capacidade de sempre afirmar e reafirmar os valores fundamentais que as sociedades verdadeiramente democráticas devem ter.

Em um momento dramático da história do Brasil, em que a falta de líderes políticos dotados de espírito republicano e grandeza é mais sentida, lembrar de Montoro é lembrar do mais notável homem público que conheci, apenas comparável em grandeza a Mário Covas. Montoro era um professor de Direito, Covas, um engenheiro – eram homens muito diferentes –, mas ambos tinham muito mais do que a simples honestidade; eles eram dotados de uma integridade básica, de uma fidelidade a suas ideias e a suas convicções, que, na vida política, faz uma imensa diferença.

  Foto: AE

Quando eu afirmo que a política é a mais nobre das profissões, as pessoas surpreendem-se – e com razão – porque veem hoje, contristadas, uma classe política onde a corrupção e a falta de espírito público são impressionantes. Mas nós sabemos quão importante é o papel dos políticos nas nossas vidas. Eles não salvam vidas, como fazem os médicos, mas tomam decisões que afetam positiva ou negativamente nossos valores políticos maiores: a segurança, a liberdade individual, o bem-estar econômico, a justiça social e a proteção do meio ambiente.

Montoro sabia bem a importância da política – e por isso se candidatou e foi eleito para todos os cargos políticos exceto o da presidência da República. Como grande governador do Estado de São Paulo, como o líder que lançou na Praça da Sé a campanha das “Diretas já” em janeiro de 1984, ele poderia ter sido o candidato que seria eleito no final desse ano, mas era um homem essencialmente generoso, para o qual o bem comum estava acima de qualquer coisa, e preferiu não disputar com Tancredo Neves, então governador de Minas, porque sabia que para o Colégio Eleitoral ele não seria um candidato tão tranquilo como era Tancredo.

Montoro, como todo político, visava o poder, mas jamais o poder a qualquer preço. Para ele a ação política estava sempre clara e diretamente subordinada aos seus princípios políticos – aos princípios de um republicanismo católico progressista que rejeitava tanto o comunismo como o liberalismo. Rejeitava o comunismo porque ele era intrinsecamente um democrata, e rejeitava o liberalismo pela mesma razão – afinal o liberalismo sempre foi avesso à democracia, aceitando-a a partir de um certo momento na história como mal menor.

A liberdade, para Montoro, não era a liberdade negativa dos liberais, mas a liberdade republicana do cidadão que a usa para defender o interesse público, ou – na linguagem do catolicismo progressista do qual ele fazia parte – o bem comum. Era a liberdade positiva do cidadão que não é apenas portador de direitos, mas igualmente portador de obrigações para com os seus semelhantes, ou, na linguagem republicana, para com a res publica.

Montoro foi sempre um político muito popular, mas não fazia concessões indevidas ao povo para ser eleito. E também não se subordinava às elites econômicas. Por isso nunca gozou da plena confiança delas. Ele acreditava – às vezes com uma certa saudável ingenuidade – que cabia ao governo intermediar entre as elites e o povo. E adotava como critério para essa intermediação os princípios do direito natural, que, como jurista e professor de Direito, ele ensinou, e, como político, ele aplicou.

Para Montoro – ou o Dr. André, como o chamávamos –, o poder era um meio para alcançar o bem comum. E a democracia não era um slogan, mas um valor fundamental. Para ele, o poder só tinha legitimidade se fosse baseado no povo, e a qualidade da democracia seria tanto maior quanto mais participativa fosse.

Eu iniciei minha vida pública trabalhando com ele, no primeiro governo democrático de São Paulo, entre 1983 e 1986. Foi uma honra e uma alegria trabalhar com André Franco Montoro. Às vezes ele me parecia idealista demais, mas o idealismo do nosso chefe índio era um idealismo realista, pé no chão. Era um idealismo que faz imensa falta hoje.

Pierre Clastres, o notável antropólogo francês que escreveu um ensaio clássico sobre os índios das Américas, nos diz que do chefe índio se exigiam três qualidades: ele devia ser forte, para liderar sua tribo na guerra; generoso, porque suas mulheres deviam ajudar os demais; e saber falar, porque todas as tardes ele devia sentar-se ao lado de seus liderados e falar longamente sobre as tradições e os valores de sua tribo – coisas que todos sabiam ou deviam saber mas que era importante repetir.

André Franco Montoro (1916-1999), cujo centenário estamos comemorando neste mês, foi o líder político mais próximo desse chefe índio ideal. Ele era forte e corajoso, sem jamais ser autoritário, era muito generoso, e tinha uma imensa capacidade de sempre afirmar e reafirmar os valores fundamentais que as sociedades verdadeiramente democráticas devem ter.

Em um momento dramático da história do Brasil, em que a falta de líderes políticos dotados de espírito republicano e grandeza é mais sentida, lembrar de Montoro é lembrar do mais notável homem público que conheci, apenas comparável em grandeza a Mário Covas. Montoro era um professor de Direito, Covas, um engenheiro – eram homens muito diferentes –, mas ambos tinham muito mais do que a simples honestidade; eles eram dotados de uma integridade básica, de uma fidelidade a suas ideias e a suas convicções, que, na vida política, faz uma imensa diferença.

  Foto: AE

Quando eu afirmo que a política é a mais nobre das profissões, as pessoas surpreendem-se – e com razão – porque veem hoje, contristadas, uma classe política onde a corrupção e a falta de espírito público são impressionantes. Mas nós sabemos quão importante é o papel dos políticos nas nossas vidas. Eles não salvam vidas, como fazem os médicos, mas tomam decisões que afetam positiva ou negativamente nossos valores políticos maiores: a segurança, a liberdade individual, o bem-estar econômico, a justiça social e a proteção do meio ambiente.

Montoro sabia bem a importância da política – e por isso se candidatou e foi eleito para todos os cargos políticos exceto o da presidência da República. Como grande governador do Estado de São Paulo, como o líder que lançou na Praça da Sé a campanha das “Diretas já” em janeiro de 1984, ele poderia ter sido o candidato que seria eleito no final desse ano, mas era um homem essencialmente generoso, para o qual o bem comum estava acima de qualquer coisa, e preferiu não disputar com Tancredo Neves, então governador de Minas, porque sabia que para o Colégio Eleitoral ele não seria um candidato tão tranquilo como era Tancredo.

Montoro, como todo político, visava o poder, mas jamais o poder a qualquer preço. Para ele a ação política estava sempre clara e diretamente subordinada aos seus princípios políticos – aos princípios de um republicanismo católico progressista que rejeitava tanto o comunismo como o liberalismo. Rejeitava o comunismo porque ele era intrinsecamente um democrata, e rejeitava o liberalismo pela mesma razão – afinal o liberalismo sempre foi avesso à democracia, aceitando-a a partir de um certo momento na história como mal menor.

A liberdade, para Montoro, não era a liberdade negativa dos liberais, mas a liberdade republicana do cidadão que a usa para defender o interesse público, ou – na linguagem do catolicismo progressista do qual ele fazia parte – o bem comum. Era a liberdade positiva do cidadão que não é apenas portador de direitos, mas igualmente portador de obrigações para com os seus semelhantes, ou, na linguagem republicana, para com a res publica.

Montoro foi sempre um político muito popular, mas não fazia concessões indevidas ao povo para ser eleito. E também não se subordinava às elites econômicas. Por isso nunca gozou da plena confiança delas. Ele acreditava – às vezes com uma certa saudável ingenuidade – que cabia ao governo intermediar entre as elites e o povo. E adotava como critério para essa intermediação os princípios do direito natural, que, como jurista e professor de Direito, ele ensinou, e, como político, ele aplicou.

Para Montoro – ou o Dr. André, como o chamávamos –, o poder era um meio para alcançar o bem comum. E a democracia não era um slogan, mas um valor fundamental. Para ele, o poder só tinha legitimidade se fosse baseado no povo, e a qualidade da democracia seria tanto maior quanto mais participativa fosse.

Eu iniciei minha vida pública trabalhando com ele, no primeiro governo democrático de São Paulo, entre 1983 e 1986. Foi uma honra e uma alegria trabalhar com André Franco Montoro. Às vezes ele me parecia idealista demais, mas o idealismo do nosso chefe índio era um idealismo realista, pé no chão. Era um idealismo que faz imensa falta hoje.

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