Em Um Coração Simples, de Flaubert, após ter criado e amado os filhos da família com dedicação exemplar, Félicité é abandonada ao seu destino de uma criada inútil. Ela jamais fará parte da família, e o final da história é o símbolo dramático do abismo de desigualdade social característico daquela época de inauguração da modernidade. Um século e meio mais tarde, Louise, a babá do recente Canção de Ninar de Leila Slimani, vive os mesmos estigmas, só que ampliados: mais do que a discriminação da classe social mais humilde, ela vivencia o drama de múltiplas desigualdades, na condição de mulher, imigrante, viúva, sem-teto, desamparada e com a família dilacerada.
Estas duas referências literárias, de duas épocas bem distantes, servem de inspiração para o sociólogo francês, François Dubet, em O Tempo das Paixões Tristes – um ensaio que mostra a transformação do sistema das desigualdades sociais nos últimos anos e suas repercussões no enfraquecimento da esfera pública das sociedades. O diagnóstico de Dubet é que, nas duas últimas décadas, vem acontecendo um esgotamento daquele sistema de desigualdades típico das modernas sociedades industriais. Até o nosso vocabulário tem dificuldade para nomear os grupos sociais, esvaziando de significado o conceito de “classes sociais”, provisoriamente substituído por noções que revelam novas e fragmentadas desigualdades: as “classes criativas” e as “estáticas”; os estáveis e os precários, os incluídos e os excluídos, os ganhadores e os perdedores, os minoritários estigmatizados e os majoritários estigmatizantes, os tolerantes e os intolerantes – e uma série quase infinita na listagem apresentada por Dubet. As barreiras instáveis da origem social e cultural, da cor da pele, do sexo, da etnia e dos diplomas funcionam como fronteiras, por vezes, intransponíveis, criando uma multidão de “novos invisíveis” sociais. Entre o mundo de Felicité e Louise muita coisa mudou. No mundo de Felicité, as classes sociais surgiram do contraditório entre a igualdade democrática e a divisão do trabalho capitalista e o conflito, quase sempre anônimo, era catalisado por alguma entidade institucional, como sindicatos, associações, organizações patronais ou o próprio Estado, resultando, bem ou mal, em alguma forma de acordo: era, afinal, aquilo que nos acostumamos a chamar de Política. Já não é mais assim no mundo de Louise. As transformações do capitalismo diluíram as relações de dominação, que foram progressivamente identificadas com o funcionamento de um sistema cego e sem atores: a globalização, o sistema financeiro, o neoliberalismo, as tecnologias – todos transformaram-se em (mal) definidos adversários, entes abstratos os quais não integram em nenhuma “grande narrativa”, suscetível de lhes dar sentido, designar suas causas e seus responsáveis ou, ao menos, de esboçar projetos para combatê-los. Com o advento da comunicação digital, Dubet analisa o modo como as desigualdades parecem se perder na miríade das interações sociais e de intercâmbios cotidianos nas redes sociais, nos olhares e atitudes, no desprezo e no ressentimento. As frustrações recalcadas abrem espaço para o ódio pelos outros, que é uma das tantas formas de evitar o desprezo de si mesmo. Quando as tensões e as desigualdades se tornam extremas, oscila-se entre a paranoia, que enxerga a dominação em todos os lugares, e a violência, que se revela através da ação. No mundo de Louise, que é o universo digital, as modalidades de interação social produzem uma quantidade maior de dados, captados por uma oferta cada vez mais vasta de dispositivos, indexados por uma centena de aplicativos. É um nova “taylorização” da vida social – ou seja, a automação da captura de informações que replicam o processo de produção de bens nas fábricas – gerando dados quando trabalhamos, quando participamos de um ato de protesto ou até quando estamos silenciosamente sentados em nossa sala. Como resultado, novas e impensáveis desigualdades aparecem. Embora não tenha mais um contexto legal, a proibição de transpor barreiras subsiste mais do que se poderia imaginar. A internet multiplica os testemunhos do “estilo paranoico”, cujo design é simples: a infelicidade do mundo procede de uma causa única e oculta, mas cujo poder se revela através de múltiplos sinais apenas para aqueles que sabem reconhecê-los. O antissemitismo é o arquétipo desse estilo: quanto menos os judeus são visíveis, mais eles são poderosos. Óbvio, que o lugar dos judeus pode ser ocupado por outras tantas “forças ocultas”: as finanças, os tecnocratas, os comunistas ou quaisquer outros bodes expiatórios para os quais canalizar os ódios do momento. As desigualdades se fragmentam e são experimentadas em singulares exemplos de constrangimentos individuais e sofrimentos íntimos, que incrementam a indignação e os ressentimentos sociais – sobretudo porque estes últimos não mais convergem para movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos ou outras formas institucionais de expressão política senão por meio de uma leitura insensata da vida social ou dos irracionais caminhos de um (mal compreendido) populismo raso e agressivo, praticado por líderes rasos e medíocres. Nas ficções narradas por Flaubert e Slimani, ao contrário do cenário histórico real, sabemos o final apenas sob a forma literária de paixões recolhidas ou fracassadas: toda a intensa afetividade de Felicité converge para um papagaio, ou seja, para uma criatura ensimesmada, proibida de futuro, desprovida de ambições ou delírios de grandeza; já na história de Louise, tudo termina com um repentino e violento infanticídio. Talvez um presságio, quem sabe um alerta, mas, de qualquer modo, um final dramaticamente premonitório para este tempo de paixões tristes. ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘RAÍZES DO RISO’ (ED. COMPANHIA DAS LETRAS) .