Quem lê O Peso do Coração de um Homem, mais recente livro de Micheliny Verunschk e segundo de sua Trilogia Infernal, se depara com os irmãos de nomes Menino e Menino. A questão da nomeação está presente na continuação da história. Ao ver a poeira vermelha levantar na estrada, Menino logo entende que ela seria sinônimo de sangue, vingança e novos nomes, principalmente o seu: Cristóvão, aquele que “carrega a cruz”.
Um significado do qual leitor compartilha, já que desde o início também carrega a cruz de saber que o personagem se tornará canibal ao longo da narrativa, algo revelado no primeiro livro da trilogia. Aqui, no Coração do Inferno, cronologicamente posterior ao segundo, é sobre a perspectiva de uma menina, filha de um delegado, que conta como foi conviver com um consumidor de carne humana preso na cozinha de casa e descobrir arquivos secretos do pai, um torturador na ditadura.
Segundo Micheliny Verunschk, em entrevista ao Aliás, a trilogia é infernal por tratar de canibalismo, ditadura, assassinato e outros temas que remetem ao “inferno palpável, que não é longe daqui”. “O projeto é ambicioso, eu sei disso. Mas, se não for, é melhor não escrever livros. Eu só posso ser ambiciosa.” A autora de 44 anos nasceu em Recife e começou na poesia, escrevendo diversas obras antes da primeira prosa publicada, Nossa Teresa, Vida e História de uma Santa Suicida, que, de certa forma, também trata de um tema “infernal”. Ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria de estreante, em 2015, o livro tem como tema a transformação de Teresa em santa após tirar a própria vida. Agora Micheliny concorre ao Prêmio Rio de Literatura, com Aqui, no Coração do Inferno.
Dois temas predominam em sua obra: o da “violência institucionalizada da sociedade como promotora do terror” e a morte. “Porque é a parada final, onde todos vamos chegar”, explica Micheliny. Mas, então, qual seria a parada inicial da literatura de Verunschk? No primeiro livro da trilogia, a narradora mora no que chama de “coração do inferno” e o narrador do segundo a encontra lá depois de sair dos Gritos. “E morar ali era morar perto do fim do mundo. E morar perto do fim do mundo é morar longe, perto de nada, numa terra sem país”, diz. O que nos leva a pensar: quem vive numa terra sem país só se faz ouvir gritando?
Para Micheliny, “se formos pensar na questão indígena, na mulher, nas minorias, o inferno é muito próximo”. Ela ainda argumenta que não existe literatura feminina, “porque não existe uma masculina.” Existe, sim, segundo ela, “literatura feita por mulheres.” Nós, mulheres, estamos aqui, fazendo literatura de alta qualidade. E não estamos dispostas a nos submeter à antiga invisibilidade, mantida por muito tempo.”
Um ponto chave da narrativa da autora é não ser possível ler suas histórias esperando roteiros complexos. A carga está no modo como algo é contado, de forma muitas vezes poética, como quando Cristóvão diz: “Em casa de nosso pai eram duas portas apenas, uma à entrada, e outra à saída, como aprendi de ser o certo. Naquela casa, não, naquela casa, o mundo pelo contrário.”
A poesia vem como uma quebra da densidade dos temas. A cena do canibalismo de Cristóvão é brutal, mas poética. “Acho que se você não traz o elemento poético para esse momento, principalmente o terrível, ele fica banal. O banal a gente já tem. É preciso entrar na alma. A poesia tem o instrumento para tirar essa banalização, mas em excesso também banaliza”, diz a autora. E, para não banalizar, Micheliny recorre também à composição da narrativa, ou seja, à simultaneidade de tempos e vozes, pois acredita que “uma história não é contada por uma única voz”. Assim, mesmo em primeira pessoa, percebemos essas vozes diversas invadindo a narrativa de Cristóvão, de forma que, às vezes, ele é um narrador dito pelo outro. Até mesmo a nomeação do personagem é dada por uma completa desconhecida que o recebe em casa depois que os pais dele são assassinados.
Assim como a figura do canibal, o Brasil também é dito pelo outro desde o primeiro relato sobre o nosso país feito na carta de Pero Vaz de Caminha. “O brasileiro se exime de dizer ‘eu sou’, ele prefere que outros digam quem ele é”, explica. Ainda dialogando com a história do País, durante a invasão holandesa, no século 17, a prática do canibalismo foi descrita pelos primeiros viajantes associada aos indígenas e, durante anos, à imagem ao Brasil. Para Verunschk, nós ainda somos canibais, em certa medida: “Quando você liga a TV e vê programas policiais e sangue, está exercendo sua parte de canibalismo. Dentro dessa sociedade do espetáculo você é um consumidor de carne humana”. Já em relação à questão do livro da santa, seu primeiro em prosa, Verunschk também alega que somos todos, de certa forma, Teresa. “Você é suicida quando parcela a vida em consumo. Não existe suicídio maior do que se inserir em uma sociedade consumista e precisar sempre e sempre mais. Não é à toa que quando está endividado diz que está com a corda no pescoço. Quem coloca a corda no pescoço?”, Micheliny questiona, mostrando que a sua ironia não está só na ficção.
*Bruna Meneguetti é jornalista, escritora e autora de 'O Céu de Clarice' (Amazon e Wattpad)
O Peso do Coração de um Homem Autora: Micheliny VerunschkEditora: Patuá 120 páginas R$ 38Disponível pelo site