O que as obras inacabadas dizem sobre Leonardo da Vinci?


Exposição da tela 'São Jerônimo no Deserto' no Metropolitan Museum mostra como os trabalhos não finalizados ajudam a compreender o mestre renascentista

Por Holland Cotter

O 500º aniversário da morte de Leonardo da Vinci levará muita atividade a Paris neste outono, com a maior retrospectiva isolada da carreira do artista no Museu do Louvre. Nova York terá uma amostra adiantada do agito com a abertura da exposição de um só quadro de Leonardo no Met, nesta segunda-feira. Trata-se da pintura São Jerônimo no Deserto, uma das imagens mais cruamente emocionais da obra de Leonardo.

Detalhe de 'São Jerônimo no Deserto', obra inacabada de Leonardo da Vinci Foto: Museu do Vaticano

Leonardo da Vinci foi uma estrela desde o início. Segundo o historiador de arte do século 16 Giorgio Vasari, seus contemporâneos o achavam irresistivelmente atraente. (Vasari o chama de “divino” umas dez vezes numa biografia de 20 página.) Genial, maravilhoso, cerebral, foram adjetivos que sempre acompanharam o artista , que possuía “o equilíbrio mental entre um príncipe e um filósofo”. Em sua longa carreira de artista, arquiteto e inventor, a graça e o talento se combinaram para aplainar seu caminho da Toscana rural, onde nasceu em 1452, para as cortes de Milão e da Roma papal até a França, onde, como artista financiado por Francisco I, ele morreu em 1519. 

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Mas essa mente insaciável lhe trazia problemas. Basicamente, antes de fazer qualquer coisa Leonardo tinha de saber tudo daquilo com que estava trabalhando: como suas tintas e vernizes eram feitos, como o corpo humano era internamente estruturado e como a arte se arte enquadrava no esquema cósmico das coisas.

Isso exigia, como nota Vasari, pesquisas, experimentações, muita conversação e longos momentos de pensamento silencioso. Na biografia, o próprio Leonardo explica a um patrocinador invasivo que “quanto menos os gênios trabalham, mais eles produzem”. O resultado final, em seu caso, foram relativamente poucas pinturas concluídas e muitas obras iniciadas e jamais acabadas.

A obra única exposta no Met, São Jerônimo no Deserto, cedida em empréstimo pelo Museu do Vaticano, é uma dessas telas inacabadas. Iniciada em torno de 1483, percebe-se instantaneamente que se trata de um trabalho em execução, com traços finíssimos num ponto e pinceladas grosseiras em outro. Mas inconclusão é parte do poder de Leonardo - e o quadro é poderoso, rico como uma ópera dramática em três atos que tem ao centro uma ária avassaladora de escaldante angústia. 

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Igualmente importante é que o status de da obra é formalmente instrutivo. Ele nos permite ver em ação um Leonardo em plena adoção de seu característico método de trabalho, com paradas e recomeços.  O quadro é uma de cerca de uma dezena de obras inquestionavelmente aceitas como feitas pela mão de Leonardo. Ele mostra um santo dos primórdios do cristianismo que, após um período de ascetismo e autopunição no deserto, se estabelece em Roma para se dedicar à tradução da Bíblia do hebraico e do grego para o latim. Muitas pinuras renascentistas sobre Jerônimo (347-420 a.D.) o mostram imerso em seu trabalho intelectual, geralmente acompanhado de um leão semiadormecido - uma espécie de apoio e companhia emocional. O clima de tais pinturas sugere uma amena vibração de Reino Pacífico.  Não, porém, o quadro de Leonardo. Nele, o que se vê é um santo e uma besta não domesticados, um Jerônimo vivendo no deserto inóspito, ou talvez aquele que morreu muito longe de Roma, numa caverna dos arredores de Belém. Envelhecido, quase sem dentes, fustigado pelo sol, Jerônimo segura uma pedra na mão direita, como se estivesse prestes a desfechar um golpe de penitência no próprio peito. A seus pés está um leão desperto e alerta, cauda curvada como cimitarra, boca aberta num rugido selvagem.  Não se sabe por que, ou para quem, o quadro foi feito. Carmen C. Bambach, curadora do Met e organizadora da exposição, propõe, para efeito de discussão, que a obra tenha sido iniciada logo após o artista ter se mudado de Florença para Milão. Embora a tela reflita o estilo florentino de Leonardo - e traga no canto superior direito um pequeno esboço do que poderia ser uma igreja toscana -, ela é pintada num painel de nogueira, madeira comum em Milão, mas muito rara em Florença.  Conservadores e restauradores encontraram evidências de que Leonardo abandonou a obra num estágio inicial para retomá-la mais tarde, possivelmente mais de uma vez. A parte frontal do quadro, pendurado sem holofotes numa galeria discretamente iluminada da Ala Lehman do Met, transmite uma sensação de tensa atividade.  Em alguns pontos essa atividade não foi além de um avanço preliminar. O leão destina-se mais a marcar um espaço. O mesmo se pode dizer do braço mal definido de Jerônimo segurando a pedra. Mas tudo começa a mudar abaixo do ombro do santo. A carne subitamente ganha sombras. Os músculos crescem. E esse naturalismo se espalha pelo rosto - uma construção de tendões e ossos que traz à mente os desenhos de autópsias de Leonardo. Entretanto, mesmo com tais precisões clínicas, certas mensagens são difíceis de se ler. À primeira vista, os olhos do santo parecem inexpressivos ou cansados. Na verdade, eles estão voltados para cima, para um crucifixo ocasional e esmaecido visto de lado. Sabe-se que Leonardo manteve consigo o quadro até a morte, e aí começa outra história. A obra desapareceu de cena até o final do século 18 ou início do 19, quando foi comprada pela pintora suíça Angelica Kaufman (1741-1839), então morando em Roma. Em algum momento, pedaços foram cortados do painel, provavelmente com a ideia de se vender certas partes. Mais tarde, tudo foi reunido e montado novamente. No Met, graças à iluminação especial, podem-se ver as linhas da restauração em torno da cabeça do santo.  Por que Leonardo deixou essa e outras pinturas inacabadas talvez nunca se venha a saber. Bambach, que em 2013 organizou no Met uma pesquisa sobre desenhos de Leonardo e é autora de um extremamente ambicioso estudo em quatro volumes sobre o artista, denominado Leonardo da Vinci Redescoberto, que será lançado ainda neste mês, sugere que a resposta esteja na incansável personalidade inquiridora de Leonardo. Deu um modo hoje tornado familiar pela internet, cada busca de informação pelo artista abria links para outras buscas, das quais ele não resistia em ir atrás.  E nisso Bambach parece estar de acordo com Vasari, que escreveu: “A mente profunda e perspicaz de Leonardo era tão ambiciosa que por si só constituía um impedimento. A razão pela qual ele falhou algumas vezes foi ter ousado adicionar excelência e perfeição à própria perfeição. Como disse Petrarca, o desejo ultrapassa o desempenho”.  O resultado, como parecem sugerir os dois historiadores, é uma arte que, conscientemente ou não, privilegia o processo sobre o acabamento, a experimentação sobre a resolução. A zona de conforto de Leonardo consistia em nunca dizer “feito”. E, no caso do quadro emprestado pelo Vaticano, isso embute uma compensação fantástica - a de podermos contemplar uma emoção febril que não para nunca de queimar. Essa fornalha de devoção angustiada vai arder durante todo o verão. Seria bom o Met pôr no máximo seu sistema de ar condicionado. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ 

O 500º aniversário da morte de Leonardo da Vinci levará muita atividade a Paris neste outono, com a maior retrospectiva isolada da carreira do artista no Museu do Louvre. Nova York terá uma amostra adiantada do agito com a abertura da exposição de um só quadro de Leonardo no Met, nesta segunda-feira. Trata-se da pintura São Jerônimo no Deserto, uma das imagens mais cruamente emocionais da obra de Leonardo.

Detalhe de 'São Jerônimo no Deserto', obra inacabada de Leonardo da Vinci Foto: Museu do Vaticano

Leonardo da Vinci foi uma estrela desde o início. Segundo o historiador de arte do século 16 Giorgio Vasari, seus contemporâneos o achavam irresistivelmente atraente. (Vasari o chama de “divino” umas dez vezes numa biografia de 20 página.) Genial, maravilhoso, cerebral, foram adjetivos que sempre acompanharam o artista , que possuía “o equilíbrio mental entre um príncipe e um filósofo”. Em sua longa carreira de artista, arquiteto e inventor, a graça e o talento se combinaram para aplainar seu caminho da Toscana rural, onde nasceu em 1452, para as cortes de Milão e da Roma papal até a França, onde, como artista financiado por Francisco I, ele morreu em 1519. 

Mas essa mente insaciável lhe trazia problemas. Basicamente, antes de fazer qualquer coisa Leonardo tinha de saber tudo daquilo com que estava trabalhando: como suas tintas e vernizes eram feitos, como o corpo humano era internamente estruturado e como a arte se arte enquadrava no esquema cósmico das coisas.

Isso exigia, como nota Vasari, pesquisas, experimentações, muita conversação e longos momentos de pensamento silencioso. Na biografia, o próprio Leonardo explica a um patrocinador invasivo que “quanto menos os gênios trabalham, mais eles produzem”. O resultado final, em seu caso, foram relativamente poucas pinturas concluídas e muitas obras iniciadas e jamais acabadas.

A obra única exposta no Met, São Jerônimo no Deserto, cedida em empréstimo pelo Museu do Vaticano, é uma dessas telas inacabadas. Iniciada em torno de 1483, percebe-se instantaneamente que se trata de um trabalho em execução, com traços finíssimos num ponto e pinceladas grosseiras em outro. Mas inconclusão é parte do poder de Leonardo - e o quadro é poderoso, rico como uma ópera dramática em três atos que tem ao centro uma ária avassaladora de escaldante angústia. 

Igualmente importante é que o status de da obra é formalmente instrutivo. Ele nos permite ver em ação um Leonardo em plena adoção de seu característico método de trabalho, com paradas e recomeços.  O quadro é uma de cerca de uma dezena de obras inquestionavelmente aceitas como feitas pela mão de Leonardo. Ele mostra um santo dos primórdios do cristianismo que, após um período de ascetismo e autopunição no deserto, se estabelece em Roma para se dedicar à tradução da Bíblia do hebraico e do grego para o latim. Muitas pinuras renascentistas sobre Jerônimo (347-420 a.D.) o mostram imerso em seu trabalho intelectual, geralmente acompanhado de um leão semiadormecido - uma espécie de apoio e companhia emocional. O clima de tais pinturas sugere uma amena vibração de Reino Pacífico.  Não, porém, o quadro de Leonardo. Nele, o que se vê é um santo e uma besta não domesticados, um Jerônimo vivendo no deserto inóspito, ou talvez aquele que morreu muito longe de Roma, numa caverna dos arredores de Belém. Envelhecido, quase sem dentes, fustigado pelo sol, Jerônimo segura uma pedra na mão direita, como se estivesse prestes a desfechar um golpe de penitência no próprio peito. A seus pés está um leão desperto e alerta, cauda curvada como cimitarra, boca aberta num rugido selvagem.  Não se sabe por que, ou para quem, o quadro foi feito. Carmen C. Bambach, curadora do Met e organizadora da exposição, propõe, para efeito de discussão, que a obra tenha sido iniciada logo após o artista ter se mudado de Florença para Milão. Embora a tela reflita o estilo florentino de Leonardo - e traga no canto superior direito um pequeno esboço do que poderia ser uma igreja toscana -, ela é pintada num painel de nogueira, madeira comum em Milão, mas muito rara em Florença.  Conservadores e restauradores encontraram evidências de que Leonardo abandonou a obra num estágio inicial para retomá-la mais tarde, possivelmente mais de uma vez. A parte frontal do quadro, pendurado sem holofotes numa galeria discretamente iluminada da Ala Lehman do Met, transmite uma sensação de tensa atividade.  Em alguns pontos essa atividade não foi além de um avanço preliminar. O leão destina-se mais a marcar um espaço. O mesmo se pode dizer do braço mal definido de Jerônimo segurando a pedra. Mas tudo começa a mudar abaixo do ombro do santo. A carne subitamente ganha sombras. Os músculos crescem. E esse naturalismo se espalha pelo rosto - uma construção de tendões e ossos que traz à mente os desenhos de autópsias de Leonardo. Entretanto, mesmo com tais precisões clínicas, certas mensagens são difíceis de se ler. À primeira vista, os olhos do santo parecem inexpressivos ou cansados. Na verdade, eles estão voltados para cima, para um crucifixo ocasional e esmaecido visto de lado. Sabe-se que Leonardo manteve consigo o quadro até a morte, e aí começa outra história. A obra desapareceu de cena até o final do século 18 ou início do 19, quando foi comprada pela pintora suíça Angelica Kaufman (1741-1839), então morando em Roma. Em algum momento, pedaços foram cortados do painel, provavelmente com a ideia de se vender certas partes. Mais tarde, tudo foi reunido e montado novamente. No Met, graças à iluminação especial, podem-se ver as linhas da restauração em torno da cabeça do santo.  Por que Leonardo deixou essa e outras pinturas inacabadas talvez nunca se venha a saber. Bambach, que em 2013 organizou no Met uma pesquisa sobre desenhos de Leonardo e é autora de um extremamente ambicioso estudo em quatro volumes sobre o artista, denominado Leonardo da Vinci Redescoberto, que será lançado ainda neste mês, sugere que a resposta esteja na incansável personalidade inquiridora de Leonardo. Deu um modo hoje tornado familiar pela internet, cada busca de informação pelo artista abria links para outras buscas, das quais ele não resistia em ir atrás.  E nisso Bambach parece estar de acordo com Vasari, que escreveu: “A mente profunda e perspicaz de Leonardo era tão ambiciosa que por si só constituía um impedimento. A razão pela qual ele falhou algumas vezes foi ter ousado adicionar excelência e perfeição à própria perfeição. Como disse Petrarca, o desejo ultrapassa o desempenho”.  O resultado, como parecem sugerir os dois historiadores, é uma arte que, conscientemente ou não, privilegia o processo sobre o acabamento, a experimentação sobre a resolução. A zona de conforto de Leonardo consistia em nunca dizer “feito”. E, no caso do quadro emprestado pelo Vaticano, isso embute uma compensação fantástica - a de podermos contemplar uma emoção febril que não para nunca de queimar. Essa fornalha de devoção angustiada vai arder durante todo o verão. Seria bom o Met pôr no máximo seu sistema de ar condicionado. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ 

O 500º aniversário da morte de Leonardo da Vinci levará muita atividade a Paris neste outono, com a maior retrospectiva isolada da carreira do artista no Museu do Louvre. Nova York terá uma amostra adiantada do agito com a abertura da exposição de um só quadro de Leonardo no Met, nesta segunda-feira. Trata-se da pintura São Jerônimo no Deserto, uma das imagens mais cruamente emocionais da obra de Leonardo.

Detalhe de 'São Jerônimo no Deserto', obra inacabada de Leonardo da Vinci Foto: Museu do Vaticano

Leonardo da Vinci foi uma estrela desde o início. Segundo o historiador de arte do século 16 Giorgio Vasari, seus contemporâneos o achavam irresistivelmente atraente. (Vasari o chama de “divino” umas dez vezes numa biografia de 20 página.) Genial, maravilhoso, cerebral, foram adjetivos que sempre acompanharam o artista , que possuía “o equilíbrio mental entre um príncipe e um filósofo”. Em sua longa carreira de artista, arquiteto e inventor, a graça e o talento se combinaram para aplainar seu caminho da Toscana rural, onde nasceu em 1452, para as cortes de Milão e da Roma papal até a França, onde, como artista financiado por Francisco I, ele morreu em 1519. 

Mas essa mente insaciável lhe trazia problemas. Basicamente, antes de fazer qualquer coisa Leonardo tinha de saber tudo daquilo com que estava trabalhando: como suas tintas e vernizes eram feitos, como o corpo humano era internamente estruturado e como a arte se arte enquadrava no esquema cósmico das coisas.

Isso exigia, como nota Vasari, pesquisas, experimentações, muita conversação e longos momentos de pensamento silencioso. Na biografia, o próprio Leonardo explica a um patrocinador invasivo que “quanto menos os gênios trabalham, mais eles produzem”. O resultado final, em seu caso, foram relativamente poucas pinturas concluídas e muitas obras iniciadas e jamais acabadas.

A obra única exposta no Met, São Jerônimo no Deserto, cedida em empréstimo pelo Museu do Vaticano, é uma dessas telas inacabadas. Iniciada em torno de 1483, percebe-se instantaneamente que se trata de um trabalho em execução, com traços finíssimos num ponto e pinceladas grosseiras em outro. Mas inconclusão é parte do poder de Leonardo - e o quadro é poderoso, rico como uma ópera dramática em três atos que tem ao centro uma ária avassaladora de escaldante angústia. 

Igualmente importante é que o status de da obra é formalmente instrutivo. Ele nos permite ver em ação um Leonardo em plena adoção de seu característico método de trabalho, com paradas e recomeços.  O quadro é uma de cerca de uma dezena de obras inquestionavelmente aceitas como feitas pela mão de Leonardo. Ele mostra um santo dos primórdios do cristianismo que, após um período de ascetismo e autopunição no deserto, se estabelece em Roma para se dedicar à tradução da Bíblia do hebraico e do grego para o latim. Muitas pinuras renascentistas sobre Jerônimo (347-420 a.D.) o mostram imerso em seu trabalho intelectual, geralmente acompanhado de um leão semiadormecido - uma espécie de apoio e companhia emocional. O clima de tais pinturas sugere uma amena vibração de Reino Pacífico.  Não, porém, o quadro de Leonardo. Nele, o que se vê é um santo e uma besta não domesticados, um Jerônimo vivendo no deserto inóspito, ou talvez aquele que morreu muito longe de Roma, numa caverna dos arredores de Belém. Envelhecido, quase sem dentes, fustigado pelo sol, Jerônimo segura uma pedra na mão direita, como se estivesse prestes a desfechar um golpe de penitência no próprio peito. A seus pés está um leão desperto e alerta, cauda curvada como cimitarra, boca aberta num rugido selvagem.  Não se sabe por que, ou para quem, o quadro foi feito. Carmen C. Bambach, curadora do Met e organizadora da exposição, propõe, para efeito de discussão, que a obra tenha sido iniciada logo após o artista ter se mudado de Florença para Milão. Embora a tela reflita o estilo florentino de Leonardo - e traga no canto superior direito um pequeno esboço do que poderia ser uma igreja toscana -, ela é pintada num painel de nogueira, madeira comum em Milão, mas muito rara em Florença.  Conservadores e restauradores encontraram evidências de que Leonardo abandonou a obra num estágio inicial para retomá-la mais tarde, possivelmente mais de uma vez. A parte frontal do quadro, pendurado sem holofotes numa galeria discretamente iluminada da Ala Lehman do Met, transmite uma sensação de tensa atividade.  Em alguns pontos essa atividade não foi além de um avanço preliminar. O leão destina-se mais a marcar um espaço. O mesmo se pode dizer do braço mal definido de Jerônimo segurando a pedra. Mas tudo começa a mudar abaixo do ombro do santo. A carne subitamente ganha sombras. Os músculos crescem. E esse naturalismo se espalha pelo rosto - uma construção de tendões e ossos que traz à mente os desenhos de autópsias de Leonardo. Entretanto, mesmo com tais precisões clínicas, certas mensagens são difíceis de se ler. À primeira vista, os olhos do santo parecem inexpressivos ou cansados. Na verdade, eles estão voltados para cima, para um crucifixo ocasional e esmaecido visto de lado. Sabe-se que Leonardo manteve consigo o quadro até a morte, e aí começa outra história. A obra desapareceu de cena até o final do século 18 ou início do 19, quando foi comprada pela pintora suíça Angelica Kaufman (1741-1839), então morando em Roma. Em algum momento, pedaços foram cortados do painel, provavelmente com a ideia de se vender certas partes. Mais tarde, tudo foi reunido e montado novamente. No Met, graças à iluminação especial, podem-se ver as linhas da restauração em torno da cabeça do santo.  Por que Leonardo deixou essa e outras pinturas inacabadas talvez nunca se venha a saber. Bambach, que em 2013 organizou no Met uma pesquisa sobre desenhos de Leonardo e é autora de um extremamente ambicioso estudo em quatro volumes sobre o artista, denominado Leonardo da Vinci Redescoberto, que será lançado ainda neste mês, sugere que a resposta esteja na incansável personalidade inquiridora de Leonardo. Deu um modo hoje tornado familiar pela internet, cada busca de informação pelo artista abria links para outras buscas, das quais ele não resistia em ir atrás.  E nisso Bambach parece estar de acordo com Vasari, que escreveu: “A mente profunda e perspicaz de Leonardo era tão ambiciosa que por si só constituía um impedimento. A razão pela qual ele falhou algumas vezes foi ter ousado adicionar excelência e perfeição à própria perfeição. Como disse Petrarca, o desejo ultrapassa o desempenho”.  O resultado, como parecem sugerir os dois historiadores, é uma arte que, conscientemente ou não, privilegia o processo sobre o acabamento, a experimentação sobre a resolução. A zona de conforto de Leonardo consistia em nunca dizer “feito”. E, no caso do quadro emprestado pelo Vaticano, isso embute uma compensação fantástica - a de podermos contemplar uma emoção febril que não para nunca de queimar. Essa fornalha de devoção angustiada vai arder durante todo o verão. Seria bom o Met pôr no máximo seu sistema de ar condicionado. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ 

O 500º aniversário da morte de Leonardo da Vinci levará muita atividade a Paris neste outono, com a maior retrospectiva isolada da carreira do artista no Museu do Louvre. Nova York terá uma amostra adiantada do agito com a abertura da exposição de um só quadro de Leonardo no Met, nesta segunda-feira. Trata-se da pintura São Jerônimo no Deserto, uma das imagens mais cruamente emocionais da obra de Leonardo.

Detalhe de 'São Jerônimo no Deserto', obra inacabada de Leonardo da Vinci Foto: Museu do Vaticano

Leonardo da Vinci foi uma estrela desde o início. Segundo o historiador de arte do século 16 Giorgio Vasari, seus contemporâneos o achavam irresistivelmente atraente. (Vasari o chama de “divino” umas dez vezes numa biografia de 20 página.) Genial, maravilhoso, cerebral, foram adjetivos que sempre acompanharam o artista , que possuía “o equilíbrio mental entre um príncipe e um filósofo”. Em sua longa carreira de artista, arquiteto e inventor, a graça e o talento se combinaram para aplainar seu caminho da Toscana rural, onde nasceu em 1452, para as cortes de Milão e da Roma papal até a França, onde, como artista financiado por Francisco I, ele morreu em 1519. 

Mas essa mente insaciável lhe trazia problemas. Basicamente, antes de fazer qualquer coisa Leonardo tinha de saber tudo daquilo com que estava trabalhando: como suas tintas e vernizes eram feitos, como o corpo humano era internamente estruturado e como a arte se arte enquadrava no esquema cósmico das coisas.

Isso exigia, como nota Vasari, pesquisas, experimentações, muita conversação e longos momentos de pensamento silencioso. Na biografia, o próprio Leonardo explica a um patrocinador invasivo que “quanto menos os gênios trabalham, mais eles produzem”. O resultado final, em seu caso, foram relativamente poucas pinturas concluídas e muitas obras iniciadas e jamais acabadas.

A obra única exposta no Met, São Jerônimo no Deserto, cedida em empréstimo pelo Museu do Vaticano, é uma dessas telas inacabadas. Iniciada em torno de 1483, percebe-se instantaneamente que se trata de um trabalho em execução, com traços finíssimos num ponto e pinceladas grosseiras em outro. Mas inconclusão é parte do poder de Leonardo - e o quadro é poderoso, rico como uma ópera dramática em três atos que tem ao centro uma ária avassaladora de escaldante angústia. 

Igualmente importante é que o status de da obra é formalmente instrutivo. Ele nos permite ver em ação um Leonardo em plena adoção de seu característico método de trabalho, com paradas e recomeços.  O quadro é uma de cerca de uma dezena de obras inquestionavelmente aceitas como feitas pela mão de Leonardo. Ele mostra um santo dos primórdios do cristianismo que, após um período de ascetismo e autopunição no deserto, se estabelece em Roma para se dedicar à tradução da Bíblia do hebraico e do grego para o latim. Muitas pinuras renascentistas sobre Jerônimo (347-420 a.D.) o mostram imerso em seu trabalho intelectual, geralmente acompanhado de um leão semiadormecido - uma espécie de apoio e companhia emocional. O clima de tais pinturas sugere uma amena vibração de Reino Pacífico.  Não, porém, o quadro de Leonardo. Nele, o que se vê é um santo e uma besta não domesticados, um Jerônimo vivendo no deserto inóspito, ou talvez aquele que morreu muito longe de Roma, numa caverna dos arredores de Belém. Envelhecido, quase sem dentes, fustigado pelo sol, Jerônimo segura uma pedra na mão direita, como se estivesse prestes a desfechar um golpe de penitência no próprio peito. A seus pés está um leão desperto e alerta, cauda curvada como cimitarra, boca aberta num rugido selvagem.  Não se sabe por que, ou para quem, o quadro foi feito. Carmen C. Bambach, curadora do Met e organizadora da exposição, propõe, para efeito de discussão, que a obra tenha sido iniciada logo após o artista ter se mudado de Florença para Milão. Embora a tela reflita o estilo florentino de Leonardo - e traga no canto superior direito um pequeno esboço do que poderia ser uma igreja toscana -, ela é pintada num painel de nogueira, madeira comum em Milão, mas muito rara em Florença.  Conservadores e restauradores encontraram evidências de que Leonardo abandonou a obra num estágio inicial para retomá-la mais tarde, possivelmente mais de uma vez. A parte frontal do quadro, pendurado sem holofotes numa galeria discretamente iluminada da Ala Lehman do Met, transmite uma sensação de tensa atividade.  Em alguns pontos essa atividade não foi além de um avanço preliminar. O leão destina-se mais a marcar um espaço. O mesmo se pode dizer do braço mal definido de Jerônimo segurando a pedra. Mas tudo começa a mudar abaixo do ombro do santo. A carne subitamente ganha sombras. Os músculos crescem. E esse naturalismo se espalha pelo rosto - uma construção de tendões e ossos que traz à mente os desenhos de autópsias de Leonardo. Entretanto, mesmo com tais precisões clínicas, certas mensagens são difíceis de se ler. À primeira vista, os olhos do santo parecem inexpressivos ou cansados. Na verdade, eles estão voltados para cima, para um crucifixo ocasional e esmaecido visto de lado. Sabe-se que Leonardo manteve consigo o quadro até a morte, e aí começa outra história. A obra desapareceu de cena até o final do século 18 ou início do 19, quando foi comprada pela pintora suíça Angelica Kaufman (1741-1839), então morando em Roma. Em algum momento, pedaços foram cortados do painel, provavelmente com a ideia de se vender certas partes. Mais tarde, tudo foi reunido e montado novamente. No Met, graças à iluminação especial, podem-se ver as linhas da restauração em torno da cabeça do santo.  Por que Leonardo deixou essa e outras pinturas inacabadas talvez nunca se venha a saber. Bambach, que em 2013 organizou no Met uma pesquisa sobre desenhos de Leonardo e é autora de um extremamente ambicioso estudo em quatro volumes sobre o artista, denominado Leonardo da Vinci Redescoberto, que será lançado ainda neste mês, sugere que a resposta esteja na incansável personalidade inquiridora de Leonardo. Deu um modo hoje tornado familiar pela internet, cada busca de informação pelo artista abria links para outras buscas, das quais ele não resistia em ir atrás.  E nisso Bambach parece estar de acordo com Vasari, que escreveu: “A mente profunda e perspicaz de Leonardo era tão ambiciosa que por si só constituía um impedimento. A razão pela qual ele falhou algumas vezes foi ter ousado adicionar excelência e perfeição à própria perfeição. Como disse Petrarca, o desejo ultrapassa o desempenho”.  O resultado, como parecem sugerir os dois historiadores, é uma arte que, conscientemente ou não, privilegia o processo sobre o acabamento, a experimentação sobre a resolução. A zona de conforto de Leonardo consistia em nunca dizer “feito”. E, no caso do quadro emprestado pelo Vaticano, isso embute uma compensação fantástica - a de podermos contemplar uma emoção febril que não para nunca de queimar. Essa fornalha de devoção angustiada vai arder durante todo o verão. Seria bom o Met pôr no máximo seu sistema de ar condicionado. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ 

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