Eu me mudei para a cidade de Nova York em 1988, quando a crise da Aids estava entrando em seu capítulo mais sombrio. No West Village, dava para vê-la nos rostos dos transeuntes, não apenas rostos magros e debilitados pela doença, mas também rostos cheios de preocupação, luto e desespero. Na hora do almoço, eu lia diligentemente as páginas dos obituários e notava a terrível juventude dos mortos, como se alguém pudesse juntar todo aquele tempo perdido, toda aquela vida não vivida e guardá-la para depois, agarrando-se a algo que um convidado distraído deixou para trás.
Quando meus próprios temores ficavam insuportáveis, eu caminhava pela cidade até as livrarias do East Village – a Strand ou a St. Mark’s – onde esperava encontrar alguma coisa que me oferecesse um pouco de equilíbrio mental. E um livro me mudou para sempre, um livro que parecia o equivalente intelectual de respirar fundo dez vezes durante um ataque de pânico. Era um volume fino, chamado A Doença como Metáfora, de Susan Sontag. Publicado pela primeira vez na New York Review of Books entre 1978 e 79, o extenso ensaio sobre como a sociedade enquadra as doenças foi escrito depois da luta de Sontag contra um câncer de mama de estágio 4 em 1975.
É uma discussão mais clara, apaixonada e convincente que qualquer coisa que qualquer crítico já tenha escrito e apresenta um argumento simples, com uma grande sutileza: devemos tratar a doença como doença, e não a sobrecarregar com imagens, metáforas e avaliações morais. Câncer é câncer, não importa o que a sociedade sussurre em seus ouvidos sobre a doença, sobre a maneira como você a contraiu e como ela afetará seu corpo.
“Não quero descrever como é emigrar para o reino dos enfermos e viver ali, mas, sim, as fantasias punitivas e sentimentais inventadas sobre essa situação”, escreveu Sontag. Como somos todos mortais, ela argumentou, todos sofreremos com alguma doença, mas não precisamos carregar tanta bagagem social nessa jornada. Compreendendo a maneira como as metáforas estruturam nossa experiência da doença, podemos diminuir seu poder sobre nós.
Agora estamos doentes de novo, vastamente doentes, em todos os sete continentes, com milhões de mortos sob uma pandemia que se alastra há mais de um ano. O fim desta doença ainda é incerto e está a meses de distância, principalmente para quem vive nas regiões mais pobres do planeta. Neste ponto in media res, será possível discernir e, quem sabe, assumir algum controle sobre as metáforas e imagens que estruturam nossa percepção social da covid-19? Talvez não tenha se passado tempo suficiente, e o coronavírus se move rápido e agora está em mutação, então suas metáforas também podem mudar.
Mas existe uma ideia recorrente nas discussões sobre a doença, e é essencial entender como ela funciona e carrega algumas das fantasias e imagens sombrias contra as quais Sontag alertou: a covid-19 é uma doença inflamatória, termo médico cujas raízes latinas estão na ideia de acender ou atear fogo a algo. A palavra inflamação foi fundamental nos primeiros relatos sobre o surgimento do vírus na China, um ano atrás.
“Os resultados piores nas pessoas mais velhas talvez derivem, pelo menos em parte, do enfraquecimento do sistema imunológico relacionado à idade e do aumento da inflamação, que pode promover replicação viral e respostas mais prolongadas à inflamação, causando danos duradouros ao coração, ao cérebro e a outros órgãos”, explicou um médico do Hospital Jinyintan, em Wuhan, no mês de março. Entre os relatos perturbadores sobre uma doença que se parecia com a gripe, que atacava nossos pulmões e nos fazia tossir, havia estranhos registros de jovens – e até mesmo atletas – cujo tecido cardíaco estava inflamado e assim permaneceu por semanas ou meses.
Mas a inflamação não é apenas um sintoma da doença. Parece fazer parte de sua etiologia, de suas origens e efeitos morais e sociais. A covid piora coisas que já estão ruins, inflama as coisas. Um artigo do Asian Financial Review de março de 2020 a descreveu com uma imagem estranha: “É como ter um convidado perigoso e indesejado para o jantar”. E o que esse convidado fazia? Criava uma espécie de pânico no sistema imunológico, deixando-o exausto: “Em vez de ajudar os pulmões sob estresse, ele induz muita inflamação, piorando a situação”.
Os cientistas começaram a empregar a palavra “comorbidades”, mas os leigos entendiam as coisas de um jeito mais simples: se você não estiver com a saúde boa, esse vírus vai piorar tudo. Os críticos e cientistas sociais também tomaram a imagem de empréstimo, observando como a covid inflamava tensões e desigualdades sociais pré-existentes. A doença atacava desproporcionalmente os pobres e as pessoas historicamente marginalizadas, sobretudo as pessoas não brancas.
Durante o verão, enquanto os americanos saíam às ruas para protestar contra o assassinato de George Floyd pela polícia em Minneapolis, a sensação de inflamação só aumentou. A covid foi diabolicamente trabalhada para afligir um mundo no qual já estávamos em carne viva, sofrendo e sempre nos debatendo, gerando atrito nas nossas circulações globais e locais. Era uma doença cosmopolita – um convidado indesejado para o jantar – mas uma doença cosmopolita que estava matando os trabalhadores da linha de frente que mantinham em marcha o incessante alvoroço da nossa economia.
Suas origens pareciam estar num salto do reino animal para o corpo humano, uma transmissão promovida por essa proximidade antinatural e até pelo aquecimento global, à medida que os humanos avançam sobre um território que antes era pouco ou quase nada habitado.
“O aquecimento global deixará as doenças mais prevalentes”, disse um especialista em pandemias e na indústria de viagens ao Boston Globe no início deste ano. “Os humanos estão invadindo habitats naturais, o que faz com que as doenças zoonóticas fiquem ainda mais prevalentes”. A poluição do ar, alertou um grupo de importantes organizações de saúde cardiológica, também estava exacerbando o risco de mortes por covid.
Em A doença como metáfora, Sontag escreveu sobre doenças – câncer e tuberculose – que cobravam seu preço por períodos relativamente longos, de modo que a experiência de estar doente durava meses ou anos. A covid, porém, avançava com rapidez, queimando suas vítimas não com o fogo lento da tuberculose ou a dissolução interna do câncer, mas com uma chama intensa. A metáfora do “incêndio florestal” se tornou algo comum nas descrições da doença, especialmente a ideia dos “focos”, quando os países que de início haviam reduzido suas taxas de infecção voltavam a enfrentar surtos repentinos de infecção. Incêndio parecia uma descrição mais adequada do que o franco debate científico sobre um vírus e seus vetores, talvez porque “viral” já estivesse em uso para descrever a desinformação que permitira à covid arrasar a Terra.
O livro de Sontag – e um ensaio posterior que ela escreveu sobre a Aids e suas metáforas – fez com que eu me afastasse de meus próprios medos e visse as coisas com um pouco mais de serenidade. Ela vasculhara literatura, arte, filosofia e psicologia para descrever como a sociedade muitas vezes atribui uma dimensão moral à doença. O mundo antigo enxergava as doenças, especialmente as pragas, como evidências da ira divina. No século 19, a tuberculose inspirou um moralismo mais sutil: a doença revelava o caráter e parecia refinar e até enobrecer as almas.
Com o câncer e, mais tarde, a Aids, as fantasias punitivas voltaram. O câncer, escreveu Sontag, era “uma gravidez demoníaca”, uma doença de riqueza e abundância, talvez até mesmo uma doença do desejo frustrado e da libido impedida. “O tuberculoso moribundo é retratado como alguém feito mais belo e com mais alma”, escreveu ela, enquanto “a pessoa morrendo de câncer é retratada como alguém destituído de todas as capacidades de autotranscendência, humilhado pelo medo e pela agonia”.
Com a covid-19, não sabemos ainda o que fazer quando se trata de culpa. O presidente Donald Trump fez esforços repetidos para rotulá-la como “o vírus da China”, e não deixa de ser fascinante que esse rótulo cínico e xenofóbico nunca tenha ganhado força com a maioria dos americanos. As pessoas parecem entender intuitivamente que o vírus não respeita identidades nem nacionalidades, que é um sintoma de uma condição transnacional mais ampla. Mas, para além dessa intuição básica, há pouco consenso sobre as dimensões morais da doença. E essa falta de consenso só inflama ainda mais as coisas.
No momento em que Trump caracterizou a covid como algo em que você acreditava ou não acreditava, caímos ainda mais nas chamas. A maneira como Trump lidou com a pandemia pode ter destruído sua credibilidade, mas o vírus inspirou a apoteose do trumpismo. Foi como combustível nas brasas do pensamento anti-iluminista, encorajando o ceticismo contra a ciência e até mesmo a desconfiança frente às estruturas elementares do pensamento, como causa e efeito. Aqueles que se recusavam a usar máscaras e tomar outras precauções básicas às vezes recorriam a alguma pseudociência, mas muitas vezes estavam sendo simplesmente fatalistas: talvez pegassem o vírus, talvez não pegassem, quem é que realmente sabe alguma coisa?
O resto do país ficou perplexo. Vínhamos assimilando em vários graus a lição fundamental do livro de Sontag – precisamos extirpar o moralismo das nossas ideias sobre a doença – então era difícil saber o que fazer quando a covid começou a testar nosso caráter moral nacional. O mundo está doente, cada vez mais doente, porque muitas pessoas parecem não se importar com o bem-estar dos outros. Depois de viver numa época em que canalhas e fanáticos diziam que a Aids era um castigo divino, não tenho estômago para atribuir sentimentos morais a essa doença. Posso ficar zangado com uma liderança política incompetente, mas, quando vejo pessoas reunidas sem máscaras nos bares e restaurantes, nas piscinas ou na praia, é mais fácil ser simplesmente fatalista. Não quero odiar essas pessoas, então é melhor direcionar a raiva para todos, coletivamente: “Estamos todos condenados”.
Anos depois de Sontag publicar A Doença como Metáfora, seu filho, David Rieff, escreveu que sua mãe jamais se reconciliou com a morte, que o medo da morte a perseguiu por toda a vida. De início, fiquei profundamente desapontado ao ler isso, porque sua sabedoria havia diminuído meu medo da morte num momento crítico. Mas não posso culpá-la. Ela raciocinou o mais longe que pôde e, para além desse ponto, a razão já não poderia levá-la. Sempre existe um buraco negro.
Que é onde estamos agora. Grande parte do país se sente impotente diante de forças que não compreende, o resto se sente impotente diante de pessoas que não compreende. Não conseguimos enxergar um jeito de sair desse impasse. Estamos na fornalha ardente da desintegração social e só queremos uma coisa: que uma vacina supergelada resfrie tudo antes que sejamos consumidos pelo incêndio. / Tradução de Renato Prelorentzou