Na história da França há uma frase célebre do século 18 que tem sido citada em diversas circunstâncias até os dias de hoje. Trata-se do diálogo entre o rei Luís XVI e um aristocrata importante da corte francesa, o duque de Liancourt. No dia 12 de julho de 1789, dois dias antes da queda da Bastilha, quando o movimento antimonárquico crescia em Paris, Luís XVI, julgando que os acontecimentos ultrapassavam a esfera das simples émeutes (tumultos) questionou o duque: "É uma revolta?", e Liancourt respondeu-lhe: "Não, majestade, é uma revolução!" Desde então, a frase tornou-se emblemática da argúcia analítica que capta o quadro político a partir do qual um movimento social muda de patamar, transformando sua dinâmica e sua essência. Nos debates na mídia francesa sobre os graves incidentes da semana passada nos subúrbios (banlieues) de Paris, ninguém pensa, é claro, que o país esteja à beira de uma revolução. Mas há vários analistas que vislumbram um novo patamar nos incidentes dos subúrbios: passou-se o cabo dos tumultos e entrou-se no campo da revolta. Nos dias seguintes à morte de dois motoqueiros adolescentes numa trombada com um carro de polícia, houve pela primeira vez gente atirando deliberadamente nos policiais. Vários foram feridos de maneira mais ou menos grave com tiros de chumbo de cartucheira e, pelo menos um deles, com um tiro de bala de caçar javali. Outros observadores vêem uma linha de continuidade entre os atuais incidentes, os distúrbios anteriores (44.157 carros foram queimados em 2006 na França, 45.588 no ano de 2005) e os graves tumultos de outubro e novembro de 2005, os quais sublevaram boa parte das banlieues durante três semanas. Note-se que nem em 2005 nem agora nenhum manifestante foi ferido por balas da polícia. Como em maio de 1968, a polícia francesa mantém o sangue-frio e a conduta republicana. Na realidade, os incidentes da semana passada, que parecem ter-se amainado, irromperam no meio de uma temporada de movimentos sociais em toda a França. Depois das eleições presidenciais e legislativas de maio e junho, e após as férias de verão de julho e agosto, três ondas de greves ocorreram em outubro e novembro. As paralisações dos ferroviários, condutores de ônibus e metroviários que protestavam contra o plano governamental de extinguir os regimes especiais de aposentadoria; as manifestações estudantis contra a reforma universitária; e a greve, curta e mais ampla, dos funcionários públicos reivindicando melhores salários. No meio dessas manifestações surgiu mais chiadeira. Assim, advogados, magistrados e funcionários do Judiciário desfilaram contra a supressão de um certo número de tribunais, enquanto donos de bares e de casas de narguilé - a última moda em Paris - reclamavam nas ruas contra a entrada em vigor da lei proibindo fumar em lugares públicos. No final das contas, o protesto dos funcionários públicos representa, sem dúvida, o mais grave desafio para o governo Sarkozy. Efetivamente, a extinção dos regimes especiais de aposentadoria constava do programa eleitoral de Sarkozy e a reforma universitária foi votada pelo Parlamento. Nessas circunstâncias, não se pode dizer que o governo agiu de sopetão. No caso dos funcionários públicos sucede o inverso. Sarkozy prometeu que iria garantir o poder de compra dos salários e até agora nenhuma das medidas governamentais vai nessa direção. Nesse clima de insatisfação difusa sobressaem dois fatos tão complexos quanto inquietantes. Em primeiro lugar, malgrado um governo recém-empossado e composto por um número inédito de descendentes de imigrantes árabes e africanos, o problema das banlieues continua surpreendendo as autoridades e a opinião pública. Mais de 30 anos de "planos para as banlieues" programados, e sofrivelmente executados, por governos de esquerda e de direita, não conseguiram melhorar as condições de vida nos subúrbios das grandes cidades francesas. Caso o tiroteio contra os policiais venha a se repetir nos próximos incidentes, a França se encontrará numa situação bem mais séria e quase sem paralelos na Europa. As revoltas deste outono também puseram a nu outra realidade que constitui o segundo problema grave da França. De fato, no meio dos protestos patenteou-se a absoluta ausência de propostas claras, e mesmo de qualquer proposta, por parte da oposição. Derrotado rotundamente por Sarkozy nas eleições presidencias e legislativas, desfalcado de alguns de seus líderes que aderiram ao novo governo, o Partido Socialista francês afunda cada vez mais. Ora, a tradição do movimento social francês e da história política do país incorpora perfeitamente as etapas que passam pelo enfrentamento. Primeiro, organizam-se greves e manifestações para se medir forças. Em seguida, negocia-se com o governo e o patronato. Mas para isso, é preciso que existam sindicatos representativos e uma oposição estruturada, capaz de intermediar as negociações. E apta a apresentar-se como alternativa de governo. Não é o caso atualmente. Na verdade, a radicalização de protestos nas banlieues e o desmonte dos partidos da oposição parlamentar configuram uma situação grave na França no ano que vem surgindo aí em frente. Luiz Felipe de Alencastro é professor titutar da cátedra de História do Brasil na Universidade de Paris Sorbonne