'O sonho foi o centro da vida política na Antiguidade', diz pesquisador


Neurocientista Sidarta Ribeiro conta história do sonho desde a Antiguidade e mostra como a ciência vem desvendando o mundo onírico em 'O Oráculo da Noite'

Por André Cáceres

Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, Franz Kafka mudou o rumo da literatura ocidental. No Oriente, também, o tema é relevante — o universo em que vivemos não passa de um sonho do deus Vishnu para os védicos, cuja religião foi precursora do hinduísmo. Se, conforme Buda, “a vida é sonho”, ainda não sabemos, mas seu xará, o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, desvenda como o mundo onírico influenciou todas as instâncias da vida em vigília em seu livro O Oráculo da Noite (Companhia das Letras).

O neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, autor de 'O Oráculo da Noite' Foto: Elisa Elsie

O sonho é um fenômeno neurológico experimentado durante a fase REM (rapid eye movement, ou movimento rápido dos olhos) do sono, embora não exclusivamente nessa etapa, e não é de hoje que ele intriga a humanidade: “Ao longo da história da Idade Antiga, os sonhos eram claramente o centro da vida política”, afirma Sidarta Ribeiro em entrevista ao Aliás. “Tudo indica que há muito tempo, pelo menos 2.500 anos antes de Cristo, o sonho não era só uma simulação de comportamentos possíveis, mas um portal de comunicação com os deuses. Algo muito sério que estava no centro da vida social.”

continua após a publicidade

História, antropologia, literatura, química, biologia, arqueologia, psicologia e neurologia são alguns dos ramos empregados por Ribeiro nessa expedição caleidoscópica rumo aos confins dos travesseiros. O livro delineia um panorama de como os sonhos foram encarados pela humanidade desde o Paleolítico Superior até as sociedades urbanizadas contemporâneas. “O sonho foi o cinema de nossos ancestrais, bem mais fascinante porque potencialmente real”, escreve ele. “Quantos de nossos ancestrais não terão se enfurecido ao descobrir que o perigoso mamute, gloriosamente caçado na aventura onírica, se esfumaçava na aurora, dissolvida à luz do dia?”

Cena com Stephanie Cumming no filme 'Shirley: Visões da Realidade' (2013) recria tela do pintor americano Edward Hopper Foto: JERZY PALACZ

Ribeiro relata diversos episódios ao longo dos séculos em que governantes como Alexandre Magno, Júlio César ou Frederico, o Sábio tomaram decisões que mudaram a história com base em sonhos que tiveram. A arte, a filosofia e a ciência também foram beneficiadas pelos arroubos de criatividade despertados por sonhos do dramaturgo William Shakespeare, do músico Paul McCartney, da escritora Mary Shelley, do filósofo Giordano Bruno, do matemático Gottfried Leibniz, entre muitos outros.

continua após a publicidade

Para além da cultura, entretanto, o sonho desempenhou um papel importante para a gênese da metafísica. Para Friedrich Nietzsche, “a decomposição em corpo e alma se relaciona à antiquíssima concepção do sonho, e igualmente a suposição de um simulacro corporal da alma, portanto a origem de toda crença nos espíritos e também, provavelmente da crença nos deuses”. 

O aspecto divino dos sonhos faz parte de textos fundadores como a Bíblia, o Corão, as narrativas homéricas, o Livro dos Mortos no Egito ou a Epopeia de Gilgamesh na Suméria. Ribeiro corrobora essa visão: “Há cerca de 100 mil anos, a gente começou a enterrar os mortos. Aí se sonhava com alguém morto e a conclusão óbvia era que essa pessoa está viva em algum lugar.”

Além de ajudar a fundar a espiritualidade, Ribeiro defende que o mundo onírico foi fundamental para a ascensão da narrativa e o surgimento da linguagem na espécie humana. “Mamíferos em geral se reúnem para dormir por proteção e calor, têm sono REM e sonham. Do ponto de vista fisiológico, bioquímico, não há diferença. O que aconteceu no ser humano foi a capacidade de despertar de manhã e narrar esse sonho”, afirma o pesquisador. “Quando a gente cria esse espaço narrativo, você pode imaginar qualquer coisa sem consequências. Se eu te pedir para imaginar a Guerra de Troia ou o futuro em 2100, isso não tem nenhuma repercussão motora. É muito diferente do que os outros animais fazem. É a capacidade de sonhar acordado.” 

continua após a publicidade

Ribeiro propõe que essa capacidade de projeção, única na raça humana, vem de uma invasão do sonho na vigília. É aí também que está a chave para os sonhos preditivos. O autor mostra como as mesmas regiões cerebrais são ativadas quando recordamos o passado ou imaginamos o futuro. “Quando eu te conto o que vivi num mundo completamente particular, estou de fato criando um acesso ao passado que pode ser uma predição do futuro. Se eu te contar o que aconteceu ontem, isso pode ser exatamente o que vai acontecer amanhã”, afirma. 

No livro, ele usa de uma analogia com o conto A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, para explicar essa capacidade probabilística de o sonho prever o futuro. “O inconsciente é a soma de todas as nossas memórias e de todas as suas combinações possíveis”, assim como a Biblioteca de Babel reuniria todas as combinações de letras possíveis. Portanto, “sonho é a possibilidade de imaginar os futuros em potencial através de um mecanismo capaz de prospectar a experiência pregressa e formar novos conglomerados psíquicos, juntando ideias antigas de forma nova.”

Essa é, aliás, uma das vantagens evolutivas que nos legaram a habilidade de sonhar: no mundo onírico, podemos simular cenários sem risco algum, tornando-nos melhores em desempenhar atividades importantes, como caçar ou sobreviver. “A evidência empírica de que os sonhos ajudam você a se desempenhar melhor é recente e não muito grande, mas ela existe. Todos os mamíferos devem ter se beneficiado disso.” 

continua após a publicidade

Boa parte do livro se dedica a explicar a bioquímica do cérebro durante o sono, os debates científicos acalorados a respeito do tema ao longo das últimas décadas, além de descobertas que recolocaram Freud e Jung no radar da neurociência após muitos anos taxados de pseudocientíficos. Ribeiro explora as similaridades e diferenças entre sonho e delírio, loucura, psicose, transes ritualísticos e até uso de substâncias como a ayahuasca. 

Várias tribos indígenas — brasileiras e de outras localidades — usaram e ainda usam essas capacidades preditivas do sonho em todas as facetas de suas vidas, de conselhos para encontrar caça até como negociar com governantes brancos. No entanto, o mundo onírico foi sendo jogado para escanteio historicamente por ter perdido acurácia. “Quando o sonho passa a refletir não os três imperativos darwinistas, matar, não morrer e procriar, mas todas as coisas que nos preocupam, nas quais esses imperativos estão diluídos, é o momento em que esse oráculo probabilístico começa a ter dificuldade de prever o futuro com tantas variáveis.” 

A grande preocupação que o livro demonstra é que, na sociedade contemporânea, o sonho tenha perdido sua função, sendo relegado para uma mera curiosidade noturna. “A rotina do trabalho diário e a falta de tempo para dormir e sonhar, que acometem a maioria dos trabalhadores, são cruciais para o mal-estar da civilização contemporânea”, escreve ele. Afinal, se o sonho é tão irrelevante como a civilização urbana tecnológica parece acreditar, por que a indústria da saúde do sono já movimenta mais de US$ 30 bilhões anualmente?

continua após a publicidade

“A gente está vivendo em uma sociedade que não parece ter a capacidade de simular o futuro próximo. Estamos nos encaminhando para uma catástrofe e não adianta os ecologistas avisarem. É quase uma pulsão de morte”, lamenta Ribeiro. “Com exceção de quem está fazendo psicanálise, não existe relevância no sonho hoje. Esse experimento histórico de tirar o sonho da vida social está obscurecendo nossa capacidade de ver o que está acontecendo.”

É por isso que, diferente de outros livros de divulgação científica, que muitas vezes desprezam as sabedorias milenares ou conhecimentos tradicionais de povos indígenas, Ribeiro opta por dar voz ao escritor Davi Kopenawa, da tribo Yanomami, que descreve, em seu livro A Queda do Céu, as visões xamânicas da destruição da Amazônia. “No mundo dos índios, esse final está sendo visto com muita clareza, até porque está acontecendo com eles diretamente”, alerta Ribeiro. Para ele, nossa incapacidade de perceber o que o progresso tem provocado ao meio-ambiente se relaciona com nosso desprezo para com o mundo onírico. “Eu acho que isso tem a ver com a nossa evidente redução de introspecção. E os sonhos têm muito a ver com ter uma boa introspecção.”

Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, Franz Kafka mudou o rumo da literatura ocidental. No Oriente, também, o tema é relevante — o universo em que vivemos não passa de um sonho do deus Vishnu para os védicos, cuja religião foi precursora do hinduísmo. Se, conforme Buda, “a vida é sonho”, ainda não sabemos, mas seu xará, o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, desvenda como o mundo onírico influenciou todas as instâncias da vida em vigília em seu livro O Oráculo da Noite (Companhia das Letras).

O neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, autor de 'O Oráculo da Noite' Foto: Elisa Elsie

O sonho é um fenômeno neurológico experimentado durante a fase REM (rapid eye movement, ou movimento rápido dos olhos) do sono, embora não exclusivamente nessa etapa, e não é de hoje que ele intriga a humanidade: “Ao longo da história da Idade Antiga, os sonhos eram claramente o centro da vida política”, afirma Sidarta Ribeiro em entrevista ao Aliás. “Tudo indica que há muito tempo, pelo menos 2.500 anos antes de Cristo, o sonho não era só uma simulação de comportamentos possíveis, mas um portal de comunicação com os deuses. Algo muito sério que estava no centro da vida social.”

História, antropologia, literatura, química, biologia, arqueologia, psicologia e neurologia são alguns dos ramos empregados por Ribeiro nessa expedição caleidoscópica rumo aos confins dos travesseiros. O livro delineia um panorama de como os sonhos foram encarados pela humanidade desde o Paleolítico Superior até as sociedades urbanizadas contemporâneas. “O sonho foi o cinema de nossos ancestrais, bem mais fascinante porque potencialmente real”, escreve ele. “Quantos de nossos ancestrais não terão se enfurecido ao descobrir que o perigoso mamute, gloriosamente caçado na aventura onírica, se esfumaçava na aurora, dissolvida à luz do dia?”

Cena com Stephanie Cumming no filme 'Shirley: Visões da Realidade' (2013) recria tela do pintor americano Edward Hopper Foto: JERZY PALACZ

Ribeiro relata diversos episódios ao longo dos séculos em que governantes como Alexandre Magno, Júlio César ou Frederico, o Sábio tomaram decisões que mudaram a história com base em sonhos que tiveram. A arte, a filosofia e a ciência também foram beneficiadas pelos arroubos de criatividade despertados por sonhos do dramaturgo William Shakespeare, do músico Paul McCartney, da escritora Mary Shelley, do filósofo Giordano Bruno, do matemático Gottfried Leibniz, entre muitos outros.

Para além da cultura, entretanto, o sonho desempenhou um papel importante para a gênese da metafísica. Para Friedrich Nietzsche, “a decomposição em corpo e alma se relaciona à antiquíssima concepção do sonho, e igualmente a suposição de um simulacro corporal da alma, portanto a origem de toda crença nos espíritos e também, provavelmente da crença nos deuses”. 

O aspecto divino dos sonhos faz parte de textos fundadores como a Bíblia, o Corão, as narrativas homéricas, o Livro dos Mortos no Egito ou a Epopeia de Gilgamesh na Suméria. Ribeiro corrobora essa visão: “Há cerca de 100 mil anos, a gente começou a enterrar os mortos. Aí se sonhava com alguém morto e a conclusão óbvia era que essa pessoa está viva em algum lugar.”

Além de ajudar a fundar a espiritualidade, Ribeiro defende que o mundo onírico foi fundamental para a ascensão da narrativa e o surgimento da linguagem na espécie humana. “Mamíferos em geral se reúnem para dormir por proteção e calor, têm sono REM e sonham. Do ponto de vista fisiológico, bioquímico, não há diferença. O que aconteceu no ser humano foi a capacidade de despertar de manhã e narrar esse sonho”, afirma o pesquisador. “Quando a gente cria esse espaço narrativo, você pode imaginar qualquer coisa sem consequências. Se eu te pedir para imaginar a Guerra de Troia ou o futuro em 2100, isso não tem nenhuma repercussão motora. É muito diferente do que os outros animais fazem. É a capacidade de sonhar acordado.” 

Ribeiro propõe que essa capacidade de projeção, única na raça humana, vem de uma invasão do sonho na vigília. É aí também que está a chave para os sonhos preditivos. O autor mostra como as mesmas regiões cerebrais são ativadas quando recordamos o passado ou imaginamos o futuro. “Quando eu te conto o que vivi num mundo completamente particular, estou de fato criando um acesso ao passado que pode ser uma predição do futuro. Se eu te contar o que aconteceu ontem, isso pode ser exatamente o que vai acontecer amanhã”, afirma. 

No livro, ele usa de uma analogia com o conto A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, para explicar essa capacidade probabilística de o sonho prever o futuro. “O inconsciente é a soma de todas as nossas memórias e de todas as suas combinações possíveis”, assim como a Biblioteca de Babel reuniria todas as combinações de letras possíveis. Portanto, “sonho é a possibilidade de imaginar os futuros em potencial através de um mecanismo capaz de prospectar a experiência pregressa e formar novos conglomerados psíquicos, juntando ideias antigas de forma nova.”

Essa é, aliás, uma das vantagens evolutivas que nos legaram a habilidade de sonhar: no mundo onírico, podemos simular cenários sem risco algum, tornando-nos melhores em desempenhar atividades importantes, como caçar ou sobreviver. “A evidência empírica de que os sonhos ajudam você a se desempenhar melhor é recente e não muito grande, mas ela existe. Todos os mamíferos devem ter se beneficiado disso.” 

Boa parte do livro se dedica a explicar a bioquímica do cérebro durante o sono, os debates científicos acalorados a respeito do tema ao longo das últimas décadas, além de descobertas que recolocaram Freud e Jung no radar da neurociência após muitos anos taxados de pseudocientíficos. Ribeiro explora as similaridades e diferenças entre sonho e delírio, loucura, psicose, transes ritualísticos e até uso de substâncias como a ayahuasca. 

Várias tribos indígenas — brasileiras e de outras localidades — usaram e ainda usam essas capacidades preditivas do sonho em todas as facetas de suas vidas, de conselhos para encontrar caça até como negociar com governantes brancos. No entanto, o mundo onírico foi sendo jogado para escanteio historicamente por ter perdido acurácia. “Quando o sonho passa a refletir não os três imperativos darwinistas, matar, não morrer e procriar, mas todas as coisas que nos preocupam, nas quais esses imperativos estão diluídos, é o momento em que esse oráculo probabilístico começa a ter dificuldade de prever o futuro com tantas variáveis.” 

A grande preocupação que o livro demonstra é que, na sociedade contemporânea, o sonho tenha perdido sua função, sendo relegado para uma mera curiosidade noturna. “A rotina do trabalho diário e a falta de tempo para dormir e sonhar, que acometem a maioria dos trabalhadores, são cruciais para o mal-estar da civilização contemporânea”, escreve ele. Afinal, se o sonho é tão irrelevante como a civilização urbana tecnológica parece acreditar, por que a indústria da saúde do sono já movimenta mais de US$ 30 bilhões anualmente?

“A gente está vivendo em uma sociedade que não parece ter a capacidade de simular o futuro próximo. Estamos nos encaminhando para uma catástrofe e não adianta os ecologistas avisarem. É quase uma pulsão de morte”, lamenta Ribeiro. “Com exceção de quem está fazendo psicanálise, não existe relevância no sonho hoje. Esse experimento histórico de tirar o sonho da vida social está obscurecendo nossa capacidade de ver o que está acontecendo.”

É por isso que, diferente de outros livros de divulgação científica, que muitas vezes desprezam as sabedorias milenares ou conhecimentos tradicionais de povos indígenas, Ribeiro opta por dar voz ao escritor Davi Kopenawa, da tribo Yanomami, que descreve, em seu livro A Queda do Céu, as visões xamânicas da destruição da Amazônia. “No mundo dos índios, esse final está sendo visto com muita clareza, até porque está acontecendo com eles diretamente”, alerta Ribeiro. Para ele, nossa incapacidade de perceber o que o progresso tem provocado ao meio-ambiente se relaciona com nosso desprezo para com o mundo onírico. “Eu acho que isso tem a ver com a nossa evidente redução de introspecção. E os sonhos têm muito a ver com ter uma boa introspecção.”

Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, Franz Kafka mudou o rumo da literatura ocidental. No Oriente, também, o tema é relevante — o universo em que vivemos não passa de um sonho do deus Vishnu para os védicos, cuja religião foi precursora do hinduísmo. Se, conforme Buda, “a vida é sonho”, ainda não sabemos, mas seu xará, o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, desvenda como o mundo onírico influenciou todas as instâncias da vida em vigília em seu livro O Oráculo da Noite (Companhia das Letras).

O neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, autor de 'O Oráculo da Noite' Foto: Elisa Elsie

O sonho é um fenômeno neurológico experimentado durante a fase REM (rapid eye movement, ou movimento rápido dos olhos) do sono, embora não exclusivamente nessa etapa, e não é de hoje que ele intriga a humanidade: “Ao longo da história da Idade Antiga, os sonhos eram claramente o centro da vida política”, afirma Sidarta Ribeiro em entrevista ao Aliás. “Tudo indica que há muito tempo, pelo menos 2.500 anos antes de Cristo, o sonho não era só uma simulação de comportamentos possíveis, mas um portal de comunicação com os deuses. Algo muito sério que estava no centro da vida social.”

História, antropologia, literatura, química, biologia, arqueologia, psicologia e neurologia são alguns dos ramos empregados por Ribeiro nessa expedição caleidoscópica rumo aos confins dos travesseiros. O livro delineia um panorama de como os sonhos foram encarados pela humanidade desde o Paleolítico Superior até as sociedades urbanizadas contemporâneas. “O sonho foi o cinema de nossos ancestrais, bem mais fascinante porque potencialmente real”, escreve ele. “Quantos de nossos ancestrais não terão se enfurecido ao descobrir que o perigoso mamute, gloriosamente caçado na aventura onírica, se esfumaçava na aurora, dissolvida à luz do dia?”

Cena com Stephanie Cumming no filme 'Shirley: Visões da Realidade' (2013) recria tela do pintor americano Edward Hopper Foto: JERZY PALACZ

Ribeiro relata diversos episódios ao longo dos séculos em que governantes como Alexandre Magno, Júlio César ou Frederico, o Sábio tomaram decisões que mudaram a história com base em sonhos que tiveram. A arte, a filosofia e a ciência também foram beneficiadas pelos arroubos de criatividade despertados por sonhos do dramaturgo William Shakespeare, do músico Paul McCartney, da escritora Mary Shelley, do filósofo Giordano Bruno, do matemático Gottfried Leibniz, entre muitos outros.

Para além da cultura, entretanto, o sonho desempenhou um papel importante para a gênese da metafísica. Para Friedrich Nietzsche, “a decomposição em corpo e alma se relaciona à antiquíssima concepção do sonho, e igualmente a suposição de um simulacro corporal da alma, portanto a origem de toda crença nos espíritos e também, provavelmente da crença nos deuses”. 

O aspecto divino dos sonhos faz parte de textos fundadores como a Bíblia, o Corão, as narrativas homéricas, o Livro dos Mortos no Egito ou a Epopeia de Gilgamesh na Suméria. Ribeiro corrobora essa visão: “Há cerca de 100 mil anos, a gente começou a enterrar os mortos. Aí se sonhava com alguém morto e a conclusão óbvia era que essa pessoa está viva em algum lugar.”

Além de ajudar a fundar a espiritualidade, Ribeiro defende que o mundo onírico foi fundamental para a ascensão da narrativa e o surgimento da linguagem na espécie humana. “Mamíferos em geral se reúnem para dormir por proteção e calor, têm sono REM e sonham. Do ponto de vista fisiológico, bioquímico, não há diferença. O que aconteceu no ser humano foi a capacidade de despertar de manhã e narrar esse sonho”, afirma o pesquisador. “Quando a gente cria esse espaço narrativo, você pode imaginar qualquer coisa sem consequências. Se eu te pedir para imaginar a Guerra de Troia ou o futuro em 2100, isso não tem nenhuma repercussão motora. É muito diferente do que os outros animais fazem. É a capacidade de sonhar acordado.” 

Ribeiro propõe que essa capacidade de projeção, única na raça humana, vem de uma invasão do sonho na vigília. É aí também que está a chave para os sonhos preditivos. O autor mostra como as mesmas regiões cerebrais são ativadas quando recordamos o passado ou imaginamos o futuro. “Quando eu te conto o que vivi num mundo completamente particular, estou de fato criando um acesso ao passado que pode ser uma predição do futuro. Se eu te contar o que aconteceu ontem, isso pode ser exatamente o que vai acontecer amanhã”, afirma. 

No livro, ele usa de uma analogia com o conto A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, para explicar essa capacidade probabilística de o sonho prever o futuro. “O inconsciente é a soma de todas as nossas memórias e de todas as suas combinações possíveis”, assim como a Biblioteca de Babel reuniria todas as combinações de letras possíveis. Portanto, “sonho é a possibilidade de imaginar os futuros em potencial através de um mecanismo capaz de prospectar a experiência pregressa e formar novos conglomerados psíquicos, juntando ideias antigas de forma nova.”

Essa é, aliás, uma das vantagens evolutivas que nos legaram a habilidade de sonhar: no mundo onírico, podemos simular cenários sem risco algum, tornando-nos melhores em desempenhar atividades importantes, como caçar ou sobreviver. “A evidência empírica de que os sonhos ajudam você a se desempenhar melhor é recente e não muito grande, mas ela existe. Todos os mamíferos devem ter se beneficiado disso.” 

Boa parte do livro se dedica a explicar a bioquímica do cérebro durante o sono, os debates científicos acalorados a respeito do tema ao longo das últimas décadas, além de descobertas que recolocaram Freud e Jung no radar da neurociência após muitos anos taxados de pseudocientíficos. Ribeiro explora as similaridades e diferenças entre sonho e delírio, loucura, psicose, transes ritualísticos e até uso de substâncias como a ayahuasca. 

Várias tribos indígenas — brasileiras e de outras localidades — usaram e ainda usam essas capacidades preditivas do sonho em todas as facetas de suas vidas, de conselhos para encontrar caça até como negociar com governantes brancos. No entanto, o mundo onírico foi sendo jogado para escanteio historicamente por ter perdido acurácia. “Quando o sonho passa a refletir não os três imperativos darwinistas, matar, não morrer e procriar, mas todas as coisas que nos preocupam, nas quais esses imperativos estão diluídos, é o momento em que esse oráculo probabilístico começa a ter dificuldade de prever o futuro com tantas variáveis.” 

A grande preocupação que o livro demonstra é que, na sociedade contemporânea, o sonho tenha perdido sua função, sendo relegado para uma mera curiosidade noturna. “A rotina do trabalho diário e a falta de tempo para dormir e sonhar, que acometem a maioria dos trabalhadores, são cruciais para o mal-estar da civilização contemporânea”, escreve ele. Afinal, se o sonho é tão irrelevante como a civilização urbana tecnológica parece acreditar, por que a indústria da saúde do sono já movimenta mais de US$ 30 bilhões anualmente?

“A gente está vivendo em uma sociedade que não parece ter a capacidade de simular o futuro próximo. Estamos nos encaminhando para uma catástrofe e não adianta os ecologistas avisarem. É quase uma pulsão de morte”, lamenta Ribeiro. “Com exceção de quem está fazendo psicanálise, não existe relevância no sonho hoje. Esse experimento histórico de tirar o sonho da vida social está obscurecendo nossa capacidade de ver o que está acontecendo.”

É por isso que, diferente de outros livros de divulgação científica, que muitas vezes desprezam as sabedorias milenares ou conhecimentos tradicionais de povos indígenas, Ribeiro opta por dar voz ao escritor Davi Kopenawa, da tribo Yanomami, que descreve, em seu livro A Queda do Céu, as visões xamânicas da destruição da Amazônia. “No mundo dos índios, esse final está sendo visto com muita clareza, até porque está acontecendo com eles diretamente”, alerta Ribeiro. Para ele, nossa incapacidade de perceber o que o progresso tem provocado ao meio-ambiente se relaciona com nosso desprezo para com o mundo onírico. “Eu acho que isso tem a ver com a nossa evidente redução de introspecção. E os sonhos têm muito a ver com ter uma boa introspecção.”

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.