O trauma do terrorismo na Espanha retratado por Fernando Aramburu


Romance 'Pátria', base da série de mesmo nome da HBO, trata do ETA no País Basco

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Pátria, de Fernando Aramburu, é não apenas uma ficção magistral e um entretenimento apaixonante – o que já seria bom demais da conta. É também uma instrutiva lição sobre os perigos letais do fanatismo ideológico e do sectarismo político. No caso, se trata do País Basco e do terrorismo do ETA. Mas hoje, neste Brasil tão maniqueísta, rancoroso e intolerante, será difícil alguém ler o livro e a carapuça não lhe servir, pelo menos de vez em quando. Admitir isso são outros quinhentos.

'Pátria' estreia em 2020 e mostra que o ETA dividiu famílias e causou 853 mortes Foto: HBO

Aramburu nasceu em San Sebastian, em 1959, mas desde 1985 vive na Alemanha. Foi incluído pelo jornal ABC entre os dez principais autores espanhóis contemporâneos, ao lado de Javier Marias, Rosa Montero, Enrique Vila-Matas e Javier Cercas, entre outros. Pátria, publicado originalmente em 2016, saiu em 30 países, vendeu mais de um milhão de exemplares só em língua espanhola e embolsou uma baciada de prêmios, entre eles o da Academia Real Espanhola, da Crítica da Narrativa Castelhana, o Euskadi e o Strega Europeo. E está sendo convertido em série de TV pela HBO. 

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O ETA (sigla para “Pátria Basca e Liberdade”) foi fundado no ano do nascimento de Aramburu, em plena ditadura franquista. Reivindicava a independência do País Basco, região cujo território abrange partes da Espanha e da França. Nos anos 1960, o ETA professou o marxismo-leninismo e virou uma organização paramilitar terrorista. Desde 1968, foi responsável pela morte 829 pessoas, inclusive estrangeiros, mulheres grávidas e crianças. Por isso, o grupo foi perdendo o apoio local (ilustrado em Pátria), nacional e internacional, especialmente após a redemocratização da Espanha e da Constituição de 1978, que concedeu ampla autonomia ao País Basco. Em 2011, já totalmente isolado, o ETA anunciou o fim de suas operações. Em 2018, os “etarras” pediram oficialmente perdão às suas vítimas, e a organização se dissolveu. 

Pátria (que já foi chamado de “o Guerra e Paz espanhol”) se desenrola ao longo de 50 anos, numa vila basca não nomeada. Através de extorsões, intimidações e atentados, o ETA tenta impor a pureza política, ideológica e linguística na região – e isso tudo em nome de um povo que nunca foi consultado. O núcleo dramático são duas famílias, cujas matriarcas (Miren e Bitori) eram as melhores amigas na juventude. Quando Txato, marido de Bitori, se recusa a pagar o “imposto revolucionário”, se torna um pária em sua terra natal. É banido dos clubes de ciclismo e de gastronomia, e vê seu nome aviltado em pichações diárias. Até que recebe cinco tiros nas costas. Já Miren, cujo filho Joxe Mari aderira ao ETA, vira uma nacionalista fanática, assim descrita pela sua outra filha, Arantxa: “Mamãe não entende nada de política, nunca leu um livro na vida, mas grita slogans da mesma maneira que outros soltam fogos de artifício”.

Um dos temas de Pátria é esse extremismo cego, aquele clichê totalitário de que “tudo é política” (não há esfera privada, nem intimidade, nem sequer o amor ou a amizade), luta pelo poder. E de que os fins justificam os meios – como objetou Camus, os meios adulteram os fins. E como deixa claro Joxe Mari, ao entrar no ETA: “Por mim tanto faz que mande este ou aquele. Só luto por um Eukal Herrera como povo livre. O resto vocês podem embrulhar para presente. Vamos de A a B, mas quando chegarmos em B, por favor me deixem sossegado. Eu vou morar na serra, planto lá umas macieiras, monto um galinheiro e que se foda todo mundo.” 

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Só que não, pois a vilania do fanatismo é tóxica, gerando degradação moral, conformismo e covardia. “Tinham aparecido pichações nas paredes. O negócio é difamar e meter medo. Fulano faz um pouquinho, sicrano faz outro pouquinho e, quando a desgraça provocada por todos acontece, nenhum deles se sente responsável, porque, afinal, eu só pichei, eu só contei onde ele morava, eu só disse umas palavras que podem ofender, mas, sabe, são só palavras, sons momentâneos no ar. Da noite para o dia, muita gente da vila parou de falar com eles. Falar? Isso já seria muito. Viravam a cara quando os viam. Amigos da vida inteira, vizinhos, algumas crianças também. O que os inocentes podem saber?” Para o fanatismo, não há inocentes, mas apenas nós e os outros. 

Pátria funciona graças à sua eficácia literária. Assim, não se reduz a um mural teórico sobre o contexto de uma comunidade. Sim, revela convincentemente o “ethos” e o “pathos” desta mesma comunidade, porém através de indivíduos de carne e osso. Não apenas abstrações físicas e sociais coletivas, mas a psicologia, as emoções e as fantasias daquelas entidades idiossincráticas e irredutíveis que são os seres humanos singulares – nem arquétipos nem estereótipos. 

A narrativa começa quando uma idosa e doente Bitori, ao ouvir que o ETA renunciou à luta armada, regressa à vila para tentar obter um pedido de perdão dos carrascos do marido. A história serpenteia numa espiral cronológica, abarcando um mosaico no qual ninguém é exclusivamente dono da verdade – o que tampouco significa que não exista certo e errado, assassinos e vítimas. Esse efeito é audaciosamente alcançado através da mistura das vozes narrativas na primeira e na terceira pessoas – o que podia soar confuso, comunica de modo límpido o objetivo e o subjetivo, o domínio dos fatos e o reino das emoções. 

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Outra astúcia de Aramburu é um humor oblíquo, que alivia o teor trágico da saga, e evita que o drama descambe em melodrama e a grandeza em grandiloquência. Sobretudo através da relação das duas matriarcas (rabugentas e irascíveis) com os respectivo maridos (dóceis e flexíveis). Aliás, elas são os pilares do romance. Duas mulheres bastante comuns, mas também únicas e portentosas. Sim, são avatares de uma sociedade dividida e dilacerada por esta fratura, porém não se exaurem em símbolos genéricos – pelo contrário, expõem suas dinâmicas íntimas, afetivas. 

Talvez o título do romance, esse sim, seja simbólico. Qual a pátria suprema de cada um de nós? A quem devemos a nossa máxima lealdade? A um conceito? A um projeto? À gente concreta que conhecemos de verdade, no cotidiano? A nós próprios – mas a qual “eu” dentro de nós? Pátria é um dos livros do ano.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Pátria, de Fernando Aramburu, é não apenas uma ficção magistral e um entretenimento apaixonante – o que já seria bom demais da conta. É também uma instrutiva lição sobre os perigos letais do fanatismo ideológico e do sectarismo político. No caso, se trata do País Basco e do terrorismo do ETA. Mas hoje, neste Brasil tão maniqueísta, rancoroso e intolerante, será difícil alguém ler o livro e a carapuça não lhe servir, pelo menos de vez em quando. Admitir isso são outros quinhentos.

'Pátria' estreia em 2020 e mostra que o ETA dividiu famílias e causou 853 mortes Foto: HBO

Aramburu nasceu em San Sebastian, em 1959, mas desde 1985 vive na Alemanha. Foi incluído pelo jornal ABC entre os dez principais autores espanhóis contemporâneos, ao lado de Javier Marias, Rosa Montero, Enrique Vila-Matas e Javier Cercas, entre outros. Pátria, publicado originalmente em 2016, saiu em 30 países, vendeu mais de um milhão de exemplares só em língua espanhola e embolsou uma baciada de prêmios, entre eles o da Academia Real Espanhola, da Crítica da Narrativa Castelhana, o Euskadi e o Strega Europeo. E está sendo convertido em série de TV pela HBO. 

O ETA (sigla para “Pátria Basca e Liberdade”) foi fundado no ano do nascimento de Aramburu, em plena ditadura franquista. Reivindicava a independência do País Basco, região cujo território abrange partes da Espanha e da França. Nos anos 1960, o ETA professou o marxismo-leninismo e virou uma organização paramilitar terrorista. Desde 1968, foi responsável pela morte 829 pessoas, inclusive estrangeiros, mulheres grávidas e crianças. Por isso, o grupo foi perdendo o apoio local (ilustrado em Pátria), nacional e internacional, especialmente após a redemocratização da Espanha e da Constituição de 1978, que concedeu ampla autonomia ao País Basco. Em 2011, já totalmente isolado, o ETA anunciou o fim de suas operações. Em 2018, os “etarras” pediram oficialmente perdão às suas vítimas, e a organização se dissolveu. 

Pátria (que já foi chamado de “o Guerra e Paz espanhol”) se desenrola ao longo de 50 anos, numa vila basca não nomeada. Através de extorsões, intimidações e atentados, o ETA tenta impor a pureza política, ideológica e linguística na região – e isso tudo em nome de um povo que nunca foi consultado. O núcleo dramático são duas famílias, cujas matriarcas (Miren e Bitori) eram as melhores amigas na juventude. Quando Txato, marido de Bitori, se recusa a pagar o “imposto revolucionário”, se torna um pária em sua terra natal. É banido dos clubes de ciclismo e de gastronomia, e vê seu nome aviltado em pichações diárias. Até que recebe cinco tiros nas costas. Já Miren, cujo filho Joxe Mari aderira ao ETA, vira uma nacionalista fanática, assim descrita pela sua outra filha, Arantxa: “Mamãe não entende nada de política, nunca leu um livro na vida, mas grita slogans da mesma maneira que outros soltam fogos de artifício”.

Um dos temas de Pátria é esse extremismo cego, aquele clichê totalitário de que “tudo é política” (não há esfera privada, nem intimidade, nem sequer o amor ou a amizade), luta pelo poder. E de que os fins justificam os meios – como objetou Camus, os meios adulteram os fins. E como deixa claro Joxe Mari, ao entrar no ETA: “Por mim tanto faz que mande este ou aquele. Só luto por um Eukal Herrera como povo livre. O resto vocês podem embrulhar para presente. Vamos de A a B, mas quando chegarmos em B, por favor me deixem sossegado. Eu vou morar na serra, planto lá umas macieiras, monto um galinheiro e que se foda todo mundo.” 

Só que não, pois a vilania do fanatismo é tóxica, gerando degradação moral, conformismo e covardia. “Tinham aparecido pichações nas paredes. O negócio é difamar e meter medo. Fulano faz um pouquinho, sicrano faz outro pouquinho e, quando a desgraça provocada por todos acontece, nenhum deles se sente responsável, porque, afinal, eu só pichei, eu só contei onde ele morava, eu só disse umas palavras que podem ofender, mas, sabe, são só palavras, sons momentâneos no ar. Da noite para o dia, muita gente da vila parou de falar com eles. Falar? Isso já seria muito. Viravam a cara quando os viam. Amigos da vida inteira, vizinhos, algumas crianças também. O que os inocentes podem saber?” Para o fanatismo, não há inocentes, mas apenas nós e os outros. 

Pátria funciona graças à sua eficácia literária. Assim, não se reduz a um mural teórico sobre o contexto de uma comunidade. Sim, revela convincentemente o “ethos” e o “pathos” desta mesma comunidade, porém através de indivíduos de carne e osso. Não apenas abstrações físicas e sociais coletivas, mas a psicologia, as emoções e as fantasias daquelas entidades idiossincráticas e irredutíveis que são os seres humanos singulares – nem arquétipos nem estereótipos. 

A narrativa começa quando uma idosa e doente Bitori, ao ouvir que o ETA renunciou à luta armada, regressa à vila para tentar obter um pedido de perdão dos carrascos do marido. A história serpenteia numa espiral cronológica, abarcando um mosaico no qual ninguém é exclusivamente dono da verdade – o que tampouco significa que não exista certo e errado, assassinos e vítimas. Esse efeito é audaciosamente alcançado através da mistura das vozes narrativas na primeira e na terceira pessoas – o que podia soar confuso, comunica de modo límpido o objetivo e o subjetivo, o domínio dos fatos e o reino das emoções. 

Outra astúcia de Aramburu é um humor oblíquo, que alivia o teor trágico da saga, e evita que o drama descambe em melodrama e a grandeza em grandiloquência. Sobretudo através da relação das duas matriarcas (rabugentas e irascíveis) com os respectivo maridos (dóceis e flexíveis). Aliás, elas são os pilares do romance. Duas mulheres bastante comuns, mas também únicas e portentosas. Sim, são avatares de uma sociedade dividida e dilacerada por esta fratura, porém não se exaurem em símbolos genéricos – pelo contrário, expõem suas dinâmicas íntimas, afetivas. 

Talvez o título do romance, esse sim, seja simbólico. Qual a pátria suprema de cada um de nós? A quem devemos a nossa máxima lealdade? A um conceito? A um projeto? À gente concreta que conhecemos de verdade, no cotidiano? A nós próprios – mas a qual “eu” dentro de nós? Pátria é um dos livros do ano.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Pátria, de Fernando Aramburu, é não apenas uma ficção magistral e um entretenimento apaixonante – o que já seria bom demais da conta. É também uma instrutiva lição sobre os perigos letais do fanatismo ideológico e do sectarismo político. No caso, se trata do País Basco e do terrorismo do ETA. Mas hoje, neste Brasil tão maniqueísta, rancoroso e intolerante, será difícil alguém ler o livro e a carapuça não lhe servir, pelo menos de vez em quando. Admitir isso são outros quinhentos.

'Pátria' estreia em 2020 e mostra que o ETA dividiu famílias e causou 853 mortes Foto: HBO

Aramburu nasceu em San Sebastian, em 1959, mas desde 1985 vive na Alemanha. Foi incluído pelo jornal ABC entre os dez principais autores espanhóis contemporâneos, ao lado de Javier Marias, Rosa Montero, Enrique Vila-Matas e Javier Cercas, entre outros. Pátria, publicado originalmente em 2016, saiu em 30 países, vendeu mais de um milhão de exemplares só em língua espanhola e embolsou uma baciada de prêmios, entre eles o da Academia Real Espanhola, da Crítica da Narrativa Castelhana, o Euskadi e o Strega Europeo. E está sendo convertido em série de TV pela HBO. 

O ETA (sigla para “Pátria Basca e Liberdade”) foi fundado no ano do nascimento de Aramburu, em plena ditadura franquista. Reivindicava a independência do País Basco, região cujo território abrange partes da Espanha e da França. Nos anos 1960, o ETA professou o marxismo-leninismo e virou uma organização paramilitar terrorista. Desde 1968, foi responsável pela morte 829 pessoas, inclusive estrangeiros, mulheres grávidas e crianças. Por isso, o grupo foi perdendo o apoio local (ilustrado em Pátria), nacional e internacional, especialmente após a redemocratização da Espanha e da Constituição de 1978, que concedeu ampla autonomia ao País Basco. Em 2011, já totalmente isolado, o ETA anunciou o fim de suas operações. Em 2018, os “etarras” pediram oficialmente perdão às suas vítimas, e a organização se dissolveu. 

Pátria (que já foi chamado de “o Guerra e Paz espanhol”) se desenrola ao longo de 50 anos, numa vila basca não nomeada. Através de extorsões, intimidações e atentados, o ETA tenta impor a pureza política, ideológica e linguística na região – e isso tudo em nome de um povo que nunca foi consultado. O núcleo dramático são duas famílias, cujas matriarcas (Miren e Bitori) eram as melhores amigas na juventude. Quando Txato, marido de Bitori, se recusa a pagar o “imposto revolucionário”, se torna um pária em sua terra natal. É banido dos clubes de ciclismo e de gastronomia, e vê seu nome aviltado em pichações diárias. Até que recebe cinco tiros nas costas. Já Miren, cujo filho Joxe Mari aderira ao ETA, vira uma nacionalista fanática, assim descrita pela sua outra filha, Arantxa: “Mamãe não entende nada de política, nunca leu um livro na vida, mas grita slogans da mesma maneira que outros soltam fogos de artifício”.

Um dos temas de Pátria é esse extremismo cego, aquele clichê totalitário de que “tudo é política” (não há esfera privada, nem intimidade, nem sequer o amor ou a amizade), luta pelo poder. E de que os fins justificam os meios – como objetou Camus, os meios adulteram os fins. E como deixa claro Joxe Mari, ao entrar no ETA: “Por mim tanto faz que mande este ou aquele. Só luto por um Eukal Herrera como povo livre. O resto vocês podem embrulhar para presente. Vamos de A a B, mas quando chegarmos em B, por favor me deixem sossegado. Eu vou morar na serra, planto lá umas macieiras, monto um galinheiro e que se foda todo mundo.” 

Só que não, pois a vilania do fanatismo é tóxica, gerando degradação moral, conformismo e covardia. “Tinham aparecido pichações nas paredes. O negócio é difamar e meter medo. Fulano faz um pouquinho, sicrano faz outro pouquinho e, quando a desgraça provocada por todos acontece, nenhum deles se sente responsável, porque, afinal, eu só pichei, eu só contei onde ele morava, eu só disse umas palavras que podem ofender, mas, sabe, são só palavras, sons momentâneos no ar. Da noite para o dia, muita gente da vila parou de falar com eles. Falar? Isso já seria muito. Viravam a cara quando os viam. Amigos da vida inteira, vizinhos, algumas crianças também. O que os inocentes podem saber?” Para o fanatismo, não há inocentes, mas apenas nós e os outros. 

Pátria funciona graças à sua eficácia literária. Assim, não se reduz a um mural teórico sobre o contexto de uma comunidade. Sim, revela convincentemente o “ethos” e o “pathos” desta mesma comunidade, porém através de indivíduos de carne e osso. Não apenas abstrações físicas e sociais coletivas, mas a psicologia, as emoções e as fantasias daquelas entidades idiossincráticas e irredutíveis que são os seres humanos singulares – nem arquétipos nem estereótipos. 

A narrativa começa quando uma idosa e doente Bitori, ao ouvir que o ETA renunciou à luta armada, regressa à vila para tentar obter um pedido de perdão dos carrascos do marido. A história serpenteia numa espiral cronológica, abarcando um mosaico no qual ninguém é exclusivamente dono da verdade – o que tampouco significa que não exista certo e errado, assassinos e vítimas. Esse efeito é audaciosamente alcançado através da mistura das vozes narrativas na primeira e na terceira pessoas – o que podia soar confuso, comunica de modo límpido o objetivo e o subjetivo, o domínio dos fatos e o reino das emoções. 

Outra astúcia de Aramburu é um humor oblíquo, que alivia o teor trágico da saga, e evita que o drama descambe em melodrama e a grandeza em grandiloquência. Sobretudo através da relação das duas matriarcas (rabugentas e irascíveis) com os respectivo maridos (dóceis e flexíveis). Aliás, elas são os pilares do romance. Duas mulheres bastante comuns, mas também únicas e portentosas. Sim, são avatares de uma sociedade dividida e dilacerada por esta fratura, porém não se exaurem em símbolos genéricos – pelo contrário, expõem suas dinâmicas íntimas, afetivas. 

Talvez o título do romance, esse sim, seja simbólico. Qual a pátria suprema de cada um de nós? A quem devemos a nossa máxima lealdade? A um conceito? A um projeto? À gente concreta que conhecemos de verdade, no cotidiano? A nós próprios – mas a qual “eu” dentro de nós? Pátria é um dos livros do ano.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Pátria, de Fernando Aramburu, é não apenas uma ficção magistral e um entretenimento apaixonante – o que já seria bom demais da conta. É também uma instrutiva lição sobre os perigos letais do fanatismo ideológico e do sectarismo político. No caso, se trata do País Basco e do terrorismo do ETA. Mas hoje, neste Brasil tão maniqueísta, rancoroso e intolerante, será difícil alguém ler o livro e a carapuça não lhe servir, pelo menos de vez em quando. Admitir isso são outros quinhentos.

'Pátria' estreia em 2020 e mostra que o ETA dividiu famílias e causou 853 mortes Foto: HBO

Aramburu nasceu em San Sebastian, em 1959, mas desde 1985 vive na Alemanha. Foi incluído pelo jornal ABC entre os dez principais autores espanhóis contemporâneos, ao lado de Javier Marias, Rosa Montero, Enrique Vila-Matas e Javier Cercas, entre outros. Pátria, publicado originalmente em 2016, saiu em 30 países, vendeu mais de um milhão de exemplares só em língua espanhola e embolsou uma baciada de prêmios, entre eles o da Academia Real Espanhola, da Crítica da Narrativa Castelhana, o Euskadi e o Strega Europeo. E está sendo convertido em série de TV pela HBO. 

O ETA (sigla para “Pátria Basca e Liberdade”) foi fundado no ano do nascimento de Aramburu, em plena ditadura franquista. Reivindicava a independência do País Basco, região cujo território abrange partes da Espanha e da França. Nos anos 1960, o ETA professou o marxismo-leninismo e virou uma organização paramilitar terrorista. Desde 1968, foi responsável pela morte 829 pessoas, inclusive estrangeiros, mulheres grávidas e crianças. Por isso, o grupo foi perdendo o apoio local (ilustrado em Pátria), nacional e internacional, especialmente após a redemocratização da Espanha e da Constituição de 1978, que concedeu ampla autonomia ao País Basco. Em 2011, já totalmente isolado, o ETA anunciou o fim de suas operações. Em 2018, os “etarras” pediram oficialmente perdão às suas vítimas, e a organização se dissolveu. 

Pátria (que já foi chamado de “o Guerra e Paz espanhol”) se desenrola ao longo de 50 anos, numa vila basca não nomeada. Através de extorsões, intimidações e atentados, o ETA tenta impor a pureza política, ideológica e linguística na região – e isso tudo em nome de um povo que nunca foi consultado. O núcleo dramático são duas famílias, cujas matriarcas (Miren e Bitori) eram as melhores amigas na juventude. Quando Txato, marido de Bitori, se recusa a pagar o “imposto revolucionário”, se torna um pária em sua terra natal. É banido dos clubes de ciclismo e de gastronomia, e vê seu nome aviltado em pichações diárias. Até que recebe cinco tiros nas costas. Já Miren, cujo filho Joxe Mari aderira ao ETA, vira uma nacionalista fanática, assim descrita pela sua outra filha, Arantxa: “Mamãe não entende nada de política, nunca leu um livro na vida, mas grita slogans da mesma maneira que outros soltam fogos de artifício”.

Um dos temas de Pátria é esse extremismo cego, aquele clichê totalitário de que “tudo é política” (não há esfera privada, nem intimidade, nem sequer o amor ou a amizade), luta pelo poder. E de que os fins justificam os meios – como objetou Camus, os meios adulteram os fins. E como deixa claro Joxe Mari, ao entrar no ETA: “Por mim tanto faz que mande este ou aquele. Só luto por um Eukal Herrera como povo livre. O resto vocês podem embrulhar para presente. Vamos de A a B, mas quando chegarmos em B, por favor me deixem sossegado. Eu vou morar na serra, planto lá umas macieiras, monto um galinheiro e que se foda todo mundo.” 

Só que não, pois a vilania do fanatismo é tóxica, gerando degradação moral, conformismo e covardia. “Tinham aparecido pichações nas paredes. O negócio é difamar e meter medo. Fulano faz um pouquinho, sicrano faz outro pouquinho e, quando a desgraça provocada por todos acontece, nenhum deles se sente responsável, porque, afinal, eu só pichei, eu só contei onde ele morava, eu só disse umas palavras que podem ofender, mas, sabe, são só palavras, sons momentâneos no ar. Da noite para o dia, muita gente da vila parou de falar com eles. Falar? Isso já seria muito. Viravam a cara quando os viam. Amigos da vida inteira, vizinhos, algumas crianças também. O que os inocentes podem saber?” Para o fanatismo, não há inocentes, mas apenas nós e os outros. 

Pátria funciona graças à sua eficácia literária. Assim, não se reduz a um mural teórico sobre o contexto de uma comunidade. Sim, revela convincentemente o “ethos” e o “pathos” desta mesma comunidade, porém através de indivíduos de carne e osso. Não apenas abstrações físicas e sociais coletivas, mas a psicologia, as emoções e as fantasias daquelas entidades idiossincráticas e irredutíveis que são os seres humanos singulares – nem arquétipos nem estereótipos. 

A narrativa começa quando uma idosa e doente Bitori, ao ouvir que o ETA renunciou à luta armada, regressa à vila para tentar obter um pedido de perdão dos carrascos do marido. A história serpenteia numa espiral cronológica, abarcando um mosaico no qual ninguém é exclusivamente dono da verdade – o que tampouco significa que não exista certo e errado, assassinos e vítimas. Esse efeito é audaciosamente alcançado através da mistura das vozes narrativas na primeira e na terceira pessoas – o que podia soar confuso, comunica de modo límpido o objetivo e o subjetivo, o domínio dos fatos e o reino das emoções. 

Outra astúcia de Aramburu é um humor oblíquo, que alivia o teor trágico da saga, e evita que o drama descambe em melodrama e a grandeza em grandiloquência. Sobretudo através da relação das duas matriarcas (rabugentas e irascíveis) com os respectivo maridos (dóceis e flexíveis). Aliás, elas são os pilares do romance. Duas mulheres bastante comuns, mas também únicas e portentosas. Sim, são avatares de uma sociedade dividida e dilacerada por esta fratura, porém não se exaurem em símbolos genéricos – pelo contrário, expõem suas dinâmicas íntimas, afetivas. 

Talvez o título do romance, esse sim, seja simbólico. Qual a pátria suprema de cada um de nós? A quem devemos a nossa máxima lealdade? A um conceito? A um projeto? À gente concreta que conhecemos de verdade, no cotidiano? A nós próprios – mas a qual “eu” dentro de nós? Pátria é um dos livros do ano.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Pátria, de Fernando Aramburu, é não apenas uma ficção magistral e um entretenimento apaixonante – o que já seria bom demais da conta. É também uma instrutiva lição sobre os perigos letais do fanatismo ideológico e do sectarismo político. No caso, se trata do País Basco e do terrorismo do ETA. Mas hoje, neste Brasil tão maniqueísta, rancoroso e intolerante, será difícil alguém ler o livro e a carapuça não lhe servir, pelo menos de vez em quando. Admitir isso são outros quinhentos.

'Pátria' estreia em 2020 e mostra que o ETA dividiu famílias e causou 853 mortes Foto: HBO

Aramburu nasceu em San Sebastian, em 1959, mas desde 1985 vive na Alemanha. Foi incluído pelo jornal ABC entre os dez principais autores espanhóis contemporâneos, ao lado de Javier Marias, Rosa Montero, Enrique Vila-Matas e Javier Cercas, entre outros. Pátria, publicado originalmente em 2016, saiu em 30 países, vendeu mais de um milhão de exemplares só em língua espanhola e embolsou uma baciada de prêmios, entre eles o da Academia Real Espanhola, da Crítica da Narrativa Castelhana, o Euskadi e o Strega Europeo. E está sendo convertido em série de TV pela HBO. 

O ETA (sigla para “Pátria Basca e Liberdade”) foi fundado no ano do nascimento de Aramburu, em plena ditadura franquista. Reivindicava a independência do País Basco, região cujo território abrange partes da Espanha e da França. Nos anos 1960, o ETA professou o marxismo-leninismo e virou uma organização paramilitar terrorista. Desde 1968, foi responsável pela morte 829 pessoas, inclusive estrangeiros, mulheres grávidas e crianças. Por isso, o grupo foi perdendo o apoio local (ilustrado em Pátria), nacional e internacional, especialmente após a redemocratização da Espanha e da Constituição de 1978, que concedeu ampla autonomia ao País Basco. Em 2011, já totalmente isolado, o ETA anunciou o fim de suas operações. Em 2018, os “etarras” pediram oficialmente perdão às suas vítimas, e a organização se dissolveu. 

Pátria (que já foi chamado de “o Guerra e Paz espanhol”) se desenrola ao longo de 50 anos, numa vila basca não nomeada. Através de extorsões, intimidações e atentados, o ETA tenta impor a pureza política, ideológica e linguística na região – e isso tudo em nome de um povo que nunca foi consultado. O núcleo dramático são duas famílias, cujas matriarcas (Miren e Bitori) eram as melhores amigas na juventude. Quando Txato, marido de Bitori, se recusa a pagar o “imposto revolucionário”, se torna um pária em sua terra natal. É banido dos clubes de ciclismo e de gastronomia, e vê seu nome aviltado em pichações diárias. Até que recebe cinco tiros nas costas. Já Miren, cujo filho Joxe Mari aderira ao ETA, vira uma nacionalista fanática, assim descrita pela sua outra filha, Arantxa: “Mamãe não entende nada de política, nunca leu um livro na vida, mas grita slogans da mesma maneira que outros soltam fogos de artifício”.

Um dos temas de Pátria é esse extremismo cego, aquele clichê totalitário de que “tudo é política” (não há esfera privada, nem intimidade, nem sequer o amor ou a amizade), luta pelo poder. E de que os fins justificam os meios – como objetou Camus, os meios adulteram os fins. E como deixa claro Joxe Mari, ao entrar no ETA: “Por mim tanto faz que mande este ou aquele. Só luto por um Eukal Herrera como povo livre. O resto vocês podem embrulhar para presente. Vamos de A a B, mas quando chegarmos em B, por favor me deixem sossegado. Eu vou morar na serra, planto lá umas macieiras, monto um galinheiro e que se foda todo mundo.” 

Só que não, pois a vilania do fanatismo é tóxica, gerando degradação moral, conformismo e covardia. “Tinham aparecido pichações nas paredes. O negócio é difamar e meter medo. Fulano faz um pouquinho, sicrano faz outro pouquinho e, quando a desgraça provocada por todos acontece, nenhum deles se sente responsável, porque, afinal, eu só pichei, eu só contei onde ele morava, eu só disse umas palavras que podem ofender, mas, sabe, são só palavras, sons momentâneos no ar. Da noite para o dia, muita gente da vila parou de falar com eles. Falar? Isso já seria muito. Viravam a cara quando os viam. Amigos da vida inteira, vizinhos, algumas crianças também. O que os inocentes podem saber?” Para o fanatismo, não há inocentes, mas apenas nós e os outros. 

Pátria funciona graças à sua eficácia literária. Assim, não se reduz a um mural teórico sobre o contexto de uma comunidade. Sim, revela convincentemente o “ethos” e o “pathos” desta mesma comunidade, porém através de indivíduos de carne e osso. Não apenas abstrações físicas e sociais coletivas, mas a psicologia, as emoções e as fantasias daquelas entidades idiossincráticas e irredutíveis que são os seres humanos singulares – nem arquétipos nem estereótipos. 

A narrativa começa quando uma idosa e doente Bitori, ao ouvir que o ETA renunciou à luta armada, regressa à vila para tentar obter um pedido de perdão dos carrascos do marido. A história serpenteia numa espiral cronológica, abarcando um mosaico no qual ninguém é exclusivamente dono da verdade – o que tampouco significa que não exista certo e errado, assassinos e vítimas. Esse efeito é audaciosamente alcançado através da mistura das vozes narrativas na primeira e na terceira pessoas – o que podia soar confuso, comunica de modo límpido o objetivo e o subjetivo, o domínio dos fatos e o reino das emoções. 

Outra astúcia de Aramburu é um humor oblíquo, que alivia o teor trágico da saga, e evita que o drama descambe em melodrama e a grandeza em grandiloquência. Sobretudo através da relação das duas matriarcas (rabugentas e irascíveis) com os respectivo maridos (dóceis e flexíveis). Aliás, elas são os pilares do romance. Duas mulheres bastante comuns, mas também únicas e portentosas. Sim, são avatares de uma sociedade dividida e dilacerada por esta fratura, porém não se exaurem em símbolos genéricos – pelo contrário, expõem suas dinâmicas íntimas, afetivas. 

Talvez o título do romance, esse sim, seja simbólico. Qual a pátria suprema de cada um de nós? A quem devemos a nossa máxima lealdade? A um conceito? A um projeto? À gente concreta que conhecemos de verdade, no cotidiano? A nós próprios – mas a qual “eu” dentro de nós? Pátria é um dos livros do ano.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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