Quando se pensa nos pintores viajantes que retrataram o Brasil Colônia, o nome do pintor, desenhista e gravador austríaco Thomas Ender (1793-1875) vem sempre atrás do francês Debret (1778-1848) e do alemão Rugendas (1802-1858). Uma injustiça, claro. Finalmente, um gigantesco livro com a obra completa produzida aqui pelo artista, Ender e o Brasil, publicado pela editora Capivara, vem corrigir essa distorção – vale lembrar que a mesma editora fez o mesmo com as obras de Debret (em 2008) e Rugendas (2010) ao lançar os catálogos raisonnés dos três artistas viajantes.
Reunindo toda a produção do artista produzida no Brasil (989 aquarelas e desenhos, 24 gravuras e 7 óleos), Ender e o Brasil, assinado pelo historiador de arte Julio Bandeira, traz ainda a reprodução de um óleo inédito, uma miniatura que sintetiza o olhar detalhista do austríaco. O óleo, pequenino e redondo, segundo Bandeira, mostra a igreja do Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro, pintada sobre marfim. É possível que tenha sido feito para a irmã da imperatriz Leopoldina, Maria Luísa, ex-imperatriz francesa que, em 1819, já estava separada de Napoleão e vivendo como duquesa de Parma.
Dois anos antes, Thomas Ender, então com pouco mais de 23 anos, desembarcava no Brasil na primeira Missão Austríaca a aportar no Novo Mundo. O objetivo dessa viagem era registrar, em desenhos e aquarelas, a paisagem, os tipos e costumes do país em que a filha do imperador austríaco Francisco I, Leopoldina, arquiduquesa e futura imperatriz, esposa de d. Pedro, iria viver. Ender permaneceu 11 meses no Brasil.
Enquanto cumpria as ordens do príncipe Clemens von Metternich (1773-1859), chefe da Missão Austríaca, que escolheu Thomas Ender como integrante, o artista organizou paralelamente um álbum de aquarelas e desenhos, doado à Academia de Belas-Artes de Viena e posteriormente comprado, em 1937, pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Das 300 obras do álbum, apenas meia dúzia de imagens circulou num pequeno catálogo publicado nos anos 1960 – e ainda assim em preto e branco. Detalhe: também esse álbum faz parte de Ender e o Brasil.
O livro, além do texto primoroso de Julio Bandeira, traz uma apresentação do editor e colecionador Pedro Corrêa do Lago, uma introdução de Cornelia Reiter, da Academia de Belas-Artes de Viena, e uma biografia do artista escrita por Richard Wagner, ex-diretor dessa instituição. É por intermédio dele que o leitor entra na intimidade da família Ender num subúrbio de Viena. O pai, comerciante de artigos de segunda mão, teve dificuldades para educar os filhos – Thomas tinha um irmão gêmeo, Johann, e ambos ficavam vasculhando peças no brechó do pai atrás de velhas gravuras, óleos antigos e livros de esboços para treinar seus dons artísticos. O pai, mesmo a contragosto, cedeu e ambos foram matriculados na Academia de Belas-Artes, aos 13 anos. Como seu protetor, Metternich se tornou curador da Academia e, notando o talento de Thomas para a paisagem, era natural que o escolhesse para a viagem ao Brasil.
Ao contrário de Debret, cujo olhar se voltou para a violência da sociedade brasileira, escancarando a tortura de escravos africanos, Thomas Ender preferia dirigir seu olhar para a paisagem – e um exemplo dessa direção é sua Vista do Pedregulho, em São Cristóvão, um desenho com traços aquarelados em que retrata o calor brasileiro tendo ao fundo grupos de pessoas sem maior importância na composição.
Isso não quer dizer, segundo Bandeira, que Thomas Ender fosse indiferente ao sofrimento dos escravos ou se negasse a denunciar o segregacionismo da sociedade brasileira no começo do século 19. “Você não vê as cenas violentas como em Debret, mas temos em suas aquarelas uma denúncia forte do escravagismo”, diz Bandeira. Se Debret registra os negros sendo açoitados ou tratados como animais selvagens, Ender documenta as relações assimétricas entre senhores e escravos de modo a afirmar a beleza do negro – e disso é exemplo uma aquarela que mostra uma escrava sendo vendida a um branco sob o olhar de um padre impassível, provando que Ender era tão crítico quanto Debret.
“Debret foi cenógrafo de teatro, suas figuras têm um lado neoclássico, mas Ender seguiu outro caminho, o da observação do panorama com um apego realista a este”, compara Bandeira, aproximando o austríaco mais de outro francês, Nicolas Antoine Taunay, que veio ao Brasil com a Missão Artística Francesa, em 1816, e transmitiu ao filho, Felix Emile Taunay, o gosto pela pintura de paisagem. No meio deles figura o alemão Rugendas, romântico dado a fantasias híbridas que tentam enfiar elementos da paisagem europeia em território brasileiro.
“Rugendas era um individualista, um romântico fantasioso”, define Bandeira. “Já Ender não inventa, é mais confiável, enquanto Taunay parece estar pintando a Itália ao registrar a paisagem brasileira”, compara o autor do livro. Essa nostalgia eurocêntrica dos franceses viajantes Julio Bandeira não detecta em Thomas Ender. “Embora fizesse parte da corte mais conservadora da Europa e mostrasse uma fidelidade enorme a ela, Ender não é submisso.” O imaginário desses artistas, contudo, convergia para um ponto em que o fascínio pelos trópicos era ambivalente em torno da imagem do Novo Mundo. As aquarelas de Thomas Ender parecem delicadas demais para uma paisagem exuberante como a do Rio colonial, mas são reverentes aos modelos reais.
Ender pode não ter o olhar científico de Spix e Von Martius para explorar o Novo Mundo, mas Bandeira lembra que o trabalho de pesquisa do historiador Gilberto Ferrez para divulgar a obra de Ender indica um interesse além do artístico ao examinar tais documentos.
“Martius era um intelectual, Ender era um artista”, conclui o autor. O que Bandeira quer dizer é que, embora não tivesse interesse científico ao pintar o Brasil, Ender via na paisagem e nas cores do Novo Mundo algo além do exótico que Rugendas viu – e que o alemão misturou como num banquete antropofágico.
Ender se volta para as coisas pequenas como o comércio praticado por escravos no centro carioca ou os idílicos chafarizes do Rio, mas também para os palácios e navios ancorados na Baía de Guanabara – a arquiduquesa Leopoldina, afinal, não iria morar num mocambo tropical, mas numa cidade “civilizada” como Viena, parecia dizer o artista ao imperador austríaco Francisco I. Estivesse ou não enganado, o fato é que suas paisagens serviram – e ainda servem – de modelo para toda a arte brasileira do século 19 em diante. Evidentemente, não é pouco.