A obra de Kurt Vonnegut Jr. está sendo redescoberta no Brasil. Até 2017, todos os seus livros estavam fora de catálogo e apenas nos últimos dois anos, cinco títulos chegaram às livrarias brasileiras por três diferentes casas editoriais – Aleph, Rádio Londres e Intrínseca –, demonstrando como o autor vem ganhando força no mercado editorial do Brasil.
Começou com a publicação de Cama de Gato, que tece uma forte crítica à tensão nuclear por meio da subversão da racionalidade. Vonnegut, cuja prosa tem uma veia satírica e até humorística em certos momentos, evidencia o absurdo da Guerra Fria por meio de figuras como a de um cientista que auxiliou na criação de uma arma de destruição em massa, mas que se sente ultrajado com uma notícia sobre um assassino em série, sem perceber que seu trabalho provoca muito mais mortes do que todos os serial killers juntos. A obra foi lançada apenas um ano antes do filme Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, que se utiliza de vários expedientes irônicos semelhantes aos de Vonnegut para tratar da temática nuclear.
Também foi em Cama de Gato que o autor idealizou o bokonismo, uma religião fictícia que desafia a lógica cartesiana e serve de crítica a seitas – como a Cientologia, criada pelo também escritor de ficção científica L. Ron Hubbard, que Vonnegut conhecia.
Há quem diga que Hubbard era a inspiração para o personagem Killgore Trout (na verdade, a inspiração foi outro escritor, Theodore Sturgeon). Trout é um autor fictício que aparece em nada menos que cinco de seus romances, seja em cena – suas obras são responsáveis em parte pelo enlouquecimento do vendedor de carros e empresário Dwayne Hoover, em Café da Manhã dos Campeões, que tem nova edição este mês pela Intrínseca – ou sendo citado e lido por outros personagens – como Billy Pilgrim, protagonista do clássico Matadouro-Cinco, livro que o alçou ao estrelato e também chegou recentemente às prateleiras nacionais em nova roupagem.
É em Sereias de Titã, outra obra que voltou ao catálogo no Brasil, que Vonnegut destila alguns dos seus arroubos mais hilariantes e, ao mesmo tempo, filosóficos – isso tudo por meio de personagens absolutamente desprezíveis e vazios. Winston Niles Rumfoord é um viajante do espaço-tempo que acaba preso em uma espécie de loop cronológico e ganha quase uma onisciência. Ele profetiza todo o destino de Malachi Constant, um ricaço sem nada na cabeça, mas a sina soa tão maluca que nem ele, nem o leitor acreditam – e ambos são surpreendidos.
Para além dos romances, um dos livros mais interessantes que Vonnegut viria a publicar é O Que Tem de Mais Lindo do Que Isso?, que reúne suas palestras proferidas a formandos em universidades. Despido do manto da ficção, o escritor se mostra sábio sem perder o carisma – curiosamente, suas piadas, embora tenham sido feitas há décadas, não envelheceram mesmo em uma época na qual os limites do humor são colocados à prova a todo momento.