Na cultura brasileira, há três milagres indiscutíveis – e perturbadores: o romancista Machado de Assis, o dramaturgo Nelson Rodrigues e o filósofo Mário Ferreira dos Santos. O termo “milagre” é usado aqui no sentido de algo espantoso para quem não estava preparado para a sua existência, embora, se visto com atenção, ele sempre estivesse ali, à espera do momento ideal para surgir diante dos nossos olhos. Foi assim com Machado, especialmente na segunda fase da sua obra ficcional; foi assim com Nelson, com seu teatro incandescente; e foi também assim com Mário, quando, em 1957, publicou a obra-prima Filosofia Concreta, relançada agora pela Editora Filocalia, em edição primorosamente organizada por João Cezar de Castro Rocha.
Nascido em 1907, falecido em 1968 e dono de um poder de concentração espantoso (cortesia da sua educação jesuíta), ele era alguém absolutamente inclassificável e, portanto, impossível de ser cooptado por qualquer escola de pensamento. Ora considerado como um católico reacionário (apesar de ter dito que as Cruzadas foram causadas por motivos pecuniários e não religiosos), ora como um anarquista (mesmo com a sua defesa de um “grupo de sábios” que salvasse a humanidade), ora um defensor de Nietzsche (que não seria um “anticristão”, segundo a sua leitura), ou um pós-moderno (mais sobre isso adiante), um escolástico, um antiacadêmico, ou um iluminista tardio (porque resolveu vender a sua imensa obra ao público geral como se fosse uma “Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Sociais”). Enfim: Mário era tudo isso e muito mais porque, no fundo, é assim que um milagre funciona na nossa consciência tão limitada. A Filosofia Concreta, tanto o livro em si como o nome do seu método, representa, ao mesmo tempo, um ponto de virada e um salto de intensidade no seu percurso. Depois de nove volumes de temas introdutórios, mas que também antecipariam (e complementariam) suas novas descobertas, Mário escreveu o décimo tomo que unificaria todas as pontas soltas – e que seria a ponte para um empreendimento ainda mais ousado (e, infelizmente, inacabado): a reconstrução da Mathesis megiste, a “sabedoria suprema” que o brasileiro recuperou de Pitágoras. A redescoberta pitagórica, segundo Mário, seria a “matematização” da filosofia. Não, ele não está preocupado com a matemática tal como a conhecemos, com números a designar quantidades. Aqui, o número é qualitativo porque é, antes de tudo, um símbolo proporcional que dá forma e sentido à realidade objetiva. Ou seja: para o brasileiro, a verdade independe de quem a comunica. Ela sempre existirá, e pouco importa se há um passado, um presente ou um futuro. Seu centro é eterno. A partir daí, o filósofo construiu um sistema que tem lances de escolástica, mas que também dialoga com o questionamento sobre o Ser feito por Heidegger e que, por isso, se opõe frontalmente ao idealismo de Kant. Parece complicado, mas não é. Afinal, o seu germe é deveras simples: “Alguma coisa há”. No modo de pensar de Mário, este é o “ponto arquimédico”, o único que não pode ser refutado, sequer demonstrado e sim apenas mostrado – leia-se: ele se vê por si mesmo, sem intermediários. E é a partir desta pequenina certeza que então temos uma ascensão a qual tentará unir a dissonância que a filosofia moderna quis impor entre o sujeito e o objeto. O que Mário Ferreira dos Santos tentou fazer foi ir além do que, por exemplo, o americano Thomas Nagel proporia anos depois em seu clássico Uma Visão A Partir de Lugar Nenhum (1986), que busca uma objetividade no conhecimento humano a partir de um pólo que não se concentrasse nem no puro realismo, muito menos no subjetivismo deficiente. Não seria exagero afirmar que Filosofia Concreta, se dialogasse com as observações de Nagel, poderia muito bem ter como subtítulo Uma Visão A Partir do Lugar de Sempre. Para Mário, a verdadeira objetividade está em saber que o Ser Supremo é a única coisa que existe de fato – e que ele é bom, necessário e absoluto, independentemente das circunstâncias e, mais, do próprio homem que deveria registrar essa descoberta. Este ponto é o mais polêmico na (ainda incipiente) discussão sobre o valor da obra de Mário Ferreira dos Santos. Quando se termina a leitura de Filosofia Concreta, a sensação que se tem é a da mais completa indiferença do filósofo a respeito da pessoa humana – uma característica típica do que alguns chamariam de “pós-modernismo”. O que parece ser uma excessiva preocupação com a ontologia (a ciência do Ser), em detrimento da lógica (a ciência do discurso e da razão), nos leva a crer que o brasileiro chegou a um impasse formidável. Contudo, isto é um engano, e por dois motivos. O primeiro é que o adjetivo “concreta” não está ali por acaso; na perspectiva de Mário, a sua filosofia serviria justamente para ser a conexão que liga o assombro do pensamento ontológico com as limitações da reflexão racional. A concretude, na verdade, é um “crescer com” toda a tradição filosófica, ao incorporar nela tudo o que tem de valor e purgá-la de quaisquer erros, sempre tendo como meta não só o estabelecimento de uma filosofia da afirmação, mas sobretudo a afirmação da própria filosofia. O segundo motivo que corrige o equívoco sobre a recepção dos escritos de Mário é que, ao não se encaixar em nenhuma categoria já determinada por escolas filosóficas, sejam elas acadêmicas ou até mesmo antiacadêmicas, poucos conseguem perceber que, dentro do sentido intrínseco do seu próprio pensamento, ele era, antes de tudo, um “filósofo místico”, na acepção que um Eric Voegelin dava a si mesmo, inserido num grupo ímpar de grandes nomes como Mestre Eckhart e São João da Cruz. Isso significa que ele articulava o seu raciocínio não pelo meio exclusivo dos conceitos e sim por meio de tensões, que se avolumam entre as antinomias do ser e do não-ser até chegarem a um “pesadelo do paradoxo” que parece ser infinito. Obviamente, não é este o caso. Como bem apontou Luis Mauro Sá Martino em outro texto que acompanha o volume, a “mística” aqui não é apenas um encontro com o mysterium religioso; é aceitar o enigma benevolente da realidade objetiva em si mesma e, ao mesmo tempo, conseguir comunicá-la aos seus semelhantes porque Mário sabia que esta era a função primeira de quem pratica a filosofia. Portanto, dentro dessa teia de aparentes e crescentes contradições, descobrimos uma concretude que conecta tanto a unidade como o múltiplo que nos cerca no nosso cotidiano. O que ele não anteviu é que, ao privilegiar o ser, esqueceu-se que ele próprio seria a pessoa a nos dizer o que de fato se passava na estrutura do real. Porém, isto não o fez relaxar nos seus meios de expressão. Pelo contrário: como mostra André Gomes Quirino em um fabuloso ensaio que acompanha a edição, Mário escreveu e reescreveu obsessivamente as teses, os comentários e o próprio estilo da sua magnum opus. Como um bom “filósofo místico”, ele sabia que a compreensão adequada do mistério só ocorre na consciência do leitor quando tudo está bem concatenado na energia do verbo – e quem afirmar o contrário disso a respeito dos seus escritos não passa de um rematado falsificador, para dizer o mínimo. Contudo, nada disso aconteceria se Mário não fosse impelido pela mesma força que “conexiona” (um neologismo criado por ele) tanto a filosofia como a contemplação do mysterium. No caso, estamos a falar do “eros”, que pode ser amoroso ou tirânico. Se for a primeira opção, a filosofia se transforma não só em um pensamento lúcido, mas é também a verdadeira ação que fará o mundo se aperfeiçoar de modo efetivo, “a fim de alcançar uma visão humana da Verdade”. Na peregrinação feita por Mario Ferreira Santos, em suas 327 teses organizadas como uma catedral em homenagem à vida do espírito, não há espaço para o “eros” tirânico porque isto impediria estabelecer “um ponto sólido de esteio”, à espera por “melhores frutos”. E só por isto, ao afirmar a filosofia como um meio de existência baseado no amor e jamais no ódio, temos aqui a maior prova de que o Brasil foi o palco de um milagre que precisa ser urgentemente redescoberto. MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DE ‘A TIRANIA DOS ESPECIALISTAS’ (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2019) E ‘O CONTÁGIO DA MENTIRA’ (ÂYINÉ, 2020)