O latino Horácio (65-8 a.C.) atravessa os séculos com forte vitalidade. Só em Portugal já se fizeram quase uma centena de traduções de sua obra desde o século XVI, segundo o tradutor português Pedro Braga Falcão, responsável por este recém-lançado volume das Odes (Carmina) do poeta.
No texto de orelha do volume, Alexandre Hasegawa observa (citando o poeta) que “não sem glória” (non sine gloria) Horácio louvou aos deuses, aos homens (particularmente a César e a Mecenas, patrono dos poetas) e aos “grandes modelos gregos”, como Homero, Píndaro, Alceu e Safo, além de Virgílio e outros latinos. Parte do que sabemos de Horácio se deve às informações autobiográficas que incluiu em seus versos; no entanto – comenta Falcão em sua introdução ao livro –, deve-se “ler com cautela” esse legado autobiográfico, já que “quase tudo na voz deste poeta” relaciona-se a seu “projeto pessoal e literário”, representado pela “narrativa de um self-made man” que serve ao engrandecimento de tudo “que o mérito conquistou” (ode III, 21).
No tempo de Horácio, como esclarece o tradutor, a criatividade de um poeta não era avaliada (diferentemente de hoje) por sua “originalidade”, mas pela qualidade de sua “imitação” de modelos do passado; para Falcão, “o fato de ainda hoje ser tão lido e estudado” talvez “tenha a ver não só com a qualidade literária dos poemas, mas também com quem ele decidiu imitar”. Horácio colhe a influência dos poetas líricos gregos, que compunham poemas destinados à performance musical; é de se esperar, portanto, que o próprio poeta cantasse suas composições “no contexto, por exemplo, dos diversos banquetes organizados por Mecenas”.
Muitos sabem de Horácio pelo famoso lema “carpe diem”, extraído de versos seus dirigidos a Leucônoe (ode I, 11), ora assim traduzidos: “Sê sensata, decanta o vinho, e faz de uma longa esperança/ um breve momento. Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo:/ colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã.” Mas, para observarmos aspectos da tradução, atentemos para este fragmento da ode II, 16: “Tranquilidade pede aos deuses quem longe da costa/ surpreendido foi pelo mar Egeu, pois assim uma negra nuvem/ a lua esconde, não mais as estrelas, seguras guias,/ brilham para os marinheiros”; são estes os versos originais: “Otium divos rogat in parenti/ prensus Aegaeo, simul atra nubes/ condidit lunam neque certa fulgent/ sidera nautis”. É possível intuir que, em português, os versos talvez se alonguem a fim de se preservar o sentido do original; isso é, de fato, cumprido pela tradução, que atende seguramente ao “conteúdo” dos versos latinos, com uma fluência que beira à da prosa. Também se pode concluir que, se há padrão métrico-rítmico nesses versos, o tradutor não optou por corresponder a ele em seu poema.
Falcão anuncia que sua tradução considera “a estética da poesia portuguesa contemporânea” e sua própria prática poética, seguindo “a tradição dos anteriores tradutores portugueses, que adaptaram ao seu contexto literário o registro poético de suas composições”. Algo muito diverso é o que faz outro tradutor brasileiro cujo propósito foi recriar em português os complexos metros dos poemas latinos; vejam-se estes versos presentes no livro O esmeril de Horácio, de Érico Nogueira (2020), da ode IV, 3: “Ó da lira dourada quem/ o suave clangor, Piéride, bem modulas,/ que inclusive à mudez dos peixes/ som de cisne doarias, se te aprouvesse” (Ó testudinis aureae/ dulcem quae strepitum, Pieri, temperas,/ donatura cycni, si libeat, sonum”). O exemplo serve para evidenciar, leitor, que a identidade de uma poesia recriada decorre do projeto tradutório e estético que a orienta. No caso em questão, a comunicação oral de tão dessemelhantes versões de Horácio – uma se guia pela rítmica de origem, outra pela busca de “uma certa dicção poética a partir do ritmo sincero das palavras” (Falcão) –, sugerirá poéticas distantes, embora centradas na mesma fonte, revelando-se o potencial de diferenciação de uma obra por meio das distintas vias percorridas por seus tradutores numa mesma época.
Ainda acerca da tradução ora publicada, que tem o mérito de trazer toda a Carmina horaciana com acurado rigor na transposição do plano semântico, apoiada por abundantes notas esclarecedoras, deve-se dizer que ela não exclui momentos em que a musicalidade aflora, associada a maior concisão; é o caso destes versos (ode II, 16): “Com pouco vive bem aquele a quem reluz/ na leve mesa o ancestral saleiro,/ nem o medo ou a sórdida cobiça/ lhe tiram o sono fácil.