A polonesa Olga Tokarczuc ganhou talvez o Nobel da Literatura mais estrambólico de todos: um com uma espécie de jet lag. Já este ano, ela abiscoitou o prêmio de 2018, e Peter Handke o de 2019 mesmo. Tudo por causa daquele rolo com um sacripanta do Comitê Nobel. Não obstante escreva num idioma meio críptico, Olga era cada vez mais uma bola cantada. Recentemente, ela embolsou o Man Booker Internacional por Vagantes (editado no Brasil pela Tinta Negra e esgotado), o Prix Michalski e o Nike (o mais importante prêmio da Polônia) por The Books of Jacob, e com este Sobre Os Ossos dos Mortos foi listada para o National Book Award (EUA) – e a respectiva versão cinematográfica por Agnieszka Holland empunhou um Urso de Prata no Festival de Berlim.
Idioma críptico, disse eu? Melhor morder a língua. Olga é talvez o primeiro autor polonês a subjugar o fascínio ocidental de forma sustentada desde o final da Guerra Fria – talvez desde os anos 70, quando Philip Roth fez Bruno Schulz viralizar. Porém, se algo não falta à literatura polonesa é miminho, com nada menos que seis Nobel no cangote: Henryk Sienkiewicz, Wladyslaw Reymond, Isaac Bashevis Singer, Czeslaz Milosz, Wislawa Szymborska e agora Tokarczuk. Isso sem falar em outros ases da estirpe de Witold Gombrowicz, Stanislaw Lem, Schulz e Zbigniew Herbert. A Polônia até gerou um dos melhores escritores britânicos de todos os tempos: Joseph Conrad.
Só que a pegada de Olga não é nadinha nacionalista (talvez por isso, dias antes do anúncio do Nobel, para seu grande vexame o ministro polonês da Cultura, Piotr Glinski, se gabava de nunca a ter lido). Vagantes se ocupa de viagens mirabolantes. The Books of Jacob é considerada a obra-prima dela, tomara que agora seja publicada rapidinho no Brasil, apesar de suas mil páginas. E Sobre os Ossos dos Mortos se desenrola num vilarejo da Silésia, mas tão encostado à fronteira com a República Checa que as ligações dos celulares vira e mexe caem no país errado. A protagonista e narradora, a idosa Janina, tem mais faces que o deus Janus: atleta, engenheira, professora de inglês, astróloga, monitora de casas, professora, tradutora (de William Blake, de cujo verso provém o título original: “O Arado Sobre os Ossos dos Mortos”). Na região, a reclusa Janina é conhecida por gostar mais de bichos do que de gente. Quando rola uma série de assassinatos de figurões locais, ela mete o bedelho, convencida de que se trata de uma vingança dos animais martirizados pelos caçadores.
Graças a Deus, Tokarczuk é daqueles autores que se preocupam com o prazer do leitor – mas isso, claro, nunca impediu nenhum de fuçar em temas densos e metafísicos. Aqui, ela examina a questão da maldade: numa época de relativismo complacente, convém resgatar a singularidade do mal. Numa cena impagável, Janina e seus poucos amigos discutem sobre por que algumas pessoas são desagradáveis e perversas. As explicações sardônicas vão da astrologia (“Saturno!”) à sociologia (“Televisão!”), da dietética (“Falta de lítio e magnésio!”) à economia (“Bolsa de valores!”).
Daí a melancolia acabrunhada de Janina: “Enquanto olhava para o planalto e sua paisagem em branco e preto, entendi que a tristeza é uma palavra importante na definição do mundo. Constitui a base de tudo, é a quintessência.” Vira e mexe, ela desata a soluçar convulsivamente, no melhor estilo Coringa de Joaquin Phoenix. Todavia, o choro nunca descamba em chororô, em autovimitização ou niilismo. Ela é uma estoica clássica: dá nó em pingo d’água (no caso, as lágrimas torrenciais).
Por isso, o astuto trunfo técnico de Sobre os Ossos dos Mortos reside no foco narrativo na primeira pessoa. Trata-se de um “narrador inconfiável” – quando a voz que conta a história vai pouco a pouco minando sua credibilidade. O caso canônico é o de Agatha Christie e seu O Assassinato de Roger Akroyd, dissecado obsessivamente por eruditos que no fundo esnobavam a Rainha do Suspense.
A destreza de Olga é mostrar, muito sutilmente, como Janina volta e meia serra o galho lógico em que se senta. Por exemplo, quando critica a submissão a uma racionalidade sistemática, para depois confessar sua adesão ao esquema astrológico. Depois, ela reconhece que a astrologia é a mesma coisa que a biologia social – só que reverencia aquela e despreza esta última. No fundo, o narrador inconfiável é a única pista falsa deste thriller, na medida em que não desponta a proverbial galeria de suspeitos sucessivamente descartados.
Sobre os Ossos dos Mortos insinua uma discreta reconfiguração do humano, celebrando não o portentoso e o útil, mas o modesto e, pelo menos do ponto de vista institucional, inútil. Daí o apreço de Janina pelos animais, que vivem suas vidas sem teleologias nem devir, num pragmático aqui/agora (um presente eterno), sem o fardo do livre-arbítrio. É perturbador o animismo vitalista da protagonista, seu panteísmo que cutuca o antropocentrismo. Lembra às vezes o pensador australiano Peter Singer e seu conceito de “especismo” – uma espécie de racismo contra os animais. Apesar do seu fervor anticlerical (e a Polônia é um país católico à beça), transparece em Janina laivos franciscanos, de São Francisco de Assis, no respeito por todas formas de vida, e na inocência amoral e ociosa da natureza. Como aliás já vem no Sermão da Montanha: “Olhai os lírios do campo, que não trabalham nem fiam, e contudo vos digo que nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu com tal esplendor.”
Claro que há o outro lado da moeda: a morte. Se natural, é nosso destino comum, o fim de todas as criaturas, a fugaz ponte aérea da vida. Caso contrário, a coisa pode mudar de figura – como muda brutalmente nesta história. “Passou pela minha cabeça a ideia de que a morte de Pé Grande poderia ser considerada algo bom, pois o libertou da bagunça que era a sua vida. E libertou os outros seres vivos dele. Eis que, repentinamente, me dei conta dos benefícios da morte e de como ela era justa, à semelhança de um desinfetante ou de um aspirador.”
No caso, portanto, se ficar o bicho pega, e se correr o bicho come – neste romance, literalmente.
*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)