Os 35 anos do fim da censura no Brasil


A Censura afinal não foi extinta para todo o sempre. Sete meses mais tarde, Sarney proibiu a exibição de 'Je Vous Salue, Marie', de Jean-Luc Godard, em todo o território nacional

Por Sérgio Augusto

Noventa e oito dias depois da morte de Tancredo Neves, outra morte entrou para a história da Nova (ou Sexta) República Brasileira. Na noite de 29 de julho de 1985, a Censura foi declarada morta no País. Diferentemente da anterior, a segunda só foi pranteada pelos saudosistas da recém-finda ditadura militar. Com José Sarney na presidência havia já 136 dias, Fernando Lyra, escolha pessoal de Tancredo para o Ministério da Justiça, oficializou naquela noite o fim da mordaça e da repressão à liberdade de expressão, num ato público que reuniu mais de 700 artistas, intelectuais, produtores culturais e jornalistas no Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio. 

'Estadão' foi um dos mais censurados durante a ditadura militar Foto: Tiago Queiroz/Estadão

No meio deles, alguns brasilianistas franceses e alemães, de passagem pelo Brasil. Ainda éramos, apesar de tudo, um país sério, respeitado pelos gringos. E, suprema dádiva, muito querido. Foi uma espécie de auto de fé às avessas, com a censura de diversões e espetáculos condenada à civilizatória fogueira da redemocratização, sob os aplausos de suas antigas vítimas, diretas e indiretas.  Presente como repórter, coube-me ficar entre Tônia Carrero e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Na fileira atrás da minha, dois ilustres censurados pelo regime militar, os escritores Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão.  “Este é um acontecimento histórico”, proclamou o professor e acadêmico Antonio Houaiss, oficiante do ritual e relator da “comissão dos perseguidos”, que, a pedido do ministro, havia traçado em 22 tópicos as novas linhas de ação na relação entre o Estado e a Cultura, com a ajuda de Chico Buarque, do dramaturgo Dias Gomes, do humorista Ziraldo e do jornalista Pompeu de Souza, que qualificou o documento de “a Lei Áurea da inteligência brasileira”.  Chico reclamara da hora (“Oito da noite é muito cedo”), marcada pelo ministro para facilitar a cobertura da imprensa. Representando a si próprio e seu duplo “Julinho da Adelaide”, Chico chegou às 19h15; o ministro, pouco antes das 20h. Ao ver Lyra entrar no auditório, Tônia comentou: “Ele é uma gracinha, muito descontraído. Ele é a Nova República de verdade.”  Aha! Uhu!, aquela Justiça era (ou parecia ser) nossa. Antes de subir ao palco, o ministro deu um beijo em Alcione. Depois ocupou seu espaço numa mesa encimada por uma faixa com os dizeres “Nova Justiça”, na companhia do ministro da Cultura Aluísio Pimenta, do vice-governador do Estado do Rio Darcy Ribeiro, do jornalista Pompeu de Souza, do comediante Chico Anísio e mais 11 apóstolos, seis dos quais integrantes da “comissão dos perseguidos” pela finada Censura.  Empunhando um simbólico tesourão, o ministro da Justiça declarou extinta a Censura no Brasil, e sua substituíção por um Conselho Nacional da Defesa da Liberdade de Expressão, cujos integrantes, em vez de proibir livros, filmes, músicas, peças e telenovelas, passariam a submetê-los a um sistema classificatório por faixa etária. Euforia no salão. Pelo novo sistema, qualquer criança poderia presenciar espetáculos antes vetados a menores de 18 de anos, desde que acompanhada dos pais ou responsável. “O Juizado de Menores não vai deixar; eu conheço bem o Brasil”, resmungou Loyola Brandão. Ninguém nas poltronas vizinhas discordou.  Apenas cinco dos notáveis no palco discursaram: os dois ministros, Houaiss, Darcy Ribeiro e Pompeu de Sousa. Darcy começou com uma pergunta (“Quem tem medo da liberdade?"), que ele mesmo respondeu (“um grupo pequeno, minoritário, mas sempre perigoso”), para em seguida reivindicar “uma Constituição à prova de golpes e avassalamentos da vontade popular”.  Ahá! Uhu! Nós ainda tínhamos Darcy e aquela gente toda para nos representar e lutar por um país minimamente decente e esperançoso. Lyra falou meia hora. Relembrou os tempos bicudos da ditadura, quando “a gente ouvia as músicas do Chico quase clandestinamente”, arrolou reminiscências de sua carreira parlamentar, vangloriou-se de ter sido o primeiro cabo eleitoral de Tancredo à presidência da República. De repente, uma provocação: “Por que ninguém consegue fazer oposição a este governo?”  Referia-se ao governo Sarney. Na ausência de Millôr Fernandes, o mais implacável crítico de Sarney (ou Sir Ney, como o gozava cotidianamente, a ele e sua prosa literária, no Jornal do Brasil), tivemos de nos contentar com o palpite do ator Jece Valadão, que da quarta fila gritou: “Porque agora o povo está no poder!”. Não estava, mas ouvir aquilo de um ex-malufista deleitou a plateia. Além de lavrar o óbito da censura, Lyra anunciou a liberação de três livros proibidos e alguns filmes (Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias, Macunaíma, de Joaquim Pedro, e Os Condenados e Avaeté – A Semente da Vingança, de Zelito Viana) para exibição na TV. Antes que alguém lembrasse que ainda faltavam 403 livros para alforriar, a emoção tomou conta do teatro, no embalo do Hino Nacional.  Jamais imaginei que um dia fosse ouvir o Virundu de mãos dadas com Joaquim Pedro e Tônia Carrero. A mão do Joaquim estava quente, a de Tônia, fria, mas não só porque era inverno ou o ar refrigerado do Casa Grande estivesse ligado no máximo.  A Censura afinal não foi extinta para todo o sempre no Brasil. Sete meses mais tarde, Sarney, pressionado pela Igreja Católica e líderes evangélicos, proibiu a exibição de Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, em todo o território nacional. Fiel a uma velha tradição carnavalesca, o Bloco Pacotão, de Brasília, caiu na folia daquele ano com uma gozação ao presidente e à primeira-dama: “Je vous salue, Marly”. 

Noventa e oito dias depois da morte de Tancredo Neves, outra morte entrou para a história da Nova (ou Sexta) República Brasileira. Na noite de 29 de julho de 1985, a Censura foi declarada morta no País. Diferentemente da anterior, a segunda só foi pranteada pelos saudosistas da recém-finda ditadura militar. Com José Sarney na presidência havia já 136 dias, Fernando Lyra, escolha pessoal de Tancredo para o Ministério da Justiça, oficializou naquela noite o fim da mordaça e da repressão à liberdade de expressão, num ato público que reuniu mais de 700 artistas, intelectuais, produtores culturais e jornalistas no Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio. 

'Estadão' foi um dos mais censurados durante a ditadura militar Foto: Tiago Queiroz/Estadão

No meio deles, alguns brasilianistas franceses e alemães, de passagem pelo Brasil. Ainda éramos, apesar de tudo, um país sério, respeitado pelos gringos. E, suprema dádiva, muito querido. Foi uma espécie de auto de fé às avessas, com a censura de diversões e espetáculos condenada à civilizatória fogueira da redemocratização, sob os aplausos de suas antigas vítimas, diretas e indiretas.  Presente como repórter, coube-me ficar entre Tônia Carrero e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Na fileira atrás da minha, dois ilustres censurados pelo regime militar, os escritores Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão.  “Este é um acontecimento histórico”, proclamou o professor e acadêmico Antonio Houaiss, oficiante do ritual e relator da “comissão dos perseguidos”, que, a pedido do ministro, havia traçado em 22 tópicos as novas linhas de ação na relação entre o Estado e a Cultura, com a ajuda de Chico Buarque, do dramaturgo Dias Gomes, do humorista Ziraldo e do jornalista Pompeu de Souza, que qualificou o documento de “a Lei Áurea da inteligência brasileira”.  Chico reclamara da hora (“Oito da noite é muito cedo”), marcada pelo ministro para facilitar a cobertura da imprensa. Representando a si próprio e seu duplo “Julinho da Adelaide”, Chico chegou às 19h15; o ministro, pouco antes das 20h. Ao ver Lyra entrar no auditório, Tônia comentou: “Ele é uma gracinha, muito descontraído. Ele é a Nova República de verdade.”  Aha! Uhu!, aquela Justiça era (ou parecia ser) nossa. Antes de subir ao palco, o ministro deu um beijo em Alcione. Depois ocupou seu espaço numa mesa encimada por uma faixa com os dizeres “Nova Justiça”, na companhia do ministro da Cultura Aluísio Pimenta, do vice-governador do Estado do Rio Darcy Ribeiro, do jornalista Pompeu de Souza, do comediante Chico Anísio e mais 11 apóstolos, seis dos quais integrantes da “comissão dos perseguidos” pela finada Censura.  Empunhando um simbólico tesourão, o ministro da Justiça declarou extinta a Censura no Brasil, e sua substituíção por um Conselho Nacional da Defesa da Liberdade de Expressão, cujos integrantes, em vez de proibir livros, filmes, músicas, peças e telenovelas, passariam a submetê-los a um sistema classificatório por faixa etária. Euforia no salão. Pelo novo sistema, qualquer criança poderia presenciar espetáculos antes vetados a menores de 18 de anos, desde que acompanhada dos pais ou responsável. “O Juizado de Menores não vai deixar; eu conheço bem o Brasil”, resmungou Loyola Brandão. Ninguém nas poltronas vizinhas discordou.  Apenas cinco dos notáveis no palco discursaram: os dois ministros, Houaiss, Darcy Ribeiro e Pompeu de Sousa. Darcy começou com uma pergunta (“Quem tem medo da liberdade?"), que ele mesmo respondeu (“um grupo pequeno, minoritário, mas sempre perigoso”), para em seguida reivindicar “uma Constituição à prova de golpes e avassalamentos da vontade popular”.  Ahá! Uhu! Nós ainda tínhamos Darcy e aquela gente toda para nos representar e lutar por um país minimamente decente e esperançoso. Lyra falou meia hora. Relembrou os tempos bicudos da ditadura, quando “a gente ouvia as músicas do Chico quase clandestinamente”, arrolou reminiscências de sua carreira parlamentar, vangloriou-se de ter sido o primeiro cabo eleitoral de Tancredo à presidência da República. De repente, uma provocação: “Por que ninguém consegue fazer oposição a este governo?”  Referia-se ao governo Sarney. Na ausência de Millôr Fernandes, o mais implacável crítico de Sarney (ou Sir Ney, como o gozava cotidianamente, a ele e sua prosa literária, no Jornal do Brasil), tivemos de nos contentar com o palpite do ator Jece Valadão, que da quarta fila gritou: “Porque agora o povo está no poder!”. Não estava, mas ouvir aquilo de um ex-malufista deleitou a plateia. Além de lavrar o óbito da censura, Lyra anunciou a liberação de três livros proibidos e alguns filmes (Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias, Macunaíma, de Joaquim Pedro, e Os Condenados e Avaeté – A Semente da Vingança, de Zelito Viana) para exibição na TV. Antes que alguém lembrasse que ainda faltavam 403 livros para alforriar, a emoção tomou conta do teatro, no embalo do Hino Nacional.  Jamais imaginei que um dia fosse ouvir o Virundu de mãos dadas com Joaquim Pedro e Tônia Carrero. A mão do Joaquim estava quente, a de Tônia, fria, mas não só porque era inverno ou o ar refrigerado do Casa Grande estivesse ligado no máximo.  A Censura afinal não foi extinta para todo o sempre no Brasil. Sete meses mais tarde, Sarney, pressionado pela Igreja Católica e líderes evangélicos, proibiu a exibição de Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, em todo o território nacional. Fiel a uma velha tradição carnavalesca, o Bloco Pacotão, de Brasília, caiu na folia daquele ano com uma gozação ao presidente e à primeira-dama: “Je vous salue, Marly”. 

Noventa e oito dias depois da morte de Tancredo Neves, outra morte entrou para a história da Nova (ou Sexta) República Brasileira. Na noite de 29 de julho de 1985, a Censura foi declarada morta no País. Diferentemente da anterior, a segunda só foi pranteada pelos saudosistas da recém-finda ditadura militar. Com José Sarney na presidência havia já 136 dias, Fernando Lyra, escolha pessoal de Tancredo para o Ministério da Justiça, oficializou naquela noite o fim da mordaça e da repressão à liberdade de expressão, num ato público que reuniu mais de 700 artistas, intelectuais, produtores culturais e jornalistas no Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio. 

'Estadão' foi um dos mais censurados durante a ditadura militar Foto: Tiago Queiroz/Estadão

No meio deles, alguns brasilianistas franceses e alemães, de passagem pelo Brasil. Ainda éramos, apesar de tudo, um país sério, respeitado pelos gringos. E, suprema dádiva, muito querido. Foi uma espécie de auto de fé às avessas, com a censura de diversões e espetáculos condenada à civilizatória fogueira da redemocratização, sob os aplausos de suas antigas vítimas, diretas e indiretas.  Presente como repórter, coube-me ficar entre Tônia Carrero e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Na fileira atrás da minha, dois ilustres censurados pelo regime militar, os escritores Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão.  “Este é um acontecimento histórico”, proclamou o professor e acadêmico Antonio Houaiss, oficiante do ritual e relator da “comissão dos perseguidos”, que, a pedido do ministro, havia traçado em 22 tópicos as novas linhas de ação na relação entre o Estado e a Cultura, com a ajuda de Chico Buarque, do dramaturgo Dias Gomes, do humorista Ziraldo e do jornalista Pompeu de Souza, que qualificou o documento de “a Lei Áurea da inteligência brasileira”.  Chico reclamara da hora (“Oito da noite é muito cedo”), marcada pelo ministro para facilitar a cobertura da imprensa. Representando a si próprio e seu duplo “Julinho da Adelaide”, Chico chegou às 19h15; o ministro, pouco antes das 20h. Ao ver Lyra entrar no auditório, Tônia comentou: “Ele é uma gracinha, muito descontraído. Ele é a Nova República de verdade.”  Aha! Uhu!, aquela Justiça era (ou parecia ser) nossa. Antes de subir ao palco, o ministro deu um beijo em Alcione. Depois ocupou seu espaço numa mesa encimada por uma faixa com os dizeres “Nova Justiça”, na companhia do ministro da Cultura Aluísio Pimenta, do vice-governador do Estado do Rio Darcy Ribeiro, do jornalista Pompeu de Souza, do comediante Chico Anísio e mais 11 apóstolos, seis dos quais integrantes da “comissão dos perseguidos” pela finada Censura.  Empunhando um simbólico tesourão, o ministro da Justiça declarou extinta a Censura no Brasil, e sua substituíção por um Conselho Nacional da Defesa da Liberdade de Expressão, cujos integrantes, em vez de proibir livros, filmes, músicas, peças e telenovelas, passariam a submetê-los a um sistema classificatório por faixa etária. Euforia no salão. Pelo novo sistema, qualquer criança poderia presenciar espetáculos antes vetados a menores de 18 de anos, desde que acompanhada dos pais ou responsável. “O Juizado de Menores não vai deixar; eu conheço bem o Brasil”, resmungou Loyola Brandão. Ninguém nas poltronas vizinhas discordou.  Apenas cinco dos notáveis no palco discursaram: os dois ministros, Houaiss, Darcy Ribeiro e Pompeu de Sousa. Darcy começou com uma pergunta (“Quem tem medo da liberdade?"), que ele mesmo respondeu (“um grupo pequeno, minoritário, mas sempre perigoso”), para em seguida reivindicar “uma Constituição à prova de golpes e avassalamentos da vontade popular”.  Ahá! Uhu! Nós ainda tínhamos Darcy e aquela gente toda para nos representar e lutar por um país minimamente decente e esperançoso. Lyra falou meia hora. Relembrou os tempos bicudos da ditadura, quando “a gente ouvia as músicas do Chico quase clandestinamente”, arrolou reminiscências de sua carreira parlamentar, vangloriou-se de ter sido o primeiro cabo eleitoral de Tancredo à presidência da República. De repente, uma provocação: “Por que ninguém consegue fazer oposição a este governo?”  Referia-se ao governo Sarney. Na ausência de Millôr Fernandes, o mais implacável crítico de Sarney (ou Sir Ney, como o gozava cotidianamente, a ele e sua prosa literária, no Jornal do Brasil), tivemos de nos contentar com o palpite do ator Jece Valadão, que da quarta fila gritou: “Porque agora o povo está no poder!”. Não estava, mas ouvir aquilo de um ex-malufista deleitou a plateia. Além de lavrar o óbito da censura, Lyra anunciou a liberação de três livros proibidos e alguns filmes (Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias, Macunaíma, de Joaquim Pedro, e Os Condenados e Avaeté – A Semente da Vingança, de Zelito Viana) para exibição na TV. Antes que alguém lembrasse que ainda faltavam 403 livros para alforriar, a emoção tomou conta do teatro, no embalo do Hino Nacional.  Jamais imaginei que um dia fosse ouvir o Virundu de mãos dadas com Joaquim Pedro e Tônia Carrero. A mão do Joaquim estava quente, a de Tônia, fria, mas não só porque era inverno ou o ar refrigerado do Casa Grande estivesse ligado no máximo.  A Censura afinal não foi extinta para todo o sempre no Brasil. Sete meses mais tarde, Sarney, pressionado pela Igreja Católica e líderes evangélicos, proibiu a exibição de Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, em todo o território nacional. Fiel a uma velha tradição carnavalesca, o Bloco Pacotão, de Brasília, caiu na folia daquele ano com uma gozação ao presidente e à primeira-dama: “Je vous salue, Marly”. 

Noventa e oito dias depois da morte de Tancredo Neves, outra morte entrou para a história da Nova (ou Sexta) República Brasileira. Na noite de 29 de julho de 1985, a Censura foi declarada morta no País. Diferentemente da anterior, a segunda só foi pranteada pelos saudosistas da recém-finda ditadura militar. Com José Sarney na presidência havia já 136 dias, Fernando Lyra, escolha pessoal de Tancredo para o Ministério da Justiça, oficializou naquela noite o fim da mordaça e da repressão à liberdade de expressão, num ato público que reuniu mais de 700 artistas, intelectuais, produtores culturais e jornalistas no Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio. 

'Estadão' foi um dos mais censurados durante a ditadura militar Foto: Tiago Queiroz/Estadão

No meio deles, alguns brasilianistas franceses e alemães, de passagem pelo Brasil. Ainda éramos, apesar de tudo, um país sério, respeitado pelos gringos. E, suprema dádiva, muito querido. Foi uma espécie de auto de fé às avessas, com a censura de diversões e espetáculos condenada à civilizatória fogueira da redemocratização, sob os aplausos de suas antigas vítimas, diretas e indiretas.  Presente como repórter, coube-me ficar entre Tônia Carrero e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Na fileira atrás da minha, dois ilustres censurados pelo regime militar, os escritores Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão.  “Este é um acontecimento histórico”, proclamou o professor e acadêmico Antonio Houaiss, oficiante do ritual e relator da “comissão dos perseguidos”, que, a pedido do ministro, havia traçado em 22 tópicos as novas linhas de ação na relação entre o Estado e a Cultura, com a ajuda de Chico Buarque, do dramaturgo Dias Gomes, do humorista Ziraldo e do jornalista Pompeu de Souza, que qualificou o documento de “a Lei Áurea da inteligência brasileira”.  Chico reclamara da hora (“Oito da noite é muito cedo”), marcada pelo ministro para facilitar a cobertura da imprensa. Representando a si próprio e seu duplo “Julinho da Adelaide”, Chico chegou às 19h15; o ministro, pouco antes das 20h. Ao ver Lyra entrar no auditório, Tônia comentou: “Ele é uma gracinha, muito descontraído. Ele é a Nova República de verdade.”  Aha! Uhu!, aquela Justiça era (ou parecia ser) nossa. Antes de subir ao palco, o ministro deu um beijo em Alcione. Depois ocupou seu espaço numa mesa encimada por uma faixa com os dizeres “Nova Justiça”, na companhia do ministro da Cultura Aluísio Pimenta, do vice-governador do Estado do Rio Darcy Ribeiro, do jornalista Pompeu de Souza, do comediante Chico Anísio e mais 11 apóstolos, seis dos quais integrantes da “comissão dos perseguidos” pela finada Censura.  Empunhando um simbólico tesourão, o ministro da Justiça declarou extinta a Censura no Brasil, e sua substituíção por um Conselho Nacional da Defesa da Liberdade de Expressão, cujos integrantes, em vez de proibir livros, filmes, músicas, peças e telenovelas, passariam a submetê-los a um sistema classificatório por faixa etária. Euforia no salão. Pelo novo sistema, qualquer criança poderia presenciar espetáculos antes vetados a menores de 18 de anos, desde que acompanhada dos pais ou responsável. “O Juizado de Menores não vai deixar; eu conheço bem o Brasil”, resmungou Loyola Brandão. Ninguém nas poltronas vizinhas discordou.  Apenas cinco dos notáveis no palco discursaram: os dois ministros, Houaiss, Darcy Ribeiro e Pompeu de Sousa. Darcy começou com uma pergunta (“Quem tem medo da liberdade?"), que ele mesmo respondeu (“um grupo pequeno, minoritário, mas sempre perigoso”), para em seguida reivindicar “uma Constituição à prova de golpes e avassalamentos da vontade popular”.  Ahá! Uhu! Nós ainda tínhamos Darcy e aquela gente toda para nos representar e lutar por um país minimamente decente e esperançoso. Lyra falou meia hora. Relembrou os tempos bicudos da ditadura, quando “a gente ouvia as músicas do Chico quase clandestinamente”, arrolou reminiscências de sua carreira parlamentar, vangloriou-se de ter sido o primeiro cabo eleitoral de Tancredo à presidência da República. De repente, uma provocação: “Por que ninguém consegue fazer oposição a este governo?”  Referia-se ao governo Sarney. Na ausência de Millôr Fernandes, o mais implacável crítico de Sarney (ou Sir Ney, como o gozava cotidianamente, a ele e sua prosa literária, no Jornal do Brasil), tivemos de nos contentar com o palpite do ator Jece Valadão, que da quarta fila gritou: “Porque agora o povo está no poder!”. Não estava, mas ouvir aquilo de um ex-malufista deleitou a plateia. Além de lavrar o óbito da censura, Lyra anunciou a liberação de três livros proibidos e alguns filmes (Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias, Macunaíma, de Joaquim Pedro, e Os Condenados e Avaeté – A Semente da Vingança, de Zelito Viana) para exibição na TV. Antes que alguém lembrasse que ainda faltavam 403 livros para alforriar, a emoção tomou conta do teatro, no embalo do Hino Nacional.  Jamais imaginei que um dia fosse ouvir o Virundu de mãos dadas com Joaquim Pedro e Tônia Carrero. A mão do Joaquim estava quente, a de Tônia, fria, mas não só porque era inverno ou o ar refrigerado do Casa Grande estivesse ligado no máximo.  A Censura afinal não foi extinta para todo o sempre no Brasil. Sete meses mais tarde, Sarney, pressionado pela Igreja Católica e líderes evangélicos, proibiu a exibição de Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, em todo o território nacional. Fiel a uma velha tradição carnavalesca, o Bloco Pacotão, de Brasília, caiu na folia daquele ano com uma gozação ao presidente e à primeira-dama: “Je vous salue, Marly”. 

Noventa e oito dias depois da morte de Tancredo Neves, outra morte entrou para a história da Nova (ou Sexta) República Brasileira. Na noite de 29 de julho de 1985, a Censura foi declarada morta no País. Diferentemente da anterior, a segunda só foi pranteada pelos saudosistas da recém-finda ditadura militar. Com José Sarney na presidência havia já 136 dias, Fernando Lyra, escolha pessoal de Tancredo para o Ministério da Justiça, oficializou naquela noite o fim da mordaça e da repressão à liberdade de expressão, num ato público que reuniu mais de 700 artistas, intelectuais, produtores culturais e jornalistas no Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio. 

'Estadão' foi um dos mais censurados durante a ditadura militar Foto: Tiago Queiroz/Estadão

No meio deles, alguns brasilianistas franceses e alemães, de passagem pelo Brasil. Ainda éramos, apesar de tudo, um país sério, respeitado pelos gringos. E, suprema dádiva, muito querido. Foi uma espécie de auto de fé às avessas, com a censura de diversões e espetáculos condenada à civilizatória fogueira da redemocratização, sob os aplausos de suas antigas vítimas, diretas e indiretas.  Presente como repórter, coube-me ficar entre Tônia Carrero e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Na fileira atrás da minha, dois ilustres censurados pelo regime militar, os escritores Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão.  “Este é um acontecimento histórico”, proclamou o professor e acadêmico Antonio Houaiss, oficiante do ritual e relator da “comissão dos perseguidos”, que, a pedido do ministro, havia traçado em 22 tópicos as novas linhas de ação na relação entre o Estado e a Cultura, com a ajuda de Chico Buarque, do dramaturgo Dias Gomes, do humorista Ziraldo e do jornalista Pompeu de Souza, que qualificou o documento de “a Lei Áurea da inteligência brasileira”.  Chico reclamara da hora (“Oito da noite é muito cedo”), marcada pelo ministro para facilitar a cobertura da imprensa. Representando a si próprio e seu duplo “Julinho da Adelaide”, Chico chegou às 19h15; o ministro, pouco antes das 20h. Ao ver Lyra entrar no auditório, Tônia comentou: “Ele é uma gracinha, muito descontraído. Ele é a Nova República de verdade.”  Aha! Uhu!, aquela Justiça era (ou parecia ser) nossa. Antes de subir ao palco, o ministro deu um beijo em Alcione. Depois ocupou seu espaço numa mesa encimada por uma faixa com os dizeres “Nova Justiça”, na companhia do ministro da Cultura Aluísio Pimenta, do vice-governador do Estado do Rio Darcy Ribeiro, do jornalista Pompeu de Souza, do comediante Chico Anísio e mais 11 apóstolos, seis dos quais integrantes da “comissão dos perseguidos” pela finada Censura.  Empunhando um simbólico tesourão, o ministro da Justiça declarou extinta a Censura no Brasil, e sua substituíção por um Conselho Nacional da Defesa da Liberdade de Expressão, cujos integrantes, em vez de proibir livros, filmes, músicas, peças e telenovelas, passariam a submetê-los a um sistema classificatório por faixa etária. Euforia no salão. Pelo novo sistema, qualquer criança poderia presenciar espetáculos antes vetados a menores de 18 de anos, desde que acompanhada dos pais ou responsável. “O Juizado de Menores não vai deixar; eu conheço bem o Brasil”, resmungou Loyola Brandão. Ninguém nas poltronas vizinhas discordou.  Apenas cinco dos notáveis no palco discursaram: os dois ministros, Houaiss, Darcy Ribeiro e Pompeu de Sousa. Darcy começou com uma pergunta (“Quem tem medo da liberdade?"), que ele mesmo respondeu (“um grupo pequeno, minoritário, mas sempre perigoso”), para em seguida reivindicar “uma Constituição à prova de golpes e avassalamentos da vontade popular”.  Ahá! Uhu! Nós ainda tínhamos Darcy e aquela gente toda para nos representar e lutar por um país minimamente decente e esperançoso. Lyra falou meia hora. Relembrou os tempos bicudos da ditadura, quando “a gente ouvia as músicas do Chico quase clandestinamente”, arrolou reminiscências de sua carreira parlamentar, vangloriou-se de ter sido o primeiro cabo eleitoral de Tancredo à presidência da República. De repente, uma provocação: “Por que ninguém consegue fazer oposição a este governo?”  Referia-se ao governo Sarney. Na ausência de Millôr Fernandes, o mais implacável crítico de Sarney (ou Sir Ney, como o gozava cotidianamente, a ele e sua prosa literária, no Jornal do Brasil), tivemos de nos contentar com o palpite do ator Jece Valadão, que da quarta fila gritou: “Porque agora o povo está no poder!”. Não estava, mas ouvir aquilo de um ex-malufista deleitou a plateia. Além de lavrar o óbito da censura, Lyra anunciou a liberação de três livros proibidos e alguns filmes (Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias, Macunaíma, de Joaquim Pedro, e Os Condenados e Avaeté – A Semente da Vingança, de Zelito Viana) para exibição na TV. Antes que alguém lembrasse que ainda faltavam 403 livros para alforriar, a emoção tomou conta do teatro, no embalo do Hino Nacional.  Jamais imaginei que um dia fosse ouvir o Virundu de mãos dadas com Joaquim Pedro e Tônia Carrero. A mão do Joaquim estava quente, a de Tônia, fria, mas não só porque era inverno ou o ar refrigerado do Casa Grande estivesse ligado no máximo.  A Censura afinal não foi extinta para todo o sempre no Brasil. Sete meses mais tarde, Sarney, pressionado pela Igreja Católica e líderes evangélicos, proibiu a exibição de Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, em todo o território nacional. Fiel a uma velha tradição carnavalesca, o Bloco Pacotão, de Brasília, caiu na folia daquele ano com uma gozação ao presidente e à primeira-dama: “Je vous salue, Marly”. 

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