Com suas mais de setecentas páginas, o livro A Queda do Céu, composto em 2015 pelo índio yanomani Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert (que transcreveu as falas e escreveu um postscriptum elucidativo), depois de um trabalho conjunto que durou mais de 30 anos, chegou agora à sua sétima reimpressão em português (Companhia das Letras), o que prova quanto vem se tornando importante para o público leitor acompanhar as questões cada vez mais emaranhadas e urgentes que dizem respeito aos povos indígenas de nosso país.
A obra, bem traduzida do original francês, bem documentada , com mapas , fotos e glossário, é em sua maior parte, a transcrição das falas de Davi Kopenawa (1956-), índio yanomami do alto do rio Tootobi, no norte do estado do Amazonas que limita com a Venezuela, em que ele conta , junto com o poético da vida de sua tribo na Terra Indígena Yanomani, com sua cultura espiritual, agrícola, silvícola, seu trato com os animais e o encantatório da longa formação que levou o jovem índio a se tornar xamã e ativista político, também as provações e as terríveis ameaças que pairam não apenas sobre seu povo e sobre todos os povos da Amazônia, mas – indiscutivelmente – sobre todos nós: “ a queda do céu”. Não bastasse a absoluta necessidade de a humanidade inteira preservar as florestas – cujas razões sobejamente repetidas pela imprensa mundial são rigorosamente apresentadas no prefácio de Viveiros de Castro (V.C) -- ele discute e desmonta todas as propostas e os dispositivos contemporâneos que visam “aculturar” os índios e tirar-lhes tudo o que sempre tiveram, desde antes dos portugueses chegarem, “com lampejos de lucidez poética e política” que – diz Viveiros de Castro , devem ser levados absolutamente a sério. Em primeiro lugar, o território. Quando um general, durante a audiência de Kopenawa com José Sarney (1989), lhe perguntou: "O povo de vocês gostaria de receber informações sobre como cultivar a terra?” ele assim respondeu: “Não. O que eu desejo obter é a demarcação de nosso território”. De fato, a demarcação é a questão principal. Atualmente, 14% do território nacional é terra indígena demarcada, aproximadamente 500 terras protegidas – (Estadão, 15/2/20) --, mas, somando essa área às faixas de fronteira, de 30 a 40 % da área do país não possui atividade econômica regulamentada. (Há cerca de 900 mil índios no País , sendo que 98% deles estão na Amazônia e só 500 mil vivem nas áreas demarcadas). Segundo a constituição de 1988, os art. 176 e 231 preveem a regulamentação de atividades econômicas em terras indígenas, sob três condições: a autorização do Congresso, a consulta à comunidade afetada e a sua participação nos resultados da lavra. Ora, se alguma comunidade que se encontra em reserva indígena demarcada não quiser esse tipo de atividade, ou qualquer outro tipo de intrusão – inclusive a religiosa --, a lei deve respeitar. A responsabilidade é da comunidade dos índios que não são mais aqueles “bons selvagens” idealizados por Rousseau: usam celulares, desfrutam da rede digital, ao mesmo tempo em que zelam por seus ecossistemas e suas tradições. Mas por que alguma ‘comunidade afetada’ não haveria de querer? Vejamos algumas respostas. Agricultura? Áreas cultiváveis? Pois sim. Leia-se: , além do desmate, a introdução de sementes transgênicas que, para serem obtidas, tornariam (tornarão!) os índios escravos de nossa “civilização”. Áreas para pasto? O Brasil já possui mais de duzentos e dez milhões de cabeças de gado: mais do que o número de seus habitantes! Que se otimizem as criações de gado que o Brasil já tem , enquanto “corporação empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgênicas e agrotóxicas, crivada de morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam centenas de milhões de toneladas toneladas de minério para exportação” (V. C.p.18.) Mineração? O projeto do governo propõe a regulamentação da mineração e da produção de petróleo, gás e energia em áreas indígenas. Ora (Folha de S.Paulo, 15/02/2020), de acordo com o projeto de lei que o governo enviou ao Congresso, os indígenas devem “ ser ouvidos”, mas “não têm direito de veto no caso de exploração mineral por empresas comerciais, aproveitamento hidrelétrico e extração de hidrocarbonetos”. Isto contrasta com “o consentimento livre e informado previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil”, só permitindo aos índios vetarem a exploração por garimpeiros. Ora, os artigos mencionados da Carta Magna já vetavam essas atividades, mas os garimpeiros ilegais continuarão intensificando disfarçadamente ou menos, suas investidas. Isso sem mencionar as epidemias, os estupros, os assassinatos, o esgotamento da caça, o envenenamento dos rios pelo mercúrio necessário à garimpagem do ouro, e do próprio solo que (Folha de S.Paulo, 13/2/20) tem mercúrio retido. E o urânio, arrancado à crosta terrestre, que é mortalmente tóxico para todos os mamíferos. Enfim, trata-se da “ destruição das bases materiais e dos fundamentos morais da economia indígena.”( V.C.p.22) Extração do petróleo nas áreas indígenas? Ora, como diz Davi Kopenawa, o homem branco não sonha longe. Em breve os motores não serão mais movidos a combustível (muitos países já estão substituindo o petróleo) e o que ocorrerá nas áreas de extração é que se verão “cobertas por uma espessa nuvem de petróleo que sufoca nossas cidades...”(C.V. p.19 ) Energia? A Amazônia está “entupida por milhares de quilômetros de rios barrados para gerar uma energia de duvidosíssima “limpeza” e de ainda mais questionável destinação”( Idem). Tornar “produtivas as terras?” Ou seja, “lucrativas para seus pretendentes, os grandes empresários do agronegócio, da mineração e da especulação fundiária, vários deles aboletados na poltronas do Congresso...e uma legião de serviçais no Judiciário” (idem) Conclusão de Davi Kopenawa: “Os brancos talvez pensem que pararíamos de defender nossa floresta caso nos dessem montanhas de suas mercadorias. Estão enganados. Desejar suas coisas tanto quanto eles só serviria para emaranhar nosso pensamento. Perderíamos nossas próprias palavras e isso nos levaria à morte. Foi o que sempre ocorreu, desde que nossos antigos cobiçaram as suas ferramentas pela primeira vez, há muito tempo.” *Aurora Bernardini é professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP